6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste artigo, foi possível demonstrar que o sistema das loot boxes, apesar de inicialmente concebido como um elemento de entretenimento, assumiu proporções que ultrapassam a mera ludicidade. O modelo, baseado na aleatoriedade de recompensas em troca de pagamento, configura um mecanismo que, em muitos aspectos, se aproxima da lógica dos jogos de azar. Essa característica é especialmente preocupante quando se considera que tais práticas são acessadas de forma indiscriminada por crianças e adolescentes, que integram uma camada social particularmente vulnerável e hipossuficiente do ponto de vista contratual e informacional.
Não se trata de um fenômeno isolado ou trivial. As evidências reunidas ao longo deste trabalho apontam para uma tendência estruturada de mercantilização do comportamento dentro dos ambientes de jogos eletrônicos, em que a repetição do consumo é estimulada por artifícios visuais e sonoros cuidadosamente desenhados para gerar excitação e engajamento. A ausência de uma legislação específica no ordenamento jurídico brasileiro coloca o país em uma posição delicada, pois transfere para os instrumentos jurídicos tradicionais — como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente — a responsabilidade de preencher lacunas normativas que exigem, na verdade, soluções regulatórias próprias da era digital.
A análise comparada com outros países mostrou que o Brasil está atrasado no enfrentamento do problema. Enquanto países como Bélgica, Japão e China adotaram medidas concretas para conter os efeitos potencialmente lesivos das loot boxes — seja por meio da proibição direta, seja pela imposição de transparência e limites etários —, o Brasil ainda debate se essas práticas sequer devem ser consideradas jogos de azar1. Essa inércia regulatória tem efeitos concretos: perpetua-se um ambiente em que empresas exploram o desconhecimento e a impulsividade de seus usuários mais jovens, sem que haja qualquer barreira legal eficaz para conter os abusos.
Além da omissão legislativa, existe uma questão de fundo que não pode ser ignorada. O atual modelo de monetização via loot boxes transforma o consumo em pré-requisito para a experiência plena dentro do jogo. Essa lógica compromete os princípios de isonomia e meritocracia que, em teoria, deveriam estruturar os ambientes virtuais. Aqueles que não podem pagar ficam à margem, e os que pagam são premiados com vantagens, status e diferenciais estéticos. O jogo, que deveria ser espaço de recreação e desenvolvimento, transforma-se em plataforma de reprodução das desigualdades do mundo real.
Essa monetização agressiva opera, portanto, sob uma estética de neutralidade que precisa ser desmistificada. A linguagem leve, os gráficos coloridos e a atmosfera infantilizada dos jogos ocultam o que, no fundo, é um sistema de coleta de dados, manipulação comportamental e maximização de lucro. A ausência de responsabilização das empresas e a fragilidade dos instrumentos de controle estatal apenas aprofundam esse desequilíbrio. A Constituição Federal, ao dispor no artigo 227 sobre a prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente, exige do Estado ação concreta. E isso inclui legislar, fiscalizar e punir, sempre que o mercado colocar o lucro acima da dignidade da infância.
Dizer que é necessário regular as loot boxes não é, de forma alguma, negar a importância da indústria de jogos. Muito pelo contrário: trata-se de reconhecer o valor desse setor e garantir sua sustentabilidade ética e jurídica. A regulação, quando bem formulada, não destrói o mercado — ela o qualifica. Ao estabelecer limites, impõe também segurança jurídica e previsibilidade, o que é positivo para desenvolvedores, consumidores e instituições públicas. A omissão legislativa, por sua vez, além de fragilizar os direitos fundamentais, abre espaço para judicializações fragmentadas e decisões contraditórias, o que torna ainda mais instável o ambiente jurídico nacional.
A criação de um marco regulatório específico para loot boxes e microtransações, portanto, não é apenas recomendável: é imperativa. Esse novo instrumento normativo deve contemplar dispositivos claros sobre divulgação obrigatória de probabilidades, mecanismos de controle parental, restrições de idade, limites de gasto para menores de idade, sanções em caso de descumprimento e fiscalização sistemática por parte de órgãos especializados. Além disso, é preciso garantir que essas normas sejam compatíveis com os demais marcos protetivos, como a LGPD e o CDC, criando uma rede normativa coesa e efetiva.
Também é fundamental que o sistema jurídico brasileiro reconheça a hipervulnerabilidade do público infantil no ambiente digital. A proteção dos dados pessoais, a transparência nas relações de consumo e a vedação à publicidade abusiva não são princípios abstratos: são ferramentas concretas para equilibrar a relação entre usuários e empresas. O tratamento de crianças como consumidores deve ser feito com especial cautela, e nunca com base em critérios meramente mercadológicos.
Essa discussão, embora ainda incipiente no âmbito legislativo, já vem ganhando espaço na academia e nos órgãos de defesa do consumidor. Iniciativas isoladas do Ministério Público, de entidades civis e de pesquisadores vêm chamando a atenção para os riscos sociais e jurídicos das loot boxes. O desafio, agora, é transformar esse acúmulo de conhecimento e indignação em uma resposta institucional concreta, que seja capaz de proteger o público vulnerável sem comprometer a vitalidade econômica do setor de jogos eletrônicos.
Este trabalho, embora limitado em escopo, buscou contribuir para esse debate com seriedade e rigor jurídico. Ao apresentar os riscos, os vazios normativos, as experiências estrangeiras e as propostas de aprimoramento legal, espera-se ter fornecido elementos suficientes para inspirar futuras pesquisas, discussões legislativas e políticas públicas. A era digital impõe novos desafios ao Direito, e é dever da ciência jurídica responder a eles com criatividade, responsabilidade e compromisso ético.
Se há algo que este estudo deixa claro, é que a infância não pode ser um campo de experimentação comercial irrestrita. O consumo digital precisa de limites. A diversão deve continuar sendo possível — mas nunca às custas da formação psíquica, da liberdade de escolha e da dignidade das crianças e adolescentes.
REFERÊNCIAS
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Abstract: This article critically analyzes the practice of loot boxes — virtual reward boxes acquired through payment — in electronic games, focusing on the need for legal protection of consumers, especially children and adolescents. Although widely adopted as a monetization strategy, loot boxes operate based on random rewards, approaching the logic of gambling. This structure, combined with visual and audio stimuli that encourage repetitive consumption, can compromise the discernment of users in the development phase and foster compulsive behaviors. The study highlights the lack of specific regulation in Brazil, even after the enactment of Law No. 14,852/2024, which recognized the gaming industry but ignored random monetization practices. The analysis is based on provisions of the Consumer Protection Code, the Child and Adolescent Statute and the General Data Protection Law, in addition to examining more advanced international legislation. The research concludes that the current loot box model poses a risk to children's psychological development, fairness in games and contractual transparency. In view of this, the proposal is to create a specific regulatory framework that includes transparency in probabilities, age restrictions, parental control and spending limits. Protecting children in the digital environment is not incompatible with the economic freedom of the industry, and is an essential condition for an ethical, responsible and legally sustainable gaming sector.
Key words : loot boxes; microtransactions; consumer law; childhood; electronic games; legal regulation.
Nota de Atualização (do Editor)
1 A Lei nº 15.211, de 17 de setembro de 2025 (Lei da Adultização) regulou a matéria em seu art. 20: "São vedadas as caixas de recompensa (loot boxes) oferecidas em jogos eletrônicos direcionados a crianças e a adolescentes ou de acesso provável por eles, nos termos da respectiva classificação indicativa."