Nota de Atualização (do Editor): a Lei nº 15.211, de 17 de setembro de 2025 (Lei da Adultização) regulou a matéria em seu art. 20: "São vedadas as caixas de recompensa (loot boxes) oferecidas em jogos eletrônicos direcionados a crianças e a adolescentes ou de acesso provável por eles, nos termos da respectiva classificação indicativa."
Resumo: O presente artigo analisa criticamente a prática das loot boxes — caixas de recompensas virtuais adquiridas mediante pagamento — em jogos eletrônicos, com foco na necessidade de proteção jurídica dos consumidores, especialmente crianças e adolescentes. Embora amplamente adotadas como estratégia de monetização, as loot boxes operam com base em recompensas aleatórias, aproximando-se da lógica dos jogos de azar. Essa estrutura, aliada a estímulos visuais e sonoros que incentivam o consumo repetitivo, pode comprometer o discernimento de usuários em fase de desenvolvimento e fomentar comportamentos compulsivos. O estudo evidencia a ausência de regulamentação específica no Brasil, mesmo após a promulgação da Lei nº 14.852/2024, que reconheceu a indústria dos games, mas ignorou as práticas de monetização aleatória. A análise se apoia em dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei Geral de Proteção de Dados, além de examinar legislações internacionais mais avançadas. A pesquisa conclui que o modelo atual de loot boxes representa risco à formação psíquica infantil, à equidade nos jogos e à transparência contratual. Diante disso, propõe-se a criação de um marco regulatório específico, que contemple transparência nas probabilidades, restrição etária, controle parental e limites de gasto. A proteção da infância no ambiente digital não é incompatível com a liberdade econômica da indústria, sendo condição indispensável para um setor de jogos ético, responsável e juridicamente sustentável.
Palavras-chave: loot boxes; microtransações; direito do consumidor; infância; jogos eletrônicos; regulação jurídica.
Sumário: 1. Introdução. 2. Os problemas sociais das loot boxes e microtransações. 3. Hipervulnerabilidade da criança e do adolescente e o consumo digital. 4. Regulamentação atual no Brasil. 5. Análise comparativa internacional. 6. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
A indústria dos jogos eletrônicos tem experimentado um crescimento exponencial nas últimas décadas, consolidando-se como um dos setores mais lucrativos do entretenimento global. Em termos econômicos, esse mercado já supera as receitas do cinema e da música, tanto em faturamento quanto em alcance de público. Com sua consolidação, os jogos deixaram de ser simples passatempos para se tornarem plataformas complexas de interação social, competição, narrativa e, sobretudo, consumo.
Paralelamente ao seu avanço tecnológico e narrativo, surgiram novas formas de monetização capazes de ampliar as receitas das desenvolvedoras e manter a longevidade dos produtos no mercado. Entre essas práticas, destacam-se as chamadas microtransações, que consistem em compras realizadas dentro do próprio jogo para obtenção de vantagens, conteúdos extras ou elementos cosméticos. Dentre as microtransações, uma modalidade que tem gerado crescente polêmica é a das loot boxes, ou caixas de recompensa aleatória. Essas caixas contêm itens que variam em raridade e valor, e cujo conteúdo só é revelado após o pagamento, geralmente por meio de moeda virtual adquirida com dinheiro real, e sua subsequente abertura. Frequentemente, o usuário precisa adquirir chaves ou outros produtos para desbloqueá-las, sem qualquer garantia de receber um item de valor correspondente ao montante gasto.
Ainda que tais práticas sejam legítimas sob a perspectiva econômica, por promoverem a continuidade da experiência lúdica e gerarem recursos para as empresas, elas têm sido alvo de críticas em diversas partes do mundo. A principal controvérsia gira em torno da semelhança dessas dinâmicas com os jogos de azar, especialmente pela lógica de recompensa aleatória e pela ausência de transparência quanto às probabilidades de obtenção dos itens mais raros. Essa mecânica pode incentivar o consumo impulsivo, a repetição da compra em busca de recompensas mais vantajosas e, em casos extremos, configurar um comportamento de dependência semelhante ao observado em ambientes de apostas.
O problema se agrava quando tais práticas são direcionadas ou acessíveis a públicos vulneráveis, como crianças e adolescentes. Esses usuários, muitas vezes sem plena capacidade de discernimento, podem ser induzidos a gastar valores significativos sem compreensão clara dos riscos envolvidos. A inserção de elementos gamificados que estimulam a competição, o status social virtual e a escassez artificial de recompensas reforça ainda mais esse comportamento, tornando as loot boxes um desafio não apenas ético, mas também jurídico.
Nesse contexto, a promulgação da Lei nº 14.852/2024, que institui o marco legal da indústria de jogos eletrônicos no Brasil, representou um avanço ao reconhecer formalmente a relevância do setor e estabelecer parâmetros regulatórios para seu funcionamento. A norma trata de temas como a classificação indicativa dos jogos, políticas de incentivo à produção nacional e mecanismos de controle para transações financeiras envolvendo menores de idade.
No entanto, apesar de seu caráter inovador, a legislação não contempla, de forma específica e suficientemente detalhada, a questão das loot boxes. Tal omissão legislativa gera um vazio normativo que compromete a efetividade das medidas protetivas ao consumidor e impede a adoção de critérios mais claros e objetivos para a regulação dessas práticas1.
Considerando que crianças e adolescentes representam uma parcela expressiva do público consumidor de jogos eletrônicos, a ausência de dispositivos legais voltados à limitação e à transparência das loot boxes torna-se ainda mais preocupante. A fragilidade do arcabouço jurídico nacional em lidar com essa modalidade de monetização escancara a necessidade urgente de se refletir sobre os limites éticos e jurídicos da gamificação do consumo e de se buscar instrumentos normativos mais adequados à realidade tecnológica contemporânea.
Diante disso, este artigo propõe uma análise crítica da regulamentação das microtransações em jogos eletrônicos, com ênfase nas loot boxes, sob a perspectiva do direito do consumidor e da proteção de públicos vulneráveis. Por meio de uma abordagem qualitativa e exploratória, serão investigadas as lacunas da legislação brasileira, os impactos dessas práticas no comportamento dos usuários e as experiências internacionais que podem servir de referência para um aprimoramento normativo mais eficaz e justo.
Ao longo do artigo, pretende-se contribuir para o debate jurídico e social sobre os limites da monetização nos jogos eletrônicos e as obrigações do Estado e das empresas no tocante à proteção de seus usuários.
2. OS PROBLEMAS SOCIAIS DAS LOOT BOXES E MICROTRANSAÇÕES
A incorporação de mecanismos de monetização dentro dos jogos eletrônicos modificou radicalmente a maneira como os usuários interagem com esse tipo de produto. As microtransações, inicialmente voltadas a itens estéticos ou complementos, evoluíram para estruturas mais sofisticadas, entre as quais se destacam as loot boxes. A princípio tratadas como uma simples recompensa digital, essas caixas de conteúdo aleatório revelam uma faceta mais obscura quando observadas sob a perspectiva do consumo: a de uma prática que se aproxima perigosamente dos jogos de azar.
Não se trata apenas da compra de itens com dinheiro real. O que está em jogo, literalmente, é a expectativa da recompensa — o jogador paga, mas não sabe o que receberá. Essa incerteza é central na crítica que associa as loot boxes à lógica do azar, como demonstram os estudos de Zendle e Cairns citados por Fantini, Fantini e Garrocho (2019, p. 1255). A semelhança com caça-níqueis não é apenas simbólica: há elementos visuais, sonoros e operacionais idênticos, com a adição de uma estética lúdica que esconde o potencial lesivo da prática.
A problemática se agrava quando se observa o público atingido. Crianças e adolescentes, frequentemente os principais consumidores de jogos digitais, são expostos a essas dinâmicas sem qualquer filtro protetivo. Em sua fase de desenvolvimento, ainda não possuem estrutura psíquica consolidada para compreender as implicações desse tipo de monetização. Mais do que isso: são incentivados a consumir por meio de recompensas escassas, desafios diários e elementos de competição entre pares. A questão aqui é mais do que econômica — é ética.
Alguns jogos utilizam recursos visuais chamativos e sons de vitória ao abrir loot boxes. Essa ambientação foi pensada para causar estímulo imediato. O jogador sente prazer mesmo quando o prêmio é irrelevante, porque o ritual da abertura gera sensação de sucesso. Trata-se de um reforço psicológico que ativa áreas cerebrais relacionadas à dopamina, como relatado por Farias Filho (2019). O problema é que esse reforço não está sendo utilizado apenas para gerar engajamento, mas para vender, repetidamente, um produto incerto.
Muitos jogadores, principalmente os mais jovens, não percebem que estão entrando em um ciclo de consumo. Pagam uma vez, depois outra. Às vezes com moeda virtual, depois com cartão dos pais. E mesmo quando não gastam dinheiro real, são condicionados a investir tempo e esforço para obter uma caixa “gratuita”. Isso os insere na lógica da escassez artificial e da recompensa aleatória, tornando natural o desejo por algo que, muitas vezes, não tem valor funcional no jogo — mas que confere prestígio, status ou diferencial estético.
Esses aspectos revelam que as loot boxes operam em uma zona de sombra entre entretenimento e exploração. Não é difícil compreender por que alguns jovens acabam desenvolvendo comportamentos compulsivos. O cenário é ainda mais grave quando esses gastos escapam do controle dos pais e ocorrem sem mediação. A ausência de mecanismos obrigatórios de autenticação por idade, ou mesmo de alertas explícitos sobre a natureza aleatória das recompensas, evidencia uma lacuna na regulação (Barreto, 2022).
Há, também, uma questão de desigualdade social implicada nessa lógica. Jogadores que não têm como pagar por loot boxes frequentemente enfrentam desvantagens dentro do jogo — seja na progressão, seja na aparência dos seus personagens. É o chamado “pay-to-win” ou “pay-to-loot”: vence quem paga, não quem joga melhor. Essa prática mina a equidade dentro do ambiente virtual e reforça o consumo como pré-requisito de inclusão (Gonçalves; Gonçalves, 2018). Trata-se de um microcosmo de desigualdade, legitimado por uma estética gamificada.
Esse modelo de monetização, como já apontado por Neely (apud Fantini et al., 2019), distorce os próprios princípios do jogo enquanto espaço de aprendizado, superação e coletividade. Ele passa a ensinar que dinheiro compra reconhecimento, acelera resultados e garante vantagens. Essa lógica, internalizada desde a infância, pode afetar o modo como esses jovens passam a lidar com frustração, mérito e esforço — tanto no ambiente virtual quanto no real.
Em outra camada, menos visível, mas igualmente preocupante, está a coleta e uso de dados dos jogadores. As empresas rastreiam hábitos, horários de jogo, tempo médio de uso, preferências e padrões de consumo. Com esses dados, personalizam ofertas de loot boxes, usando algoritmos para apresentar recompensas no momento em que o jogador está mais propenso a gastar. Esse cruzamento entre gamificação e capitalismo de vigilância, como denuncia Zuboff (2021), cria um ciclo vicioso de engajamento e consumo que ultrapassa as barreiras do jogo e penetra na intimidade do jogador.
E, novamente, voltamos ao público vulnerável. Crianças não têm plena consciência do que significa aceitar termos de privacidade ou compartilhar seus dados. Ainda assim, são induzidas a clicar em “aceitar” para conseguir jogar. Como aponta Nishiyama (2015), a hipervulnerabilidade infantil no ambiente digital exige proteção especial. No entanto, o que se observa é a normalização da exposição a práticas que, se fossem feitas em qualquer outro setor, seriam amplamente condenadas.
No Brasil, a falta de regulação específica sobre loot boxes permite que essas práticas ocorram livremente. A Lei nº 14.852/2024, embora reconheça o setor de games, silencia quanto à monetização aleatória. Isso cria um vácuo normativo que fragiliza qualquer tentativa de responsabilização, seja no campo do direito do consumidor, seja no campo da proteção de dados (Almeida, 2024). A responsabilização recai, assim, sobre os próprios usuários e suas famílias, o que é profundamente injusto diante da assimetria entre empresas e consumidores.
Em outros países, medidas mais rigorosas já foram tomadas. A Bélgica, por exemplo, classificou loot boxes como jogos de azar, proibindo sua comercialização em determinados formatos. A China exige transparência total sobre as chances de obtenção de itens raros. Já o Japão, que enfrentou uma crise semelhante com o jogo Gacha, optou por proibir a prática. Esses exemplos mostram que é possível regular de maneira responsável sem inviabilizar o mercado (Barreto, 2022; Koeder et al., 2018).
No Brasil, apesar de algumas ações civis públicas ajuizadas — como as que foram impulsionadas pela ANCED — ainda falta um posicionamento legislativo firme. As decisões judiciais são isoladas, e muitas vezes enfrentam resistência técnica ou desconhecimento do Judiciário sobre o funcionamento real dos jogos. Isso impede avanços mais concretos na proteção da infância frente ao consumo digital.
É necessário dizer que a crítica às loot boxes não é uma rejeição à indústria dos jogos. Ao contrário. Reconhece-se o valor cultural, econômico e social dos games. O que se questiona é o uso de estratégias opacas e exploratórias dentro de um ambiente que, por sua natureza, atrai públicos hipervulneráveis. Essa crítica parte da compreensão de que o lazer digital pode ser uma ferramenta de desenvolvimento, desde que não esteja submetido exclusivamente à lógica da mercantilização do comportamento.
No limite, o problema das loot boxes revela o quanto estamos despreparados para lidar com os efeitos da gamificação comercial. Quando o prazer do jogo se torna refém do gasto, e quando a recompensa depende mais do quanto se paga do que do quanto se joga, há algo de fundamentalmente errado nesse modelo. A regulação não é uma censura — é uma tentativa de reequilibrar essa balança.
É, portanto, urgente que o debate sobre microtransações e loot boxes avance no Brasil com seriedade, rigor técnico e sensibilidade social. Sem isso, continuaremos permitindo que empresas operem práticas que geram dependência, desigualdade e frustração, disfarçadas sob o manto da diversão digital. A responsabilização, a transparência e a proteção de públicos vulneráveis devem ser centrais em qualquer política pública voltada para o setor.
3. HIPERVULNERABILIDADE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O CONSUMO DIGITAL
A estrutura legal brasileira reconhece, de forma inequívoca, a criança e o adolescente como sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento. O artigo 227 da Constituição Federal estabelece que esses indivíduos devem ser protegidos com absoluta prioridade, incumbindo à família, ao Estado e à sociedade o dever de assegurar-lhes os direitos à vida, à saúde, ao lazer, à dignidade e à formação moral. Quando o ambiente digital — notadamente o setor de jogos eletrônicos — falha em implementar salvaguardas eficazes contra práticas abusivas, como as loot boxes, essa garantia constitucional deixa de ser efetivada, revelando um descompasso entre o avanço tecnológico e a proteção jurídica.
Cláudia Lima Marques é uma das principais referências no Direito do Consumidor no Brasil. Em suas obras, ela destaca a importância de reconhecer a hipervulnerabilidade de crianças e adolescentes, especialmente no contexto digital. Marques (2019) argumenta que, devido à sua condição peculiar de desenvolvimento, esse público é particularmente suscetível às práticas comerciais abusivas presentes no ambiente online. Ela enfatiza que a proteção desses consumidores deve ser reforçada, considerando os riscos associados às novas tecnologias e à publicidade direcionada.
Além disso, Marques (2019) ressalta que a legislação brasileira, como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente, já prevê mecanismos de proteção para esses grupos. No entanto, ela defende a necessidade de uma atualização constante dessas normas para acompanhar as transformações do mercado digital. A autora também destaca a importância da educação digital e do fortalecimento das políticas públicas voltadas à proteção da infância e adolescência no consumo eletrônico.
Já Benjamim (1994), introduziu o conceito de hipervulnerabilidade para descrever consumidores que, por suas características específicas, necessitam de proteção jurídica especial. O autor enfatiza que crianças e adolescentes se enquadram nesse grupo devido à sua limitada capacidade de discernimento e à influência que a publicidade pode exercer sobre eles.
Benjamin (1994) também alerta para os perigos da publicidade abusiva direcionada ao público infantil, especialmente no ambiente digital. Ele argumenta que a exposição constante a mensagens comerciais pode afetar negativamente o desenvolvimento psicológico e social das crianças. Dessa maneira, seria fundamental que o Estado e a sociedade civil atuem de forma proativa na regulamentação e fiscalização dessas práticas, garantindo um ambiente de consumo mais seguro e ético para os jovens consumidores.
Mais do que consumidores vulneráveis, crianças e adolescentes são hipervulneráveis no ambiente digital, conforme classificação já consolidada na doutrina nacional. Essa hipervulnerabilidade resulta da sobreposição de diversas limitações: cognitivas, emocionais, econômicas, técnicas e jurídicas. Nishiyama (2015) argumenta que, em tais situações, os princípios gerais do direito do consumidor — como o direito à informação clara, à proteção contra práticas enganosas e à igualdade nas relações contratuais — devem ser interpretados com máxima amplitude, sob pena de se permitir a exploração institucionalizada da inocência e da imaturidade.
A Lei nº 8.069/1990 (ECA) trata com precisão desse dever de proteção. O artigo 17 assegura o direito à inviolabilidade da integridade psíquica e moral da criança, o que inclui o respeito à sua identidade e individualidade. Ora, quando uma criança é exposta repetidamente a mecanismos de recompensa aleatória que exploram sua impulsividade natural, a integridade psíquica fica comprometida. A consequência é mais profunda do que um mero prejuízo econômico — trata-se de um possível dano ao próprio processo formativo do sujeito, especialmente em uma sociedade que estimula o consumo desde os primeiros anos de vida.
Não se pode ignorar que as loot boxes operam dentro de um sistema de reforço intermitente, similar ao das máquinas caça-níqueis, com gatilhos visuais e sonoros cuidadosamente projetados para estimular a repetição da compra. A prática, portanto, não é meramente estética ou funcional: ela manipula variáveis comportamentais para condicionar reações automáticas de consumo. Isso é particularmente grave quando aplicado a usuários com julgamento em formação, cuja capacidade de autocontrole ainda está em desenvolvimento. Nesses casos, a neutralidade da empresa diante das consequências de sua própria arquitetura comercial é juridicamente inaceitável.
Sob a ótica contratual, não há como considerar válida a adesão de uma criança a uma relação de consumo que envolve aleatoriedade, coleta de dados e pagamento com dinheiro real ou seu equivalente digital. A ausência de informação clara, combinada com a ausência de consentimento real dos pais ou responsáveis, torna essa adesão nula de pleno direito. O artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor reforça que a informação adequada, acessível e ostensiva é um direito básico. Não é possível que tal princípio seja relativizado simplesmente porque o produto é digital, interativo ou voltado ao entretenimento.
A omissão legislativa brasileira quanto à regulação específica das loot boxes1 não pode ser interpretada como autorização tácita. Em temas que envolvem infância e consumo, vigora o princípio da precaução: diante da incerteza quanto aos efeitos psíquicos, sociais e econômicos de determinada prática, deve-se optar pela proteção ao hipervulnerável. Tal orientação está em consonância com o artigo 1º, inciso III, da Constituição, que consagra a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. Logo, mesmo na ausência de norma expressa, a Constituição impõe limites materiais à exploração comercial infantil.
Esse vácuo normativo é particularmente grave porque o setor de games opera em escala transnacional, com dinâmicas comerciais e tecnológicas altamente sofisticadas. A ausência de barreiras eficazes no Brasil transforma o país em um mercado permissivo. Não há qualquer impedimento técnico que restrinja o acesso de crianças a jogos com loot boxes. Tampouco há mecanismos obrigatórios de consentimento parental para transações que envolvam dinheiro real. Em termos práticos, temos um modelo de mercado que opera à revelia do arcabouço protetivo previsto na legislação infraconstitucional.
A Lei nº 13.709/2018 (LGPD) é outro instrumento que precisa ser resgatado nesse contexto. O artigo 14 dispõe que o tratamento de dados de crianças deve ser realizado com consentimento específico de pelo menos um dos pais ou responsável legal, e com destaque às informações relevantes. Contudo, na prática, os jogos coletam informações sensíveis, como tempo de uso, comportamento in-game e perfil de consumo, e utilizam tais dados para personalizar a oferta de loot boxes. Essa conduta não apenas viola a LGPD como agrava a condição de exposição da criança diante de práticas de mercado baseadas em vigilância comportamental.
A proteção a esses consumidores deve também ser compreendida como condição de legitimidade do próprio setor de games. Não se trata de oposição entre liberdade de mercado e proteção de direitos fundamentais, mas da necessária compatibilização entre esses valores. A indústria pode e deve crescer — mas não à custa da infância. O entretenimento digital precisa respeitar os limites da função social do consumo, do contrato e da própria tecnologia. Empresas que ignoram essa responsabilidade incorrem não apenas em abuso de direito, mas em verdadeira afronta ao sistema constitucional de proteção.
A título de comparação normativa, vale mencionar que outros ordenamentos já enfrentaram esse desafio com maior contundência. A Bélgica e os Países Baixos, por exemplo, classificaram as loot boxes como jogos de azar, restringindo seu uso ou impondo exigências severas quanto à transparência e à restrição etária. Esses países partiram da premissa de que, na dúvida entre o lucro e a proteção da infância, deve prevalecer a segunda. Tal postura poderia inspirar o legislador brasileiro a adotar uma abordagem semelhante, condizente com os compromissos constitucionais assumidos internamente.
Outro ponto que merece destaque é a naturalização do consumo como forma de socialização. Jogos com loot boxes inserem na experiência lúdica a lógica de que é necessário gastar para progredir, vencer ou ser reconhecido. Esse tipo de mensagem, internalizado na infância, pode produzir impactos duradouros sobre a formação da personalidade e sobre a relação do sujeito com o consumo. O risco, aqui, não é apenas financeiro — é cultural. É a construção de uma subjetividade atravessada pela ideia de que valor e prestígio decorrem de aquisições, mesmo que aleatórias.
No plano pedagógico, também se deve refletir sobre os efeitos colaterais de se permitir que jogos com elementos de sorte sejam consumidos indiscriminadamente por crianças. Ainda que a escola não consiga controlar o conteúdo digital acessado por seus alunos, é papel do Estado garantir que tais produtos estejam sujeitos a normas claras e a mecanismos eficazes de classificação indicativa, conforme previsto no artigo 21, inciso XVI, da Constituição. A ausência de políticas públicas específicas nesse ponto só acentua o desequilíbrio já existente entre o mercado e a infância.
Seria incorreto afirmar que o problema reside apenas nas empresas. A responsabilidade é compartilhada com o poder público, que tem se mostrado lento na formulação de respostas normativas e regulatórias. O Ministério da Justiça, por exemplo, ainda carece de diretrizes técnicas voltadas à regulação da monetização em jogos. Os Procons, por sua vez, nem sempre têm o ferramental técnico necessário para identificar e coibir práticas abusivas em plataformas digitais. Isso exige investimentos em capacitação institucional, articulação federativa e atuação coordenada com a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
Portanto, a importância de proteger esses consumidores hipervulneráveis vai além da análise pontual das loot boxes. Trata-se de reconhecer que o modelo econômico digital contemporâneo precisa de limites jurídicos claros quando envolve sujeitos em formação. Não é admissível que a infância seja tratada como nicho de mercado sem que isso acione mecanismos de tutela. A omissão regulatória é, nesse caso, forma indireta de conivência com práticas exploratórias.
A proteção jurídica da infância é um imperativo que antecede qualquer inovação tecnológica. O desafio do Direito contemporâneo é justamente esse: acompanhar as transformações sociais sem perder de vista a centralidade da dignidade humana. Crianças não são apenas jogadoras ou consumidoras. São pessoas em formação, com direitos próprios e inalienáveis — e é dever de todo o sistema jurídico garantir que esses direitos não sejam apagados pela luz colorida das recompensas digitais aleatórias.