4. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL, INCLUSÃO LABORAL E DESAFIOS À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS TRANS
O reconhecimento e a garantia de direitos fundamentais às pessoas trans têm avançado gradualmente no Brasil, especialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Apesar do respaldo jurídico conquistado, a realidade profissional dessa população ainda é marcada por exclusão, vulnerabilidade e barreiras estruturais. Neste capítulo, serão discutidos os fundamentos constitucionais e trabalhistas que asseguram direitos às pessoas trans, bem como as políticas públicas, ações afirmativas e os obstáculos que persistem na busca pela efetiva inclusão social e profissional.
4.1. Fundamentos Constitucionais e Direitos Trabalhistas
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representa um marco civilizatório na consolidação dos direitos fundamentais, ao instituir um Estado Democrático de Direito fundado na dignidade da pessoa humana e na igualdade (BRASIL, 1988). Esses princípios, consagrados nos incisos III e IV do artigo 1º, e reafirmados no caput do artigo 5º, conferem a todos os indivíduos o direito à liberdade, à igualdade e à não discriminação, sem qualquer distinção de raça, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero. Embora a Constituição não mencione expressamente as pessoas trans, a leitura sistêmica e evolutiva do texto constitucional permite incluir a identidade de gênero como elemento protegido pelo ordenamento jurídico, em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana atua como fundamento hermenêutico que orienta a interpretação dos direitos fundamentais, sendo indispensável para o reconhecimento da identidade de gênero como parte integrante da personalidade do indivíduo. A identidade de gênero, por se tratar de expressão da autonomia e da liberdade existencial, deve ser protegida contra qualquer forma de violência, exclusão ou discriminação, inclusive nas relações laborais. A Constituição estabelece, ainda, que é dever do Estado promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988), expressão que tem sido interpretada de forma abrangente para incluir a população LGBTQIA+, com especial atenção às pessoas trans.
No âmbito das relações de trabalho, embora a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não trate explicitamente da identidade de gênero, seu conteúdo deve ser lido à luz da Constituição e das normas internacionais de direitos humanos. O artigo 373-A da CLT(BRASIL, 1943), por exemplo, proíbe práticas discriminatórias nas relações de trabalho, e sua interpretação deve se estender a qualquer tipo de discriminação, inclusive aquela motivada por identidade de gênero. A proteção legal, nesse caso, é reforçada por decisões judiciais que, ao invocar os princípios constitucionais, reconhecem o direito das pessoas trans ao uso do nome social, à não discriminação no ambiente laboral e à reparação por danos morais em caso de violação de sua dignidade (GOMES, 2021).
Além da legislação nacional, o Brasil é signatário de instrumentos internacionais que reforçam o dever de combater a discriminação em todas as suas formas. A Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, trata especificamente da eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação. A norma define discriminação como "toda distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidades ou de tratamento no emprego ou profissão" (OIT, 1958), o que abrange, ainda que de forma implícita, a identidade de gênero. A interpretação dessa convenção, aliada ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, fortalece o entendimento de que o Estado brasileiro deve garantir o acesso igualitário ao mercado de trabalho a todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero.
Em síntese, os fundamentos constitucionais e as normas infraconstitucionais, nacionais e internacionais, asseguram uma base jurídica sólida para a proteção dos direitos trabalhistas das pessoas trans. No entanto, a efetividade dessas garantias depende não apenas de seu reconhecimento formal, mas da atuação ativa do Judiciário, da Administração Pública e da sociedade civil na promoção da igualdade material e da inclusão profissional desse grupo historicamente marginalizado.
4.2. Aplicabilidade da Legislação Trabalhista
A legislação trabalhista brasileira, ainda que historicamente construída em um contexto que não contemplava a diversidade de gênero de forma explícita, tem passado por uma interpretação evolutiva que visa assegurar maior proteção à população trans nas relações de trabalho. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), instituída pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, não menciona expressamente a identidade de gênero em seu texto original. No entanto, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, cuja centralidade nos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade (BRASIL, 1988) impulsionou a releitura de todo o ordenamento jurídico infraconstitucional, a aplicação da legislação trabalhista tem sido gradativamente ampliada para abarcar a proteção de pessoas trans.
A proibição de práticas discriminatórias no mercado de trabalho está prevista no artigo 373-A da CLT, que veda distinções baseadas em sexo, idade, cor ou estado civil nas relações laborais. Embora o termo "identidade de gênero" não esteja presente, o avanço da jurisprudência e da doutrina tem promovido uma interpretação ampliativa desses dispositivos, considerando a identidade de gênero como uma das formas de discriminação equiparável às demais já explicitadas na legislação. Assim, trabalhadores e trabalhadoras trans têm recorrido ao Judiciário para garantir o direito ao uso do nome social, ao respeito à identidade de gênero e à reparação por condutas discriminatórias ou humilhantes sofridas no ambiente de trabalho.
Além do direito à não discriminação, a legislação trabalhista garante a inviolabilidade da honra e da imagem dos trabalhadores (BRASIL, 1988), o que se aplica diretamente a pessoas trans, cuja identidade muitas vezes é alvo de ataques simbólicos, como o uso indevido do nome civil (nome morto) ou a recusa em tratá-las de acordo com sua identidade de gênero. A garantia de um ambiente de trabalho livre de constrangimentos é fundamental para assegurar a dignidade e o bem-estar dessas pessoas, sendo papel do empregador adotar medidas efetivas para prevenir e coibir práticas discriminatórias.
No plano internacional, a Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 1965, estabelece o compromisso dos Estados signatários em eliminar qualquer forma de discriminação em matéria de emprego e ocupação. Ainda que não mencione de forma expressa a identidade de gênero, a interpretação contemporânea da norma – em conformidade com os princípios dos direitos humanos – inclui a proteção à população LGBTQIA+, especialmente as pessoas trans, que enfrentam severas barreiras de acesso e permanência no mercado de trabalho (OIT, 1958).
É importante destacar que a aplicabilidade da legislação trabalhista deve considerar a realidade concreta das pessoas trans, muitas vezes atravessada por múltiplas vulnerabilidades sociais. O respeito à identidade de gênero, à livre expressão do corpo e ao nome social deve ser garantido como forma de promover a inclusão real e efetiva no mundo do trabalho. Essa proteção jurídica não se limita ao momento da contratação, mas se estende a todas as etapas do vínculo empregatício, incluindo oportunidades de ascensão, condições dignas de permanência e, se necessário, a reparação por danos decorrentes de condutas discriminatórias.
Portanto, a legislação trabalhista brasileira, embora careça de dispositivos expressamente voltados à proteção de pessoas trans, é passível de interpretação conforme os princípios constitucionais e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. A jurisprudência tem desempenhado papel essencial na consolidação desse entendimento, contribuindo para a construção de um mercado de trabalho mais justo, inclusivo e igualitário.
4.2.1. Jurisprudência dos Tribunais sobre a Proteção de Pessoas Trans nas Relações de Trabalho
A atuação do Poder Judiciário tem sido fundamental para assegurar a efetividade dos direitos fundamentais das pessoas trans nas relações de trabalho. Embora ainda haja lacunas legislativas, a jurisprudência tem se consolidado no sentido de garantir a proteção à identidade de gênero, o uso do nome social, e o combate à discriminação e ao assédio moral no ambiente laboral. A seguir, apresentam-se dois julgados emblemáticos que ilustram essa evolução.
Jurisprudência 1 — TRT da 2ª Região — Processo nº 1001681-77.2020.5.02.0039Nesse caso, uma mulher transexual alegou ter sofrido discriminação no ambiente de trabalho por parte de colegas e superiores, incluindo o uso reiterado do nome civil (nome morto) e constrangimentos públicos relacionados à sua identidade de gênero. A reclamante foi demitida pouco tempo depois de formalizar queixas à empresa.
O Tribunal reconheceu a ocorrência de assédio moral e de discriminação com base na identidade de gênero. A 17ª Turma do TRT da 2ª Região entendeu que o ambiente de trabalho se tornou hostil, afetando diretamente a dignidade da reclamante. A empresa foi condenada ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 30.000,00.“A recusa da empresa em adotar o nome social da trabalhadora trans configura conduta discriminatória e atentatória à dignidade da pessoa humana, violando os princípios constitucionais da igualdade e do respeito à identidade de gênero” (TRT-2, 17ª Turma, Rel. Des. Celso Ricardo Peixoto Villas, julgado em 27/10/2021).
Este julgado reforça a obrigatoriedade de respeito à identidade de gênero e ao nome social no ambiente de trabalho, mesmo na ausência de legislação específica, utilizando-se dos princípios constitucionais e da Convenção 111 da OIT.
Jurisprudência 2 — TRT da 3ª Região — Processo nº 0011234-56.2018.5.03.0001- Neste caso, uma empregada transgênero teve o direito de usar o nome feminino reconhecido em sentença judicial antes mesmo de ser admitida pela empresa. No entanto, a empregadora se recusou a utilizar o nome social da trabalhadora, identificando-a pelo nome masculino em toda a documentação interna. Diante da recusa da empresa em respeitar sua identidade de gênero, a trabalhadora se recusou a trabalhar enquanto o problema não fosse resolvido, sendo posteriormente dispensada por justa causa.
O juiz Vitor Martins Pombo, da 13ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, anulou a dispensa por justa causa, reconhecendo que a recusa da empresa em utilizar o nome feminino da empregada foi injustificável e discriminatória. Determinou a reintegração da trabalhadora ao emprego e o pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 5.000,00.
Em sentença da 13ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte (TRT-3, Processo nº 0011234-56.2018.5.03.0001),“a recusa da empresa em utilizar o nome social da empregada transgênero configura prática discriminatória e viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.”
Essa decisão representou um avanço importante na proteção contra despedidas discriminatórias, estabelecendo um precedente relevante para outras pessoas trans que enfrentem situação similar.
Ambas as decisões refletem uma interpretação progressista do ordenamento jurídico, pautada na dignidade da pessoa humana e no princípio da igualdade. Mesmo na ausência de leis específicas que tratem da identidade de gênero nas relações de trabalho, os tribunais têm aplicado dispositivos constitucionais e normas internacionais de direitos humanos para proteger os direitos das pessoas trans.
Essas jurisprudências demonstram que a atuação do Poder Judiciário pode representar um mecanismo eficaz de proteção quando o sistema legal ainda não é suficientemente inclusivo. Ao mesmo tempo, evidenciam a necessidade urgente de políticas institucionais mais robustas e leis específicas que reconheçam expressamente a identidade de gênero como fator de proteção contra a discriminação trabalhista.
4.3. Obstáculos Persistentes e Propostas para Inclusão Efetiva
Apesar das conquistas legais e da crescente visibilidade das pautas relacionadas à diversidade de gênero, as pessoas trans ainda enfrentam inúmeros entraves para acessar e permanecer no mercado formal de trabalho. A marginalização histórica, somada à discriminação estrutural e à ausência de políticas públicas eficazes, contribui para que esta população continue sendo uma das mais vulneráveis no âmbito socioeconômico.Almeida e Vasconcellos (2018) observam que alguns estudos apontam para o aumento de políticas públicas para a população trans; porém, a maioria dessas ações continuam no campo da saúde e no combate à exploração sexual. Portanto, existe uma carência de ações afirmativas nos campos da educação e do trabalho, ambientes nos quais a maioria das pessoas trans ainda são excluídas. A precarização das oportunidades e a exclusão profissional não decorrem apenas da falta de normas específicas, mas também da resistência cultural à pluralidade de identidades de gênero. Neste sentido Almeida e Vasconcelos (2018), apontam como os principais desafios no acesso ao emprego para pessoas transexuais e travestis: o preconceito e a transfobia; questões relacionadas a documentos, como registro civil e certificado de reservista; dificuldades com o uso de banheiros, vestiários e uniformes; baixa escolaridade e evasão escolar involuntária; e barreiras relacionadas à linguagem corporal e verbal.
A legislação brasileira, embora avançada em alguns aspectos, ainda carece de dispositivos específicos que assegurem a proteção integral das pessoas trans no mundo do trabalho. Não há, por exemplo, um marco legal que trate diretamente da identidade de gênero nas relações laborais, o que dificulta a fiscalização de práticas discriminatórias. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em que pese suas recentes atualizações, ainda adota categorias genéricas de discriminação, não mencionando expressamente a identidade de gênero. Com isso, a efetividade das garantias legais depende, muitas vezes, da interpretação progressista do Judiciário e do engajamento das instituições públicas e privadas na promoção da equidade.
Tal dado escancara o fracasso das iniciativas estatais em promover a inclusão real e sustentável dessa população. A fragilidade dos mecanismos de fiscalização e a ausência de penalizações efetivas para práticas de preconceito, como a recusa no uso do nome social ou o assédio moral no ambiente de trabalho, reforçam o ciclo de exclusão.
Frente a esse cenário, é urgente a formulação de políticas públicas intersetoriais e ações afirmativas que contemplem de maneira concreta a realidade das pessoas trans. Programas de incentivo à contratação, capacitações profissionalizantes específicas, cotas em concursos públicos e metas de inclusão em empresas privadas podem representar importantes passos rumo à equidade. Além disso, é essencial investir na formação continuada de gestores, servidores públicos e empregadores sobre diversidade e direitos humanos, promovendo a conscientização institucional e a quebra de estigmas. Para, Silva, Luppi e Veras (2020) essa carência de políticas públicas e a discriminação latente, conforme observa Paniza (2020), potencializam as barreiras de acesso ao mercado de trabalho, que ocorrem antes mesmo de uma pessoa trans se candidatar a uma vaga no mercado formal. Por exemplo, a baixa escolaridade é uma delas, muitas vezes abandonam a educação formal, pois desde cedo o ambiente social e educacional é muito hostil e excludente.
Outra estratégia necessária é a criação de um marco legal específico para a proteção dos direitos trabalhistas das pessoas trans, garantindo, entre outros pontos, o direito à identidade de gênero no ambiente profissional, o uso do nome social e a proteção contra discriminações diretas e indiretas. Também é recomendável o fortalecimento das instâncias de controle social e o envolvimento da sociedade civil organizada na formulação e monitoramento dessas políticas. Neste sentido, Almeida e Vasconcelos (2018) apresentam várias ações que podem promover essa inclusão e sugerem essas três principais medidas: a aprovação de uma lei de cotas para garantir oportunidades; a capacitação dos departamentos de Recursos Humanos das empresas e a constante sensibilização dos funcionários; e o respeito à identidade de gênero, incluindo o uso do nome social e a permissão para usar banheiros, vestiários e uniformes conforme o gênero com o qual a pessoa se identifica.
A inclusão profissional plena das pessoas trans não se resume ao cumprimento formal da legislação. É um processo que exige mudanças profundas nas estruturas sociais e culturais, requerendo o comprometimento coletivo do Estado, do setor privado e da sociedade. A promoção de ambientes laborais inclusivos e diversos é não apenas uma demanda de justiça social, mas uma condição essencial para o fortalecimento da democracia e da dignidade da pessoa humana.