Capa da publicação Direitos violados nas prisões: o que é o ECI?
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A violação dos direitos humanos e o estado de coisas inconstitucional

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Resumo:


  • O "Estado de Coisas Inconstitucional" é uma figura jurídica criada pela Corte Constitucional Colombiana para declarar que certos fatos violam sistematicamente a Constituição, exigindo que autoridades adotem medidas para superar essa situação.

  • Esse estado é caracterizado por uma violação massiva e generalizada de direitos fundamentais, prolongada omissão das autoridades, necessidade de ação coordenada de vários órgãos e possibilidade de congestionamento do sistema judicial.

  • O ativismo judicial associado ao "Estado de Coisas Inconstitucional" visa garantir a efetividade dos direitos fundamentais, mesmo que isso implique em interferir nas funções típicas do Executivo e Legislativo, sendo uma medida excepcional para proteger a dignidade da pessoa humana.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DOS PRESOS E A DECLARAÇÃO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

Este quadro apontado acima foi reconhecido na liminar da ADPF 347 do Supremo Tribunal Federal, a qual admitiu a tese desenvolvida pela Suprema Corte Colombiana do Estado de Coisas Inconstitucional – violação sistemática e generalizada de direitos fundamentais – no sistema carcerário, conforme se verifica:

A ministra Rosa Weber acompanhou o relator ao deferir os pedidos quanto à audiência de custódia, com observância dos prazos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e ao contingenciamento de recursos, acolhendo o prazo de 60 dias, sugerido pelo ministro Edson Fachin. O ministro Luiz Fux seguiu integralmente o voto do relator. Ele considerou que alguns juízes não motivam suas decisões, apesar da exigência legal. “Portanto, há um estado de coisas inconstitucional”, disse o ministro, ao ressaltar a importância de o Supremo analisar a questão, uma vez que o acórdão da Corte deve ter efeito pedagógico. Ao votar no mesmo sentido do relator, a ministra Cármen Lúcia ressaltou a necessidade de haver um diálogo com a sociedade a respeito do tema. Segundo ela, existem no país 1.424 unidades prisionais, das quais apenas quatro são federais. “Ou seja, os estados respondem pelos presos que deveriam ser de responsabilidade da União”, afirmou ao apresentar alguns dados sobre o sistema. “Os números demonstram o estado de coisas inconstitucional”, acrescentou. O ministro Ricardo Lewandowski seguiu totalmente o voto do relator. Assim como outros ministros, ele reconheceu, no caso, o "estado de coisas inconstitucional", ao explicar que essa foi uma medida desenvolvida pela Corte Nacional da Colômbia a qual identificou um quadro insuportável e permanente de violação de direitos fundamentais a exigir intervenção do Poder Judiciário de caráter estrutural e orçamentário. “Essa é uma interferência legítima do Poder Judiciário nessa aparente discricionariedade nas verbas do fundo penitenciário brasileiro”, afirmou.20

Desta forma, pode-se perceber que o Estado de Coisas Inconstitucional tem relação direta com a massiva violação dos direitos humanos, em especial quando se está diante dos vulneráveis - presos.

Vale destacar, que desde o período entre os séculos VIII e II a.C. (considerado como eixo histórico da humanidade – período axial) o ser humano passou a ser considerado como ser dotado de liberdade e razão, lançando, assim, os fundamentos intelectuais para a compreensão de pessoa humana e para a afirmação da existência de direitos universais, porque a ela inerentes21.

Não se pode conceber que desde aquele período já se falavam em direitos inerentes à pessoa humana e no período atual, o Estado como órgão público administrador da sociedade se torne omisso e cada vez mais menos presente na garantia de fornecer o mínimo existencial – mínimo de subsistência e condição digna à sociedade carcerária - a qual está sob a tutela do poder público.

Ora não há dúvidas que alguns dos direitos previstos no ordenamento jurídico podem ser relativizado, no entanto, jamais a dignidade e a essência individual de cada ser humano poderá ser tocada – pedra intangível.

É inconteste a violação maciça e sistemática dos direitos carcerários decorrente há tempos pelas omissões estatais das políticas públicas, cuja solução definitiva transparece ser insuperável pelo poder público.

Luigi Ferrajoli assim preleciona:

Argumento decisivo contra a falta de humanidade das penas é, ao contrário, o princípio moral do respeito à pessoa humana, enunciado por Beccaria e por Kant com a máxima de que cada homem, e por conseguinte também o condenado, não deve ser tratado nunca como um “meio” ou “coisa”, senão sempre como “fim” ou “pessoa”. Não é só, e, sobretudo, não é tanto por razões econômicas, senão por razões morais ligadas àquele princípio, quaisquer que sejam as vantagens ou desvantagens que dele possam derivar, que a pena não deve ser cruel nem desumana; e os princípios são tais precisamente porque não se aderem ao que em cada caso convenha. Isso quer dizer que, acima de qualquer argumento utilitário, o valor da pessoa humana impõe uma limitação fundamental em relação à qualidade e à quantidade da pena. É este o valor sobre o qual se funda, irredutivelmente, o rechaço da pena de morte, das penas corporais, das penas infames e, por outro lado, da prisão perpétua e das penas privativas de liberdade excessivamente extensas. Devo acrescentar que este argumento tem um caráter político, além de moral: serve para fundar a legitimidade do Estado unicamente nas funções de tutela da vida e os demais direitos fundamentais; de sorte que, a partir daí, um Estado que mata, que tortura, que humilha um cidadão não só perde qualquer legitimidade, senão que contradiz sua razão de ser, colocando-se no nível dos mesmos delinquentes22.

A assistência material ao preso está estampada como dever do Estado pelo artigo 12 da Lei de Execução Penal, que dispõe que tal assistência consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas. Desse modo, é direito do cidadão preso e dever do Estado manter condições mínimas de dignidade humana ao encarcerado.

A ausência do fornecimento de itens básicos aos presos tornou costume no seio carcerário e conduta habitual no sistema carcerário e faz com que os seus familiares forneçam os respectivos itens, o que gera evidente comprometimento da renda dessas pessoas, fazendo com que a pena passe a pessoa do infrator da norma, em evidente violação ao mandamento da intranscendência, direito fundamental previsto no artigo 5º, inciso XLV, da CF/88.

O descaso do Poder Público em cumprir o disposto na Lei de Execuções Penais não só viola frontalmente a dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, razão pela qual, em razão da omissão do Estado – Poder Executivo – o Poder Judiciário acaba por ser provocado a desempenhar atividade atípica.

Não bastasse o descumprimento da legislação pátria, o Estado releva determinações previstas nas Regras Mínimas da ONU para Tratamento de Presos, a qual apresenta caráter vinculante no Estado brasileiro nos termos do artigo 38 da Carta da ONU, internacionaliza através do Decreto nº 19.841/45.

Disso, é possível concluir que o Estado age com descaso à classe carcerária no Estado brasileiro e deixa de manter o mínimo de dignidade à pessoa custodia, podendo, em tese, argumentar eventual possibilidade de imposição e cumprimento de uma pena desumana, a qual é constitucionalmente vedada pelo inciso XLVII, art. 5º, CF/88.

Neste sentido, o mínimo existencial consiste num conjunto de direitos fundamentais que devem ser assegurados pelo Estado para a garantia da dignidade humana. Assim, o conteúdo do mínimo essencial é descrito por Ingo Sarlet:

O conteúdo essencial do mínimo existencial encontra-se diretamente fundado no direito à vida e na dignidade da pessoa humana (abrangendo, por exemplo, prestações básicas em termos de alimentação, vestimenta, abrigo, saúde ou os meios indispensáveis para a sua satisfação), o assim designado mínimo sociocultural encontra-se fundado no princípio do Estado Social e no princípio da igualdade no que diz com o seu conteúdo material23.

Desse modo, para a concretização da dignidade da pessoa humana é indispensável a efetivação do conteúdo do mínimo existencial, sendo incabível pelo Estado o argumento de falta de recursos orçamentário através da cláusula da “reserva do possível”.

Por outro lado, é pacífico nos tribunais superiores acerca da impossibilidade de alegação de reserva do possível em face de evidente violação do dever estatal de garantia do mínimo existencial.

Neste sentido, é o entendimento da Corte Suprema:

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade24.

(...) A cláusula da reserva do possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes. - A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV)25.

De outro bordo, a atribuição de formular e de implantar políticas públicas incumbem aos Poderes Legislativos e Executivos. No entanto, em caráter excepcional, ao Poder Judiciário será lícito concretizar medidas a assegurar direitos fundamentais aos encarcerados, uma vez que os próprios órgãos incumbidos não as fazem.

Desse modo, a suprema Corte já decidiu:

Impende assinalar, contudo, que a incumbência de fazer implementar políticas públicas fundadas na Constituição poderá atribuir-se, ainda que excepcionalmente , ao Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político jurídicos que sobre eles incidem em caráter vinculante, vierem a comprometer , com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame26.

É lícito ao Poder Judiciário, em face do princípio da supremacia da Constituição, adotar, em sede jurisdicional , medidas destinadas a tornar efetiva a implementação de políticas públicas, se e quando se registrar situação configuradora de inescusável omissão estatal , que se qualifica como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia , o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede , por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. Precedentes. Doutrina27.

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Como demonstrado, o princípio da reserva do possível não pode ser oposto ao princípio da garantia do mínimo existencial, uma vez que a dignidade humana é fundamento da República Federativa do Brasil. Ademais, eventual omissão injustificada do Estado em efetivar políticas públicas essenciais para a garantia da dignidade humana não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário, pois, tal garantia é um dos objetivos principais do Estado Democrático de Direito.

No entanto, o conteúdo do pronunciamento na ADPF 347, considerando o seu objeto e a sua magnitude, o Poder Judiciário – STF – desempenharia o papel de orientador dos órgãos públicos e de sociedades civis no implemento de políticas públicas objetivando a redução da estigmatização e deficiência do sistema carcerário. Isso demonstra que o ECI é assunto cujo objeto é generalizado em relação ao descumprimento de direitos fundamentais que atingem certa categoria.

Querendo acreditar que não se trata da regra, mas a conduta omissa do Estado, entidade federativa responsável pela administração penitenciária, demonstra descaso com a coletividade de presos que estão em condições desumanas, sem a prestação de assistência material e moral dignas, o que viola as disposições da Constituição da República, da Lei de Execuções Penais, além de regras internacionais, notadamente as Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Tratamento do Preso.

Luís Roberto Barroso ensina:

O princípio da dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios que se pode considerar incorporado ao patrimônio da humanidade, sem prejuízo da persistência de violações cotidianas ao seu conteúdo. Dele se extrai o sentido mais nuclear dos direitos fundamentais, para tutela da liberdade, da igualdade e para a promoção da justiça. No seu âmbito se inclui a proteção do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute dos direitos em geral. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. (...) Em síntese sumária, a dignidade da pessoa humana está no núcleo essencial dos direitos fundamentais, e dela se extrai a tutela do mínimo existencial e da personalidade humana, tanto na sua dimensão física como moral28.

Desta forma, considerando a notória violação dos direitos humanos dos presos, é de se observar que a declaração do “estado de coisas inconstitucional” pode não ser a solução única, mas pode ser tido como primeiro passo para a recuperação dos direitos violados, em observância ao nosso ordenamento jurídico, em especial, ao fundamento da Carta Constitucional, o princípio da dignidade da pessoa humana.

5. CONCLUSÃO

O que se verifica no presente artigo é a finalidade de apontar uma alternativa para reaver os direitos humanos violados, em especial, dos presos.

Vale destacar a frase de Norberto Bobbio:

Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados29.

Considerando que a violação dos direitos humanos é uma matéria que causa desconforto, uma vez que se deixa de observar os preceitos contidos na Carta Constitucional e demais legislações, sejam elas internas ou internacionais e, considerando que está afronta assola a sociedade como um todo, seria mister traçar uma maneira de diminuí-la. Assim, neste propósito de reaver os direitos humanos violados constantemente nasce a declaração de “estado de coisas inconstitucional”.

Quando desta declaração, o Judiciário passa a ter uma postura mais ativista, pois acaba por exercer funções atípicas, funções estas de competência dos outros Poderes. Ocorre que, em observância ao fundamento macro do ordenamento pátrio vigente, a dignidade da pessoa humana se faz presente, o que justifica o direito do Judiciário exercer tais funções, sem abuso.

O ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, há uma interpretação mais profunda dos dispositivos constitucionais com o propósito de que, de fato, estes passem a ser cumpridos. Quando se verifica uma violação massiva de direitos humanos, como no caso aqui abordado, no tocante aos presos, é relevante que o caso da Corte Constitucional Colombiana seja lembrado e a Corte Suprema, o Supremo Tribunal Federal, decrete o “estado de coisas inconstitucional” e, ao menos, tente amenizar a violação que é inaceitável e totalmente em desconformidade com a legislação pátria.

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Sobre os autores
Alessandro Neves Baroni

Mestre em Direito das Relações Sociais, Subárea de Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pós Graduado Lato Sensu (Especialista) em Direito Empresarial pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (2007). Pós Graduado Lato Sensu (Especialista) em Direito Público e Privado pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus (2005). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Alta Paulista (2003). Professor de Direito Penal, Processual Penal, Legislação Penal Especial e Direito Administrativo na Faculdade das Américas (FAM/SP). Professor do Curso GMF - preparatório para concursos públicos. Professor convidado do Curso para Concurso Público Claretiano. Atualmente é Servidor Público Estadual - Polícia Civil de São Paulo. Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Lattes: https://lattes.cnpq.br/8247784221123773︎,

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRADO, Ana Paula ; BARONI, Alessandro Neves. A violação dos direitos humanos e o estado de coisas inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8025, 21 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114029. Acesso em: 15 dez. 2025.

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