No julgamento do REsp 2.135.967, a 3ª Turma do STJ, a partir do caso de pessoa que, mesmo após ter realizado cirurgias e tratamento hormonal para alteração do gênero, não se identificava nem com o gênero masculino, nem com o feminino, possibilitou que se alterasse o registro civil para constar o gênero como neutro. Esse é um caso que possibilita a reflexão das identidades de gênero e de como a vida coloca em xeque os limites binários/excludentes das classificações jurídicas.
A decisão do STJ é um importantíssimo passo no reconhecimento da dignidade das pessoas trans e não-binárias, além de garantir a mesma proteção social e jurídica que as pessoas cis e binárias recebem desde o nascimento. O que possibilitaria retroalimentar a luta política por novos direitos e novos sujeitos, procurando tensionar as limitações de um direito tradicionalmente marcado pelo binarismo e pela heterocisnormatividade, disputando seus princípios e explorando seus potenciais emancipatórios.
A questão que se põe é: quais os efeitos dessa decisão para os demais órgãos (juízos) do Poder Judiciário? Como deverão os juízos de 2º e de 1º graus decidir outros casos após tal julgamento? Após o STJ ter reconhecido o direito de pessoas não-binárias sobre a possibilidade de se afirmarem como gênero neutro no Registro Civil em sede de Recurso Especial, tal decisão poderá ser trazidas para decidir outros processos – futuros ou em curso?
A resposta ao questionamento não é tão simples quanto possa parecer e demanda uma análise da sistemática processual reconfigurada com o filtro da relevância da questão federal.
A Emenda Constitucional n. 105/2022 criou o pressuposto recursal de admissibilidade conhecido como relevância da questão de direito federal (ou simplesmente chamada de relevância) discutida nos autos, na forma do §2º do art. 105. da Constituição de 1988. Assim como o homólogo pressuposto da repercussão geral no Recurso Extraordinário, a relevância constitui um mecanismo de triagem processual pelo qual circunscreve a atuação do STJ apenas aos casos que oferecem transcendência econômica, social, política ou jurídica (vide o art. 1.035, § 2º do CPC ao tratar da repercussão geral no Recurso Extraordinário). Trata-se, como já dito, de um filtro processual presente nos Recursos Especiais que autoriza o Tribunal Superior (in)admitir recursos excepcionais que não apresentem tal pressuposto, ainda que exista, no caso sub judice, uma hipótese de cabimento, conforme o art. 105, III da Constituição de 1988, dentre elas a sua função uniformizadora da interpretação da legislação federal (alínea “c”). O próprio regramento constitucional estabeleceu hipóteses de relevância presumida. O §3º do art. 105, então, presume a relevância quando se tratar de casos de ações penais, ações de improbidade administrativa, ações cujo valor da causa ultrapassem 500 salários-mínimos; ações que possam gerar inelegibilidade; quando a decisão contrariar jurisprudência dominante do próprio STJ ou em outros casos previstos em lei.
Após a promulgação da EC n. 125/2022, o STJ decidiu, através do Enunciado Administrativo n. 8, que o filtro só seria exigido contra acórdãos publicados após a entrada em vigor da lei regulamentadora prevista no art. 105, §2º da Constituição de 1988, que seria elaborada pelo próprio STJ e enviada, posteriormente, ao Congresso Nacional.1 Lembrando que tal lei ainda não foi votada pelo Legislativo nacional.
Mas como fica a sistemática processual do Recurso Especial antes da entrada em vigor da lei regulamentadora e, ainda, como ficam os efeitos dos seus julgamentos proferidos? A criação desse filtro terá o condão de reconfigurar a sistemática recursal adotada para o Recurso Especial no Código de Processo Civil, a se julgar pelas transformações do instituto homólogo da repercussão geral.
Na regulamentação original da repercussão geral, o filtro servia mais como um mecanismo individual de óbice ao recurso. Era negada a admissibilidade do Recurso Extraordinário que não tivesse a repercussão geral reconhecida, mas algo que, originalmente, só ocorria com o voto de 2/3 dos membros do STF. A regra, portanto, era a admissão do Recurso Extraordinário. No entanto, posteriormente, na regulamentação infraconstitucional, o Recurso Extraordinário se integrou a uma sistemática de tratamento de recursos repetitivos. Tal como sistematizado pelo CPC (quer de 1973, quanto o de 2015), isso fez com que sua avaliação passasse a se dar a partir de um sistema de amostragem, na forma do art. 1.036. do CPC. Com isso, o Tribunal a quo envia dois ou mais recursos representativos e afeta os demais, suspendendo seu processamento.
Assim, quanto à amostra enviada para o Tribunal Superior ou bem se reconhece a existência da repercussão geral no Recurso Extraordinário e, de forma automática, se suspende o andamento de todos os processos que discutam a quaestio iuris; ou, então, não se reconhece a repercussão geral e o Recurso Extraordinário não é admitido. Inclusive, o não reconhecimento da repercussão geral para o Recurso Extraordinário selecionado traz como consequência a inadmissão de qualquer outro recurso tramitando perante a Vice-Presidência do Tribunal a quo ou mesmo no STF, ou mesmo futuramente interposto, salvo de revista tal posição. Uma vez admitido o Recurso Extraordinário com repercussão geral, o STF decide a temática, extraindo dali uma “tese” que deverá ser seguida por todos os juízos e tribunais vinculados, aplicando-a ao caso semelhante discutido no processo, como um padrão decisório obrigatório, conforme art. 927, III do CPC.2
Dessa forma, o CPC cuidou de equiparar o tratamento processual entre o Recurso Extraordinário com repercussão geral com a sistemática processual dos Recursos Repetitivos. Isso fica evidenciado com as disposições contidas no art. 1.030, inc. I, “a” e inc. V, “a” do CPC que permitem, ao Tribunal de origem, no exame de admissibilidade, negar seguimento ao Recurso Extraordinário que não tiver reconhecida a repercussão geral ou cujo acórdão esteja em conformidade com julgamento do STF exarado sob a sistemática da repercussão geral (situação esta na qual primeiro o recurso será encaminhado para o órgão julgador no tribunal de origem para realização de um juízo de retratação pelos magistrados se sua decisão divergir da “tese” já fixada pelo STF, e havendo negativa destes, remetê-lo ao STF). Assim, o Recurso Extraordinário, a princípio, somente seria encaminhado ao STF desde que a quaestio iuris ainda não tenha sido submetido ao regime da repercussão geral. Portanto, no âmbito da sistemática do Recurso Extraordinário, com ou sem o reconhecimento da repercussão geral, teremos uma decisão que formará um padrão decisório obrigatório para todo o Judiciário, quer para inadmitir novos Recursos Extraordinários sobre a mesma discussão; quer para aplicar aquilo que fixou fixado como “tese” pelo Plenário do STF (art. 102, §3º da Constituição de 1988).
Diferentemente é o caso do Recurso Especial, que só tem força obrigatória quando o acórdão é proferido a partir do rito dos recursos repetitivos, na forma do art. 1.036. e seguintes do CPC. Isso porque, primeiro, o Vice-Presidente do Tribunal a quo deverá já encaminhar o Recurso Especial para o STJ como sendo representativo de uma controvérsia (art. 2456-A do Regimento Interno do STJ), sobrestando em sua órbita de competência todos os demais, ou encaminhar para o STJ com sendo um Recurso Especial sem representatividade. Isso diferenciará o procedimento de tal recurso daqui para frente.
Estando diante de um recurso que não representa uma controvérsia passível de criação de um padrão decisório, o Recurso Especial será distribuído para uma Turma no STJ e terá seus pressupostos analisados pelo Ministro Relator sorteado. Aqui já sabemos que o resultado do julgamento que virá, por si só, representará uma decisão sem a possibilidade de transcender para outros casos.
Agora, quando o Recurso Especial já é encaminhado para o STJ como sendo um recurso representativo da controvérsia, ele é distribuído, primeiro para o Presidente do STJ que, conforme o art. 256-C do Regimento Interno do STJ, por decisão irrecorrível defina se o ele poderá servir de “paradigma” para formação de um padrão decisório obrigatório.
Com isso, a regulamentação da relevância federal tenderá, ao menos no anteprojeto apresentado pelo STJ, a equiparar o Recurso Especial recebido com relevância federal ao Recurso Especial Repetitivo como espécie de tratamento da litigiosidade repetitiva e, com isso, dotá-lo sempre de um padrão decisório obrigatório.
Um aspecto a se pensar, é que, com isso, não mais teremos o encaminhamento de Recursos Especiais para o STJ, pelos Tribunais de origem, sem que seja pela via da amostragem. Os casos que seria supostamente sem repetição, deixarão de serem conhecidos mesmo diante de uma hipótese de cabimento do art. 105, III da Constituição, sob a alegação de ausência de relevância (ou seja, de repetibilidade da matéria discutida).
Sabemos, então que, até que se edite a legislação em questão, o Recurso Especial não-repetitivo produzirá a típica situação de decisão com eficácia inter partes. Mas cumpre-nos indagar sobre se, por uma outra via, mesmo quando o Tribunal de origem não incluir um Recurso Especial no rito dos repetitivos, esse recurso seja analisado pelo Superior Tribunal de Justiça como apto a trazer uma “tese” que possa ser entendida como um padrão decisório obrigatório. E a resposta é afirmativa.
O CPC traz dois incidentes, de competência de Tribunais, que podem, conforme o art. 927, também resultar na construção de um padrão decisório obrigatório: o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR – art. 976) e o Incidente de Assunção de Competência (IAC – art. 947). Sabemos que o IRDR, particularmente, é mecanismo restrito à esfera de competência dos Tribunais de 2º grau.3 Então, não há o que cogitar da sua utilização perante o STJ.
Mas, por outro lado, teremos disponível o IAC, que regulamentado, primeiro, no artigo 947 do CPC (mas também no art. 271-B e seguintes do Regimento Interno do STJ), é figura processual para se conferir efeito decisório obrigatório quando, no julgamento de recurso, remessa necessária ou processo de competência originária, envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, mesmo sem a repetição em múltiplos processos. O IAC poderá ser instaurado de ofício ou mediante requerimento das partes ou do Ministério Público. Embora a regulamentação do dispositivo trate apenas da vinculação interna (art. 947, §3º do CPC e art. 271-G do RISTJ), a sistemática do CPC cuida de estabelecer um efeito de observância obrigatória externo ao determinar a obrigação de todos os juízes e Tribunais vinculados observarem o entendimento exarado em IAC, conforme art. 927, inc. III, além da expressa previsão de cabimento de Reclamação na hipótese de descumprimento de entendimento proferido em IAC (art. 988, inc. IV).
O pressuposto para a instauração do IAC é que o caso trate de relevante questão de direito, com repercussão social, independentemente de prévio pronunciamento do Tribunal por um de seus órgãos fracionários. O regramento constitucional da relevância da questão federal traz hipóteses, como dito, de presunção absoluta de relevância no §3º do art. 105,4 sem a possibilidade de que outras hipóteses sejam reconhecidas como de interesse público para a uniformização da jurisprudência.
Assim, outro poderia ter sido o desfecho do REsp. 2.135.967. Afinal, mesmo que não tivesse sido encaminhado para o STJ pelo TJSP (que foi o Tribunal a quo) pelo rito dos repetitivos – e foi este o caso –, haveria uma possibilidade de lhe atribuir a condição de formação de um padrão decisório obrigatório, dada a relevância social subjacente ao caso. E talvez, mas trata-se de mera especulação, não se tenha ventilado a possibilidade de encaminhá-lo ao STJ sob o rito dos repetitivos por identificar que o caso tramitou sobre restrição de publicidade (o popular segredo de justiça – art. 11. do CPC).
Contudo, essa é uma questão que atinge profundamente o direito fundamental de pessoas não-binárias que pretendem ter sua autodeterminação de gênero como garantia da proteção à personalidade devidamente inscrito e reconhecido no registro civil, que se caracteriza como socialmente relevante, haja vista a dimensão e a importância da questão jurídica. As instâncias ordinárias, conforme bem indica o caso julgado, têm, em geral, negado tal direito às pessoas. Vale lembrar que o STF já decidiu, na ADI. 4.275, que não é o Estado quem dita a identidade dos cidadãos, são estes que devem ter o direito de o fazerem e o papel do Estado é apenas o de chancelar5. Ainda que aqui a decisão tratasse de pessoas transgênero poderem fazer a mudança de nome e gênero no registro de nascimento, a “ratio decidendi” fixada pode também ser utilizada para o presente caso6.
Dessa forma, a extensão dos efeitos do caso concreto julgado pela 3ª Turma seria importante para trazer uniformidade, estabilidade, coerência e integridade (art. 927, CPC) à interpretação desse direito fundamental, possibilitando a efetivação de direito, e, sobretudo, o acesso à justiça eficiente, a uma ampla gama de pessoas que pretendam ver sua autodeterminação de gênero no registro civil, sem que precise passar por um périplo nas instâncias ordinárias.
A instauração do IAC, assim, poderia ter sido explorada – mas não o foi, e possivelmente, porque a condição de restrição de publicidade (“segredo” de justiça) possa ser o que motivou tal opção processual –, até mesmo de ofício pela relatoria ou, então, pelas partes ou pelo Ministério Público, devendo o entendimento adotado pela 2ª Seção, na forma do art. 271- B, §1º c/c art. 9º, §2º do RISTJ. Contudo, tal opção deveria ter sido realizada antes do julgamento do Recurso Especial em questão, transferindo-se a competência para o Órgão Especial ou a Seção do STJ.
De qualquer sorte, estar-se-á diante de um julgado de pioneirismo que, pelo menos, dever ser condutor para a formação de uma jurisprudência (a partir de sua recepção como argumento persuasivo) a ser reconhecida como tal pelas instâncias ordinárias e no processo argumentativo posterior, determinando o dever de que os juízes e tribunais sigam o entendimento emanado pelo STJ. O dever de seguir o entendimento advém, para além da sistemática legislativa, da importância e da extensão jurídico-argumentativa do julgamento do caso no STJ e da exigência de segurança jurídica e tratamento isonômico para as pessoas não-binárias.
Tem-se aqui a oportunidade de se valer de uma sistemática de precedentes análoga a de países de common law, ou seja, que uma decisão importante como a que estamos comentando seja seguida pelas instâncias ordinárias, não porque a lei lhe confere efeito vinculante, mas sim pela força persuasiva de seus argumentos, inclusive porque emanada do Tribunal responsável pela uniformização e interpretação final da legislação federal e também por ser apoiada pela decisão do STF na citada ADI. 4.275.
Notas
1 O próprio STJ elaborou Anteprojeto de Lei, cuja íntegra pode ser consultada: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/Anteprojeto%20PEC%20Relevância%2007122022.pdf. Há, também, o Projeto de Lei 3804/2023 de autoria do Senador Marcos do Val, PODEMOS/SE, que pretende regulamentar a matéria: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/159018.
2 Sobre isso: BAHIA, Alexandre Melo Franco. Recursos Extraordinários no STF e no STJ: conflito entre interesses público e privado. 2ª ed. revi. e atualiz. Curitiba: Juruá, 2016.
3 Ver Enunciado 343 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): O incidente de resolução de demandas repetitivas compete a tribunal de justiça ou tribunal regional.
4 ROQUE, André Vasconcelos, GAJARDONI, Fernando Fonseca, DELLORE, Luiz, OLIVEIRA JÚNIOR, Zulmar Duarte. Novidade no recurso especial: Primeiras reflexões sobre a EC 125 e o requisito da relevância das questões de direito federal infraconstitucional (REsp com RQF). Migalhas, segunda-feira, 01 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/tendencias-do-processo-civil/370739/novidade-no-recurso-especial, acesso em 14 de maio de 2025.
5 “Noutras palavras, a alteração dos assentos no registro público depende apenas da livre manifestação de vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero. A pessoa não deve provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental” (STF, ADI. 4.275, Pleno, Rel. p/ ac. Min. Edson Fachin, j. 01.03.2018).
6 Nesse sentido vale lembrar também que o CNJ possui o Provimento n. 122/2021 que possibilita que os recém-nascidos intersexuais possam ser registrados como “sexo ignorado”. Mais uma vez, trata-se de caso diferente do tema central: o Provimento fala dos intersexuais e o REsp. tratou dos não-binários, mas o fundamento da manifestação também pode ser usado como uma forma de reconhecimento de que a binariedade de gênero não é capaz de abarcar a diversidade humana.