Resumo: O presente artigo analisa a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema 1.284, que definiu a inaplicabilidade da vedação ao reexame necessário para sentenças proferidas antes da vigência da Lei nº 14.230/2021. Examina-se a evolução histórica do instituto do reexame necessário nas ações de improbidade administrativa, a modificação legislativa introduzida em 2021, bem como os aspectos processuais e materiais envolvidos. Por fim, são tecidas reflexões críticas acerca do impacto da mudança normativa na segurança jurídica e na proteção do interesse público.
Palavras-chave: reexame necessário; improbidade administrativa; Lei 14.230/2021; direito processual; direito material; segurança jurídica.
Sumário: 1. Introdução. 2. O Reexame Necessário sob o Prisma Processual e Material. 2.1. Aspecto Processual 2.2. Aspecto Material. 2.3. O Reexame Necessário no Contexto do Microssistema de Tutela Coletiva. 3. A Vedação ao Reexame Necessário pela Lei nº 14.230/2021 e o Tema 1.284 do STJ. 4. Reflexões Críticas e Perspectivas. 5. Conclusão.
1. Introdução
A proteção do patrimônio público e a promoção da probidade administrativa são pilares essenciais do Estado Democrático de Direito, assegurados pelo artigo 37 da Constituição Federal. No âmbito judicial, instrumentos processuais como o reexame necessário desempenham papel fundamental na garantia de que decisões judiciais envolvendo interesses públicos sejam devidamente escrutinadas por instância superior, prevenindo prejuízos irreparáveis ao erário.
Historicamente, o reexame necessário surgiu como mecanismo de controle automático previsto em leis específicas, como a Ação Popular (Lei nº 4.717/1965) e o Mandado de Segurança Coletivo (Lei nº 12.016/2009). No entanto, a ausência de previsão expressa na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992) gerou uma construção jurisprudencial, por analogia, para garantir a mesma proteção no âmbito das ações de improbidade.
A edição da Lei nº 14.230/2021 inovou ao vedar expressamente o reexame necessário para sentenças de improcedência ou extinção sem resolução do mérito em ações de improbidade administrativa, provocando debates sobre a uniformidade do sistema processual e a segurança jurídica. A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, ao aplicar o princípio do tempus regit actum, reafirmou a importância do direito temporal no processo, determinando que a nova vedação não se aplica retroativamente.
Diante desse cenário, este artigo pretende analisar criticamente a evolução do instituto do reexame necessário na ação de improbidade administrativa, os impactos da Lei nº 14.230/2021 e a decisão do STJ, destacando a necessidade de coerência normativa e fortalecimento da tutela judicial do interesse público.
2. O Reexame Necessário sob o Prisma Processual e Material
2.1. Aspecto Processual
O reexame necessário, também chamado, até de forma equivocada, de recuso de ofício, é um mecanismo processual que impõe a revisão obrigatória, por tribunal superior, das decisões judiciais de primeira instância que possam afetar o patrimônio público ou interesses coletivos.
Previsto em dispositivos como o artigo 496 do Código de Processo Civil, seu objetivo é assegurar, dentre outras hipóteses, que decisões potencialmente prejudiciais ao erário recebam controle judicial mais rigoroso, mesmo sem provocação das partes.
2.2. Aspecto Material
No âmbito do direito material, o reexame necessário protege valores constitucionais e legais fundamentais, como o interesse público, a moralidade administrativa e o patrimônio público, previstos no artigo 37 da Constituição Federal. A proteção do erário e dos direitos difusos e coletivos demanda instrumentos processuais que assegurem um controle judicial efetivo e qualificado.
2.3. O Reexame Necessário no Contexto do Microssistema de Tutela Coletiva
O conceito de microssistema processual coletivo foi desenvolvido na doutrina e jurisprudência como forma de dar unidade e coerência às diversas normas que tutelam interesses transindividuais no ordenamento jurídico brasileiro. Com base nessa perspectiva, integram esse microssistema leis como:
a Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/1965);
a Lei do Mandado de Segurança Coletivo (Lei nº 12.016/2009);
o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990);
e, por extensão, a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992).
Todas essas normas visam, ainda que por instrumentos diversos, à proteção do patrimônio público, dos princípios da Administração Pública e de direitos difusos e coletivos.
Nesse contexto, a aplicação do reexame necessário em ações de improbidade administrativa, ainda que antes não prevista expressamente, sempre se justificou por força da coerência sistêmica: assim como se admite o reexame obrigatório na ação popular (art. 19 da Lei nº 4.717/1965), cuja finalidade é idêntica — proteção contra lesões ao erário e à moralidade administrativa — também se impunha tal controle nas ações fundadas na LIA.
A jurisprudência erigida pelo Superior Tribunal de Justiça, anterior à reforma legislativa de 2021, reconhecia essa lógica integrativa do microssistema, fruto dessa visão de unidade entre os instrumentos de defesa do interesse público.
A vedação ao reexame necessário introduzida pela Lei nº 14.230/2021 rompe com esse paradigma de coerência. Ao subtrair da ação de improbidade um controle processual que permanece nas ações populares e mandados de segurança, a reforma criou um regime normativo fragmentado e, em certa medida, contraditório. Como consequência, o Estado passa a dispor de menor grau de tutela judicial justamente na ação concebida para coibir os atos mais graves de lesão ao erário: os atos de improbidade.
Portanto, uma leitura que valorize o microssistema coletivo recomenda que a vedação ao reexame necessário seja interpretada restritivamente, ou, ao menos, compensada por mecanismos de controle que garantam igual grau de proteção dos interesses difusos e do patrimônio público. A manutenção da lógica sistêmica é condição para a efetividade das garantias materiais previstas na Constituição e nas normas infraconstitucionais.
3. A Vedação ao Reexame Necessário pela Lei nº 14.230/2021 e Tema 1.284 do STJ
Antes da definição do Tema 1.284 pelo Superior Tribunal de Justiça, a jurisprudência sobre a necessidade de reexame obrigatório nas ações de improbidade administrativa era marcada por acentuada divergência entre tribunais estaduais, tribunais regionais federais e o próprio STJ.
De um lado, prevalecia o entendimento — notadamente nas Turmas de Direito Público — de que, mesmo na ausência de previsão expressa na Lei nº 8.429/1992, o reexame necessário era aplicável às ações de improbidade, por analogia com o artigo 19 da Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/1965), dada a identidade de finalidade entre os institutos: proteção do patrimônio público e da moralidade administrativa.
Contudo, após a promulgação da Lei nº 14.230/2021, que expressamente vedou o reexame necessário para sentenças de improcedência ou de extinção do processo sem resolução de mérito, surgiram decisões que passaram a aplicar imediatamente a nova norma, mesmo a processos em curso, com fundamento no artigo 14 do Código de Processo Civil de 2015, segundo o qual as normas processuais têm aplicação imediata.
Esse conflito interpretativo levou à multiplicação de decisões contraditórias nos tribunais, motivando o STJ a afetar os Recursos Especiais nºs 2.117.355/MG, 2.118.137/ES e 2.120.300/MG à sistemática dos recursos repetitivos, sob relatoria do Ministro Teodoro Silva Santos.
No caso paradigmático (REsp 2.117.355/MG), o Ministério Público de Minas Gerais insurgiu-se contra acórdão do TJMG que deixara de admitir o reexame necessário, mesmo tendo a sentença de improcedência sido proferida sete meses antes da vigência da Lei nº 14.230/2021.
No voto condutor do acórdão repetitivo, o relator destacou que a jurisprudência do STJ é sólida ao adotar a teoria do isolamento dos atos processuais (tempus regit actum). Assim, a sentença proferida antes da vigência da nova lei deveria sujeitar-se à sistemática anterior. Concluiu-se, portanto, que a vedação introduzida pela nova legislação não se aplicaria retroativamente.
A tese fixada foi a seguinte:
“A vedação ao reexame necessário da sentença de improcedência ou de extinção do processo sem resolução do mérito, prevista pelo artigo 17, § 19, inciso IV, combinado com o artigo 17-C, § 3º, da Lei de Improbidade Administrativa, com redação dada pela Lei nº 14.230/2021, não se aplica aos processos em curso quando a sentença for anterior à vigência da referida norma.”
4. Reflexões Críticas e Perspectivas
Como bem observa Lays Noleto Silva (2021), a exclusão do reexame necessário da LIA após a edição da Lei nº 14.230/2021 revela não apenas uma lacuna, mas uma ruptura com a lógica integrativa do microssistema processual coletivo:
“Insta consignar que considerar a exclusão do reexame significaria fazer apenas uma leitura formal da LIA, negando efetividade ao microssistema processual coletivo e impedindo o pleno acesso à justiça nas referidas ações.”
Ainda segundo a autora:
“A aplicação da remessa necessária nas ações de improbidade tem por finalidade evitar condenações equivocadas e lesivas ao patrimônio público e à moralidade administrativa.”
Esse entendimento corrobora a crítica doutrinária à falta de uniformidade normativa entre instrumentos de tutela do interesse público — como a Ação Popular, o Mandado de Segurança e a própria Ação de Improbidade — cuja razão de existir é, precisamente, a preservação de bens jurídicos indisponíveis e difusos.
5. Conclusão
O reexame necessário configura um instituto que conjuga direito processual e direito material, atuando como salvaguarda institucional do patrimônio público e dos interesses sociais na esfera judicial.
A decisão do STJ no Tema 1.284, ao aplicar a teoria do tempus regit actum, assegurou proteção aos direitos adquiridos e reafirmou a importância do direito temporal no processo. Contudo, a vedação expressa ao reexame necessário na Lei nº 14.230/2021 expõe fragilidades no sistema jurídico, ao comprometer a uniformidade e a efetividade da proteção ao interesse público.
Assim, urge reflexão e possível aperfeiçoamento legislativo para garantir que o sistema processual preserve sua coerência e eficácia, atendendo plenamente aos valores constitucionais da probidade, moralidade e eficiência na Administração Pública.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965. Regula a ação popular. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 jun. 1965.
BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 jun. 1992.
BRASIL. Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009. Disciplina o mandado de segurança individual e coletivo. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 ago. 2009.
BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Altera a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992 (Lei de Improbidade Administrativa). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 out. 2021.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 mar. 2015.
SILVA, Lays Noleto. Aplicabilidade do reexame necessário nas ações de improbidade administrativa. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Brasília, DF, ano 33, n. 1, 2021.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Tema 1.284. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Temas-Repetitivos.aspx.
Abstract: This article analyzes the recent decision of the Superior Court of Justice in the judgment of Theme 1.284, which established the inapplicability of the prohibition on mandatory review (reexame necessário) for decisions issued before the enactment of Law No. 14.230/2021. It examines the historical development of mandatory review in administrative improbity cases, the legislative changes introduced in 2021, and the related procedural and substantive legal aspects. Finally, the article offers critical reflections on the impact of the new normative framework on legal certainty and the protection of public interest.
Keywords: mandatory review; administrative improbity; Law 14.230/2021; procedural law; substantive law; legal certainty.