4. REGULAMENTAÇÃO ATUAL NO BRASIL
A regulamentação das loot boxes no Brasil ainda se encontra em estágio embrionário1, apesar do crescimento expressivo da indústria de jogos eletrônicos e da crescente popularidade das microtransações como principal forma de monetização. Ao contrário do que se verifica em outros países, como Bélgica, Holanda e Japão, o Estado brasileiro ainda não enfrentou, de forma direta, a complexidade dessas práticas no âmbito legislativo. O resultado disso é um ambiente jurídico marcado por lacunas, interpretações extensivas e dificuldade de fiscalização. Essa ausência de regulação específica revela uma fragilidade institucional preocupante, sobretudo quando o público alvo é composto por consumidores vulneráveis — crianças e adolescentes.
O principal avanço recente na matéria foi a promulgação da Lei nº 14.852/2024, que institui o Marco Legal da Indústria de Jogos Eletrônicos. Trata-se de uma norma inovadora em muitos aspectos, por reconhecer os jogos como expressão cultural, estimular a produção nacional e estabelecer diretrizes para políticas públicas de incentivo ao setor. No entanto, quando se trata da monetização por loot boxes, a lei é absolutamente silenciosa. Nenhum artigo menciona, ainda que de forma indireta, o comércio de itens virtuais obtidos aleatoriamente mediante pagamento. Isso demonstra que, embora a indústria tenha obtido reconhecimento legal, a proteção do consumidor — especialmente o hipervulnerável — ainda não recebeu atenção proporcional.
Diante da omissão legislativa específica, a interpretação jurídica tem se apoiado em dispositivos já existentes, sobretudo o Código de Defesa do Consumidor. O artigo 6º, inciso III, prevê como direito básico do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços. No caso das loot boxes, é comum que o consumidor não saiba as probabilidades reais de obter um item raro, tampouco compreenda os termos do contrato que está aceitando ao realizar a compra. Isso se agrava quando o público é formado por crianças, que sequer possuem plena capacidade civil para contratar. A ausência de informações claras e ostensivas constitui infração ao direito à transparência e à boa-fé objetiva, pilares centrais do direito do consumidor.
Vale destacar que, além do dever de informar, o CDC também proíbe práticas abusivas. O artigo 39, inciso IV, considera abusiva a conduta do fornecedor que se aproveita da fraqueza ou ignorância do consumidor, levando em conta sua idade, saúde ou condição social. Jogos com loot boxes costumam ser promovidos em plataformas com estética infantil, linguagem simplificada e apelos visuais que estimulam a repetição de compras. Quando se explora a ingenuidade infantil com fins lucrativos, configura-se não apenas uma falha contratual, mas uma infração de ordem pública que precisa ser coibida com rigor.
Outro ponto frequentemente ignorado na regulamentação é a manipulação emocional produzida pelas loot boxes. Elementos como sons de vitória, luzes piscando e animações chamativas são usados intencionalmente para ativar os sistemas de recompensa no cérebro. Estudos em neuropsicologia apontam que tais estímulos, combinados com a incerteza do resultado, mimetizam os efeitos provocados por máquinas caça-níqueis. Ao transportar essa lógica para o ambiente digital, as empresas criam uma atmosfera de jogo de azar dentro de um espaço de lazer — sem qualquer regulação equivalente. Embora o art. 50. do Decreto-Lei nº 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais) proíba expressamente jogos de azar, a legislação brasileira ainda não definiu se as loot boxes se enquadram nessa categoria, deixando a questão em zona cinzenta jurídica.
Juridicamente, isso gera uma dificuldade relevante: se as loot boxes são ou não consideradas jogos de azar. Alguns autores, como Jacob (2024), sustentam que a aleatoriedade, somada à contrapartida financeira e à promessa de recompensa, configura todos os elementos típicos do jogo de aposta. No entanto, por ausência de previsão legal expressa, ainda prevalece no Brasil a tese de que tais práticas não se enquadram como contravenção penal, a menos que haja uma reforma legislativa clara nesse sentido. Tal indefinição legislativa deixa o consumidor desprotegido e o fornecedor sem parâmetros legais objetivos.
Jacob (2024), por exemplo, argumenta que essas práticas devem ser analisadas à luz do direito privado, por meio da teoria contratual do emptio rei speratae. Para o autor, a venda de loot boxes configura um contrato aleatório, em que o consumidor paga por algo cujo conteúdo é incerto, o que se aproxima das características dos jogos de azar. Jacob destaca ainda que, em casos de manipulação intencional da aleatoriedade por parte das empresas, o consumidor pode buscar o ressarcimento dos valores pagos, configurando-se uma clara lesão contratual.
Observa-se, portanto, que a ausência de regulação específica compromete a efetividade da proteção jurídica do consumidor, sobretudo quando se trata de públicos vulneráveis. O atual cenário normativo, fragmentado e omisso, permite que empresas explorem a impulsividade infantil por meio de práticas de monetização opacas, sem que haja qualquer tipo de controle institucional efetivo. Manifesta-se urgente que o legislador brasileiro adote medidas regulatórias claras, capazes de coibir a exploração comercial da imaturidade e da vulnerabilidade infantojuvenil. (Ruiz Junior, 2020)
O Estatuto da Criança e do Adolescente também pode e deve ser utilizado como instrumento de proteção contra os efeitos nocivos das loot boxes. O artigo 81, inciso VI, proíbe a venda de produtos que causem dependência física ou psíquica a menores de 18 anos. Ainda que não se trate de substância química, os jogos com mecânicas de recompensa aleatória produzem efeitos comportamentais semelhantes aos da adição: o desejo de repetição, a frustração com resultados negativos, e o impulso por mais uma tentativa. Esse ciclo vicioso, quando direcionado ao público infantil, pode ser lido como forma de exploração comercial da vulnerabilidade psíquica — prática inadmissível sob a ótica constitucional.
Além disso, o artigo 17 do ECA assegura à criança o direito à integridade física, psíquica e moral. Se reconhecermos que o consumo desmedido de loot boxes afeta o equilíbrio emocional e a autonomia infantil, então o Estado não pode permanecer inerte. A atuação legislativa, nesse sentido, não seria apenas desejável, mas obrigatória, à luz do artigo 227 da Constituição, que estabelece a prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente. Essa prioridade não é retórica: é norma cogente, com força vinculativa sobre todas as esferas do poder público.
Outro aspecto fundamental, mas frequentemente esquecido no debate público, é o tratamento de dados pessoais no contexto dos jogos eletrônicos. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em seu artigo 14, exige consentimento específico dos pais ou responsáveis para o tratamento de dados de menores de idade. No entanto, grande parte dos jogos coleta informações de comportamento de consumo, tempo de uso, preferências de compra e interações online, sem oferecer qualquer mecanismo de controle parental. Isso coloca o menor em situação de exposição indevida e viola frontalmente a legislação de proteção de dados.
Mais grave ainda: os dados coletados são utilizados para personalizar ofertas de loot boxes, com base em algoritmos que identificam momentos de maior propensão ao gasto. Isso não é apenas antiético — é ilegal. A criança passa a ser alvo de publicidade direcionada, sem sequer compreender que está sendo manipulada. Tal prática contraria não apenas a LGPD, mas também o artigo 37 do CDC, que veda a publicidade abusiva voltada ao público infantil. O ambiente digital, nesse caso, transforma-se em uma vitrine de exploração disfarçada de entretenimento.
A jurisprudência brasileira ainda é tímida, mas já existem sinais de movimentação. A Ação Civil Pública movida pela ANCED contra empresas de jogos, protocolada sob o nº 0701552-16.2021.8.07.0013, busca responsabilizar os desenvolvedores por danos morais coletivos causados pela exploração de loot boxes direcionadas a crianças. Embora o processo ainda esteja em tramitação, ele representa um importante precedente e pode abrir caminho para decisões mais robustas sobre o tema.
A doutrina brasileira, por sua vez, já vem alertando sobre a insuficiência da legislação atual. Fantini, Fantini e Garrocho (2019) destacam que o modelo de loot boxes representa uma forma de monetização que escapa aos padrões regulatórios clássicos e exige uma resposta normativa alinhada à complexidade das relações de consumo digitais. Para os autores, a aplicação extensiva do CDC é um paliativo que não resolve as questões centrais do problema.
Outro ponto crítico é a ausência de padronização na Classificação Indicativa de jogos com loot boxes. Apesar de a Portaria nº 1.189/2018, do Ministério da Justiça, prever a menção a “compras com itens aleatórios” nos critérios de avaliação, isso não resulta em qualquer impedimento concreto para o acesso de menores. O aviso funciona mais como orientação do que como barreira real. Na prática, crianças continuam tendo acesso irrestrito a jogos com microtransações aleatórias, mesmo quando a classificação etária sugere o contrário.
No campo normativo, o Brasil parece caminhar na contramão de países que já enfrentaram esse debate. Na Bélgica, por exemplo, as loot boxes foram equiparadas a jogos de azar e sua comercialização foi proibida. O mesmo ocorreu na Holanda. No Japão, a prática só é permitida sob condição de divulgação explícita das chances de obter cada item. Esses países compreenderam que, diante da incerteza quanto aos efeitos das loot boxes, deve prevalecer o princípio da precaução — algo que o ordenamento jurídico brasileiro, até o momento, reluta em aplicar ao contexto digital.
A ausência de uma norma nacional específica impede não apenas a responsabilização eficaz das empresas, mas também a formulação de políticas públicas de proteção digital para crianças. Sem diretrizes claras, os órgãos de defesa do consumidor, como os Procons, atuam de forma desarticulada e reativa. O Ministério Público, por sua vez, carece de mecanismos técnicos para realizar investigações mais apuradas sobre as estruturas internas dos jogos. O resultado é um ciclo de ineficácia institucional que perpetua o desequilíbrio na relação de consumo.
Portanto, a regulamentação atual no Brasil é fragmentada, dispersa e insuficiente para enfrentar os desafios concretos impostos pelas loot boxes. A aplicação de normas genéricas, ainda que útil em alguns casos, não substitui a urgência de uma legislação própria, voltada especificamente para esse tipo de prática digital. Enquanto isso não ocorre, o consumidor — especialmente o menor de idade — segue desprotegido diante de uma lógica de mercado que combina entretenimento com exploração econômica e emocional.
5. ANÁLISE COMPARATIVA INTERNACIONAL
O debate sobre a regulamentação das loot boxes não é exclusivo do Brasil e tem provocado reações distintas em diferentes países. As abordagens variam entre proibições expressas, exigência de transparência, autorregulação da indústria e, em alguns casos, total ausência de normatividade. Essa pluralidade de soluções legislativas e políticas revela os desafios que os ordenamentos enfrentam diante de práticas comerciais digitais que não se enquadram nos moldes tradicionais de consumo, mas que afetam diretamente públicos vulneráveis — como é o caso de crianças e adolescentes, conforme já alertam Fantini, Fantini e Garrocho (2019).
No Japão, as loot boxes, conhecidas como “gacha”, são amplamente populares. O país optou por um modelo de regulação híbrido, combinando autorregulação setorial com medidas estatais pontuais. Após o escândalo envolvendo o sistema “kompu gacha”, considerado excessivamente predatório por exigir que o jogador comprasse diversas caixas para completar uma recompensa final, a Consumer Affairs Agency passou a exigir que as empresas divulgassem as probabilidades de obtenção dos itens virtuais. Embora não haja legislação federal específica que proíba as loot boxes, a aplicação da Act against Unjustifiable Premiums and Misleading Representations tem funcionado como instrumento de controle contra práticas enganosas. Essa postura proativa, ainda que moderada, contrasta com a ausência de medidas mínimas no Brasil, onde sequer há exigência de exibição das probabilidades ou de classificação específica (Xia; Zhang, 2022).
A China, por outro lado, adotou uma das regulamentações mais rigorosas do mundo. Desde 2017, o governo chinês determinou que todos os jogos com loot boxes devem exibir de forma pública e clara as probabilidades de obtenção de cada item. Adicionalmente, é proibido o uso de dinheiro real diretamente para aquisição das caixas — o que deve ser feito por meio de moedas virtuais adquiridas previamente. Mais recentemente, o país impôs limites de gastos mensais por faixa etária e proibiu o acesso a jogos com esse tipo de monetização para menores de oito anos. Essas medidas refletem uma política de Estado voltada não apenas à regulação econômica do setor, mas à proteção concreta da infância. O contraste com o Brasil é evidente: apesar do ECA e da LGPD fornecerem fundamentos normativos que poderiam embasar medidas similares, como observam Gonçalves e Gonçalves (2018), o país ainda não possui qualquer restrição legal quanto à idade mínima ou aos limites de gastos relacionados às loot boxes.
Nos Estados Unidos, a falta de uma legislação federal unificada resultou em uma regulamentação fragmentada. Algumas iniciativas estaduais, como as propostas no Havaí e no estado de Washington, buscaram restringir o acesso de menores a jogos com loot boxes e exigir transparência nas chances de obtenção dos itens. Em nível nacional, o projeto de lei S.1629, apresentado em 2019, tentou proibir microtransações "pay-to-win" e loot boxes em jogos direcionados a menores, mas não avançou. Mesmo assim, houve avanços na esfera administrativa: a Federal Trade Commission (FTC) multou recentemente uma desenvolvedora em US$ 20 milhões por vender loot boxes para menores sem informar as probabilidades e sem consentimento adequado (Comissão Federal de Comércio dos EUA, 2025). Ainda que não haja um marco regulatório consolidado, os Estados Unidos demonstram um esforço institucional em frear abusos — algo que o Brasil, até aqui, tem feito de forma isolada, por meio de ações civis públicas como a movida pela ANCED, mas sem qualquer resposta legislativa significativa (Barreto, 2022).
A União Europeia também não conta com uma regulação unificada, mas o Parlamento Europeu tem pressionado por diretrizes comuns. O relatório de 2020 publicado pela European Parliamentary Research Service (2020) destacou os riscos das loot boxes, em especial para jovens consumidores, e sugeriu que essas práticas sejam tratadas como matéria de proteção ao consumidor — não apenas como uma questão lúdica ou de entretenimento. Países como Bélgica e Países Baixos já adotaram proibições formais quando as loot boxes envolvem elementos de azar, classificando-as como jogos de aposta ilegais. Por outro lado, França e Suécia ainda conduzem estudos sobre os impactos comportamentais e econômicos dessa prática, e a Alemanha passou a incluir a presença de loot boxes como critério de classificação etária obrigatória dos jogos. Esses dados demonstram um avanço significativo em termos de responsabilização e transparência — e reforçam o quanto o Brasil, apesar da robustez de sua legislação consumerista, ainda se mostra reticente em adaptar normas gerais ao ambiente digital de forma eficaz (European Parliament, 2020).
Quando comparado a esses países, o Brasil apresenta uma abordagem ainda embrionária. Apesar da promulgação do Marco Legal dos Jogos Eletrônicos pela Lei nº 14.852/2024, nenhuma disposição da norma trata das loot boxes ou das microtransações. Rios (2019) observa que essa omissão legislativa gera um vazio normativo preocupante, pois impede que o sistema jurídico acompanhe as transformações nas formas de consumo digital. A aplicação do Código de Defesa do Consumidor, embora possível em termos principiológicos (transparência, boa-fé, equilíbrio contratual), se dá de forma casuística e reativa, geralmente por meio do Judiciário ou dos órgãos de proteção ao consumidor.
Ademais, diferentemente da União Europeia, onde há um movimento coordenado de observação e padronização das práticas, no Brasil inexiste qualquer sinalização institucional de que o tema será tratado como prioridade. Como apontam Fantini, Fantini e Garrocho (2019), a proteção do consumidor infantojuvenil nas relações de consumo digitais exige mais do que aplicação subsidiária de normas tradicionais — demanda a construção de novos referenciais normativos que levem em conta a especificidade da linguagem, da estrutura e da lógica envolvida nas plataformas de jogos eletrônicos.
Em síntese, o cenário internacional demonstra que é possível adotar medidas equilibradas, capazes de preservar a liberdade econômica das desenvolvedoras sem abrir mão da proteção de públicos vulneráveis. China e Japão oferecem modelos mais rígidos e eficazes; a União Europeia, apesar da heterogeneidade, aponta para uma tendência regulatória clara. Os Estados Unidos, mesmo sem legislação nacional, investem na responsabilização administrativa. O Brasil, embora possua aparato normativo extenso, ainda não traduziu sua legislação em mecanismos concretos para enfrentar as práticas predatórias das loot boxes. Diante disso, torna-se imperativo observar os exemplos internacionais não como modelos a serem copiados integralmente, mas como horizontes possíveis para inspirar uma regulação própria, coerente com os princípios constitucionais de proteção à infância, dignidade da pessoa humana e defesa do consumidor.