Capa da publicação Humor sob julgamento: Léo Lins, expressão e crime
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Análise da sentença do humorista Léo Lins.

Uma violação aos princípios constitucionais e à liberdade de expressão

Resumo:


  • A sentença condenando Léo Lins a mais de 8 anos de reclusão em regime fechado, além de multa e indenização, representa um preocupante precedente judicial no Brasil.

  • A análise dos fundamentos da sentença revela fragilidades jurídicas, contradições internas e violações a princípios constitucionais, como a liberdade de expressão e o devido processo legal.

  • Contradições na interpretação do humor, desconsideração de testemunhas de defesa, presunção de impacto social e desproporcionalidade da pena são pontos críticos destacados na sentença.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Léo Lins foi condenado por discriminação com base em trechos de show de humor. A decisão fere a liberdade de expressão artística e ignora o dolo específico exigido por lei.

A sentença proferida pela 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, que condenou o humorista Leonardo de Lima Borges Lins, conhecido como Léo Lins, a uma pena de 8 anos, 3 meses e 9 dias de reclusão em regime fechado, além de 39 dias-multa e indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 303.600,00, representa um preocupante precedente judicial no Brasil.

A decisão, fundamentada em suposta prática de crimes previstos no artigo 20, parágrafos 2º e 2º-A da Lei nº 7.716/89 (crimes de racismo) e no artigo 88, parágrafo 2º da Lei nº 13.146/2015 (discriminação contra pessoas com deficiência), coloca em xeque o direito penal brasileiro, em vários pontos jurídicos, mas em especifico, a interpretação da legislação penal, o equilíbrio entre liberdade de expressão e proteção contra discriminação, e a observância de princípios constitucionais fundamentais.


1. Contexto da Sentença e Acusação

A denúncia do Ministério Público Federal contra Léo Lins baseia-se na publicação de um vídeo de seu show de stand-up comedy intitulado "Léo Lins PERTURBADOR", disponibilizado no YouTube, no qual o humorista teria proferido comentários considerados preconceituosos e discriminatórios contra diversos grupos vulneráveis, incluindo pessoas negras, indígenas, com deficiência, idosas, gordas, portadoras de HIV, homossexuais, judeus, nordestinos e moradores de rua.

A sentença, assinada pela juíza federal substituta Barbara de Lima Iseppi em 30 de maio de 2025, concluiu pela materialidade e autoria delitivas, condenando o réu por crimes formais de discriminação, com aplicação de qualificadoras e aumento de pena por continuidade delitiva e contexto de "racismo recreativo".


2. Análise dos Fundamentos da Sentença

A análise da sentença revela uma série de fragilidades jurídicas, contradições internas e violações a princípios constitucionais que comprometem sua legitimidade.

2.1. Liberdade de Expressão vs. Dignidade Humana: Um Sopesamento Desproporcional

A Constituição Federal de 1988 consagra a liberdade de expressão como direito fundamental nos artigos 5º, incisos IV, V e IX, e 220, assegurando a livre manifestação do pensamento, a criação artística e a comunicação sem censura, salvo em casos expressamente previstos em lei.

A sentença reconhece esse direito, mas conclui que, em caso de colisão com os princípios da dignidade humana e da igualdade jurídica, estes devem prevalecer, citando precedente do Supremo Tribunal Federal no HC 82.424 (Rel. Min. Moreira Alves, 2003).

A interpretação da juíza desconsidera o contexto artístico do stand-up comedy, que, conforme descrito na própria sentença, é um gênero caracterizado por humor "de cara limpa", sem personagens fictícios ou quarta parede, mas com clara intenção satírica e hiperbólica.

O STF, no mesmo precedente citado, destaca que a liberdade de expressão não pode ser usada como "salvaguarda de condutas ilícitas", mas exige prova concreta de intenção discriminatória específica, o que não foi devidamente demonstrado na sentença.

A decisão presume o dolo com base em trechos isolados do show, ignorando a estrutura humorística (setup e punchline) mencionada pelo réu, que contextualiza as falas como provocações cômicas, não como incitação ao ódio.

Além disso, a sentença desconsidera a jurisprudência mais recente do STF, como a ADPF 548 (Rel. Min. Alexandre de Moraes, 2020), que reforça a proteção à liberdade de expressão artística, mesmo em conteúdos provocativos, desde que não configurem incitação direta à violência ou discriminação.

No caso, não há prova de que as falas de Léo Lins tenham gerado atos concretos de violência ou discriminação, o que enfraquece a tese de crime formal consumado.

A decisão viola o artigo 5º, inciso IX, da Constituição, que protege a expressão da atividade artística, e o princípio da proporcionalidade, ao não realizar um sopesamento adequado entre liberdade de expressão e proteção contra discriminação. A pena de mais de 8 anos de reclusão é manifestamente desproporcional para um caso que envolve humor, sem comprovação de dano concreto ou intenção de incitar violência.

2.2. Cadeia de Custódia e Validade da Prova Digital

A defesa arguiu preliminarmente a quebra da cadeia de custódia da prova digital (o vídeo do show), alegando ausência de informações sobre metadados, ferramentas de coleta e integridade do arquivo. A sentença rejeita a preliminar, afirmando que o réu não negou a autoria do vídeo ou seu conteúdo e que os relatórios do MPSP e MPF atestam a confiabilidade da prova, com códigos hash e links de acesso.

Embora a sentença afirme que a cadeia de custódia foi preservada, ela não enfrenta de forma satisfatória as alegações técnicas da defesa, como a ausência de identificação da ferramenta de coleta ou políticas de antidestruição.

A Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) introduziu os artigos 158-A a 158-F no Código de Processo Penal, exigindo rigor na documentação da cadeia de custódia para garantir a integridade de provas digitais.

A dispensa de exame pericial oficial, conforme justificado pela juíza, contraria o artigo 158 do CPP, que determina a necessidade de perícia para crimes que deixam vestígios, especialmente quando a prova é o cerne da acusação.

Além disso, a sentença reconhece que o vídeo foi reativado pelo réu como "privado" após decisão do STF, mas não explica como isso foi considerado na análise da cadeia de custódia.

A possibilidade de terceiros terem republicado o vídeo (com mais de 3,5 milhões de visualizações) gera dúvidas sobre a autenticidade do material analisado, já que edições ou alterações poderiam ter ocorrido. A ausência de contraditório efetivo sobre a prova digital, reforçada pela dispensa da oitiva do responsável pela coleta, compromete o devido processo legal.

A decisão viola o artigo 5º, inciso LVI, da Constituição, que proíbe provas obtidas por meios ilícitos, e o princípio do contraditório e ampla defesa (artigo 5º, inciso LV), ao não garantir escrutínio técnico adequado da prova digital.

2.3. Dolo Específico e a Caracterização dos Crimes

A sentença conclui que o dolo específico do réu está demonstrado por trechos do vídeo em que ele reconhece o caráter potencialmente ofensivo de suas falas, como ao mencionar "mais um processo" ou "cancelamentos".

A juíza interpreta essas declarações como prova de intenção discriminatória, qualificando as condutas como crimes formais previstos nas Leis nº 7.716/89 e nº 13.146/2015.

A interpretação do dolo é problemática, pois confunde a consciência do potencial ofensivo do humor com a intenção específica de discriminar ou incitar preconceito. O réu, em interrogatório, afirmou que seu objetivo era fazer rir, não discriminar, e que as falas foram proferidas em um contexto teatral, com um personagem cômico.

Testemunhas de defesa, incluindo pessoas com deficiência e outros grupos mencionados, corroboraram que não se sentiram ofendidas, sugerindo que o público-alvo do show compreendia o caráter ficcional e satírico das piadas.

A doutrina penal brasileira, como Guilherme de Souza Nucci, destaca que o crime de racismo (art. 20 da Lei nº 7.716/89) exige dolo específico, ou seja, a vontade deliberada de praticar, induzir ou incitar discriminação.

A sentença não apresenta provas concretas de que Léo Lins tinha a intenção de promover ódio ou segregação, limitando-se a inferir o dolo de trechos isolados, descontextualizados da estrutura humorística.

A ausência de análise do contexto integral do show, incluindo o "setup" e "punchline" mencionados pelo réu, compromete a tipificação penal.

A sentença reconhece que os crimes são formais, não exigindo resultado concreto, mas valoriza negativamente as consequências judiciais (fomento a discursos de ódio) sem evidências empíricas de tais efeitos.

Essa contradição revela uma fundamentação subjetiva, que presume o impacto social do vídeo sem dados objetivos.

A presunção de dolo sem prova robusta viola o princípio da presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição) e o princípio da legalidade penal (artigo 5º, inciso XXXIX), que exige estrita adequação da conduta ao tipo penal.

2.4. Dosimetria da Pena: Desproporcionalidade e Bis in Idem

A dosimetria da pena é outro ponto crítico da sentença. A juíza fixa a pena-base acima do mínimo legal (2 anos e 8 meses para ambos os crimes), aplicando aumento de 1/3 por três circunstâncias judiciais desfavoráveis (culpabilidade, consequências e circunstâncias do crime).

Na terceira fase, aumenta a pena em 5/12 por "racismo recreativo" (art. 20-A da Lei nº 7.716/89) e aplica a continuidade delitiva, resultando em 5 anos e 13 dias para o crime de racismo e 3 anos, 2 meses e 12 dias para o crime de discriminação contra pessoas com deficiência, totalizando 8 anos, 3 meses e 9 dias de reclusão.

1. Culpabilidade: A sentença considera a culpabilidade em "grau normal", mas a valoriza negativamente por se tratar de prática discriminatória como "meio de vida" do réu.

Essa fundamentação é subjetiva e carece de base legal, pois o fato de o réu ser comediante profissional não agrava a culpabilidade além do tipo penal, que já considera a divulgação em meios de comunicação como qualificadora.

2. Consequências do Crime: A juíza presume que as falas fomentam "discursos de ódio" e intolerância, mas não apresenta evidências concretas, como registros de incidentes ou denúncias decorrentes do show.

Essa valoração negativa é especulativa e contraria o princípio da individualização da pena (artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição).

3. Bis in Idem: A sentença utiliza a publicação do vídeo na internet como circunstância judicial negativa (art. 59 do CP) e como qualificadora (art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/89), incorrendo em dupla punição pelo mesmo fato.

Além disso, a aplicação da causa de aumento por "racismo recreativo" (art. 20-A) e da qualificadora por contexto artístico (art. 20, § 2º-A) gera sobreposição, pois ambas se baseiam na natureza humorística da conduta, configurando bis in idem.

4. Continuidade Delitiva: A aplicação do crime continuado (art. 71 do CP) é questionável, pois a sentença considera cada grupo vulnerável como uma vítima distinta, mas não demonstra que as falas configuram condutas autônomas no mesmo contexto de tempo, lugar e execução.

O STF, em casos como o RE 1.010.606 (Rel. Min. Edson Fachin, 2019), exige unidade de desígnios para a continuidade delitiva, o que não foi comprovado.

A dosimetria viola o princípio da proporcionalidade (artigo 5º, inciso XLVI) e o princípio do non bis in idem (artigo 5º, inciso XXXIX), ao punir duplamente o mesmo fato e aplicar pena excessiva para uma conduta sem resultado concreto.

2.5. Dano Moral Coletivo: Fundamentação Insuficiente

A sentença fixa indenização de R$ 303.600,00 por dano moral coletivo, considerando a ofensa a dez grupos vulneráveis e a capacidade financeira do réu. A juíza argumenta que o dano é in re ipsa, não exigindo prova de prejuízo concreto, com base em precedente do STJ (REsp 1.838.184/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 2021).

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Crítica: Embora o dano moral coletivo seja reconhecido na jurisprudência, sua aplicação exige demonstração de lesão grave a valores fundamentais da sociedade.

A sentença não apresenta elementos objetivos que comprovem o impacto social das falas do réu, como estudos, denúncias ou evidências de discriminação decorrente do vídeo.

A fixação do valor com base na renda declarada do réu (R$ 10.000,00 a R$ 100.000,00) é arbitrária, pois não considera a ausência de prova de dano concreto ou a proporcionalidade entre a conduta e a reparação.

A imposição de indenização sem fundamentação objetiva viola o princípio do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV) e o princípio da razoabilidade, que exige adequação entre a sanção e a gravidade do fato.


3. Contradições e Fragilidades da Sentença

  • Descontextualização do Humor: A sentença ignora a natureza satírica do stand-up, que utiliza exagero e provocação para gerar riso, não para incitar ódio. A citação de trechos isolados, sem análise da estrutura cômica, distorce o conteúdo e viola o princípio da verdade real no processo penal.

  • Testemunhas de Defesa Ignoradas: A juíza desconsidera os depoimentos de testemunhas, incluindo pessoas com deficiência, que afirmaram não se sentir ofendidas e até se sentirem incluídas pelo humor do réu. Essa desvalorização da prova defensiva contraria o princípio do contraditório.

  • Presunção de Impacto Social: A sentença presume que o vídeo fomenta discursos de ódio, mas não apresenta dados concretos, como incidentes de violência ou discriminação, para embasar essa conclusão. Essa abordagem subjetiva compromete a imparcialidade judicial.

  • Desproporcionalidade da Pena: A pena de mais de 8 anos de reclusão em regime fechado é desproporcional para uma conduta sem resultado concreto, especialmente quando comparada a penas para crimes mais graves, como lesão corporal grave (2 a 8 anos, art. 129, § 1º, do CP).


4. Sentença como retrocesso em face da liberdade de expressão:

A condenação de Léo Lins representa um grave retrocesso na proteção à liberdade de expressão artística no Brasil.

A sentença, ao interpretar de forma expansiva os crimes de racismo e discriminação, criminaliza o humor como forma de expressão, ignorando seu caráter ficcional e satírico.

O stand-up comedy, por sua natureza provocativa, desafia tabus e expõe contradições sociais, mas isso não equivale a incitação ao ódio ou discriminação. A decisão desconsidera o contexto cultural e artístico, tratando falas humorísticas como declarações literais de preconceito, o que constitui uma aplicação equivocada da lei penal.

A pena imposta é manifestamente desproporcional, equiparando uma performance cômica a crimes de alta gravidade, como homicídio simples (6 a 20 anos, art. 121 do CP).

A ausência de prova de dolo específico, a fragilidade na análise da cadeia de custódia e a dupla punição pelo mesmo fato (bis in idem) revelam uma fundamentação jurídica deficiente, que viola os princípios da legalidade, proporcionalidade, contraditório e ampla defesa.

Além disso, a sentença reforça um perigoso precedente de censura à arte, especialmente em um momento em que a liberdade de expressão enfrenta crescentes ameaças. O STF, em decisões como a ADI 4.451 (Rel. Min. Ayres Britto, 2010), já reconheceu que a sátira e o humor são protegidos pela Constituição, desde que não configurem incitação direta à violência.

Criminalizar o humor de Léo Lins, sem evidências de danos concretos ou intenção discriminatória, abre espaço para a judicialização de qualquer expressão artística que desagrade grupos específicos, comprometendo o pluralismo e a democracia.


5. Conclusão

A sentença que condenou Léo Lins é juridicamente frágil, desproporcional e contrária aos princípios constitucionais da liberdade de expressão, presunção de inocência, legalidade e devido processo legal.

A decisão ignora o contexto artístico do stand-up comedy, presume dolo sem prova robusta, desvaloriza a defesa e impõe uma pena excessiva, que não encontra amparo na gravidade da conduta.

Este artigo repudia veementemente a condenação, defendendo a necessidade de proteger a liberdade artística e o humor como instrumentos de crítica social, sem prejuízo do combate ao racismo e à discriminação, que deve ser feito com base em critérios objetivos e proporcionais.

A revisão judicial dessa sentença é imperativa, seja por recurso ao Tribunal Regional Federal, seja por ação no STF, para garantir que a liberdade de expressão não seja sacrificada em nome de uma interpretação expansiva e subjetiva da lei penal.

A arte, mesmo quando provocativa, não pode ser confundida com crime, sob pena de silenciarmos vozes que desafiam o status quo e promovem o debate em uma sociedade democrática.

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Sobre o autor
Guilherme Lucas Tonaco Carvalho

Jurista; Escritor; Palestrante; Especialista em Direito Penal; Mestre em Direito Marítimo e Internacional; Especialista em Crimes Cibernéticos. Membro da Comissão Especial de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro da OAB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Guilherme Lucas Tonaco. Análise da sentença do humorista Léo Lins.: Uma violação aos princípios constitucionais e à liberdade de expressão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8010, 6 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114293. Acesso em: 14 jun. 2025.

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