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O outro lado da denúncia: presunção de inocência em tempos de combate à violência doméstica

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17/06/2025 às 08:46

Resumo:


  • A Lei Maria da Penha representa um marco na proteção de mulheres vítimas de violência doméstica, estabelecendo medidas protetivas de urgência para garantir sua integridade física e emocional.

  • O princípio da presunção de inocência, embora fundamental, encontra desafios na aplicação das medidas protetivas, levando a debates sobre o equilíbrio entre a proteção da vítima e os direitos do acusado.

  • As denúncias infundadas, embora estatisticamente raras, geram impactos significativos, levando à discussão de propostas legislativas e institucionais para aprimorar a proteção sem comprometer as garantias fundamentais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. Caminhos para o Equilíbrio: Propostas Legislativas e Institucionais

A análise até aqui desenvolvida evidencia a complexidade que envolve a conciliação entre a efetiva proteção das vítimas de violência doméstica e o respeito às garantias fundamentais do acusado, especialmente no tocante à presunção de inocência e ao devido processo legal. Diante desse contexto, surgem propostas no campo legislativo e das políticas públicas que visam estabelecer um ponto de equilíbrio entre essas duas vertentes fundamentais.

No âmbito legislativo, uma das medidas que vem ganhando espaço no debate jurídico é a criação de protocolos nacionais de avaliação de risco, com critérios objetivos que orientem a concessão e a manutenção das medidas protetivas. A adoção desses protocolos permitiria uma análise mais técnica e individualizada de cada caso, evitando decisões baseadas unicamente na narrativa inicial da vítima, sem outros elementos de convicção mínima.

Outra proposta em tramitação é o Projeto de Lei nº 6198/2023, que visa a criação de um tipo penal específico para a falsa acusação de violência doméstica. A proposta busca inibir a utilização indevida da Lei Maria da Penha com finalidades distintas da proteção da mulher, estabelecendo sanções proporcionais para as condutas dolosas de imputação falsa. O projeto prevê, ainda, o agravamento da pena nos casos em que a falsa denúncia seja motivada por chantagem, alienação parental ou intenção de prejudicar a imagem do acusado.

No campo das políticas públicas, destaca-se a necessidade de fortalecimento da rede de atendimento multidisciplinar, com investimentos na estruturação e capacitação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), dos Centros de Referência de Atendimento à Mulher (CRAMs) e demais órgãos integrantes da rede de proteção. A escuta qualificada da vítima e o acompanhamento psicossocial do acusado são instrumentos que podem contribuir para a formação de juízos mais adequados e justos.

Também se propõe a implementação de cursos de formação continuada para magistrados, membros do Ministério Público, defensores públicos e servidores da segurança pública, com o objetivo de aprimorar a análise técnica dos pedidos de medidas protetivas. A qualificação desses profissionais é essencial para que possam avaliar com maior precisão a existência de risco real, evitando tanto a omissão estatal em casos efetivos de violência quanto a imposição de restrições desnecessárias em situações de fragilidade probatória.

Além disso, defende-se a criação de unidades especializadas de mediação e conciliação pré-processual, nos casos em que não haja situação de violência efetiva ou risco iminente, permitindo que algumas demandas possam ser resolvidas sem a judicialização automática, o que aliviaria o sistema de justiça e reduziria os riscos de decisões precipitadas.

Outra medida relevante seria a ampliação do uso de ferramentas tecnológicas para monitoramento de agressores e proteção de vítimas, como o uso de tornozeleiras eletrônicas e aplicativos de proteção, já implementados em algumas unidades da federação. Essas tecnologias permitem ao Estado uma resposta mais proporcional, ao mesmo tempo em que asseguram proteção efetiva à mulher.

Por fim, é importante destacar a necessidade de investimentos em campanhas educativas, voltadas tanto para o combate à violência de gênero quanto para a conscientização sobre as consequências jurídicas da realização de denúncias falsas. A formação da sociedade em torno do tema pode contribuir para a diminuição dos casos de violência, o fortalecimento da rede de apoio às vítimas e a redução dos episódios de instrumentalização indevida da legislação.

Portanto, a busca por um ponto de equilíbrio entre proteção e garantias fundamentais demanda ações conjuntas do legislador, do Judiciário, da sociedade civil e dos órgãos responsáveis pela segurança pública. O aperfeiçoamento da legislação e a implementação de políticas públicas eficazes são caminhos indispensáveis para assegurar a proteção da mulher, sem prejuízo dos direitos constitucionais do acusado.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proteção da mulher vítima de violência doméstica, implementada de forma contundente pela Lei Maria da Penha, representa um avanço incontestável na tutela dos direitos fundamentais e na promoção da dignidade da pessoa humana. O ordenamento jurídico brasileiro, ao permitir a adoção de medidas protetivas de urgência, buscou conferir uma resposta estatal célere e eficaz diante de um cenário de violência historicamente invisibilizado.

Contudo, a aplicação dessas medidas trouxe à tona um relevante debate sobre os limites constitucionais impostos pelo princípio da presunção de inocência. A possibilidade de restrições à liberdade e à convivência familiar do acusado, antes mesmo de sua oitiva, evidencia a tensão existente entre a proteção imediata da vítima e as garantias processuais que lhe são asseguradas.

A análise desenvolvida ao longo deste trabalho permitiu concluir que, embora as falsas denúncias sejam um fenômeno estatisticamente raro, seus efeitos jurídicos e sociais não podem ser desconsiderados. A adoção de providências legislativas e políticas públicas que visem ao aprimoramento dos mecanismos de triagem e à qualificação das decisões judiciais mostra-se necessária para prevenir injustiças individuais, sem fragilizar a efetividade da proteção conferida às mulheres em situação de risco.

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O desafio do sistema jurídico é estabelecer um ponto de equilíbrio que assegure, de forma simultânea, a proteção efetiva das vítimas e a observância das garantias constitucionais dos acusados. Tal objetivo exige o fortalecimento da rede de proteção, o aprimoramento da formação dos operadores do Direito, a implementação de critérios técnicos para a concessão das medidas protetivas e a responsabilização exemplar de eventuais condutas dolosas de denunciação caluniosa.

Portanto, o caminho a ser trilhado é o do aperfeiçoamento contínuo, com base em dados concretos, na análise técnica e no respeito incondicional aos princípios constitucionais. A construção de uma justiça equilibrada, capaz de proteger as vítimas sem abrir espaço para violações de direitos fundamentais, é condição indispensável para a credibilidade e a efetividade da Lei Maria da Penha no cenário jurídico brasileiro.


REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Thiago Negrão dos Reis

Psicólogo formado pela Escola Superior Batista do Amazonas e graduando em Direito pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Atua com ênfase em Psicologia Jurídica, Direito Penal e Direitos Humanos, com especial interesse nas interseções entre saúde mental, justiça criminal e garantias processuais. Dedica-se a temas como escuta especializada de crianças, violência de gênero, falsas denúncias e a proteção integral de vítimas vulneráveis, buscando sempre uma abordagem crítica, interdisciplinar e comprometida com os direitos fundamentais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Thiago Negrão. O outro lado da denúncia: presunção de inocência em tempos de combate à violência doméstica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8021, 17 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114450. Acesso em: 5 dez. 2025.

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