Capa da publicação Audiência de custódia virtual: o que muda com o PL 2982
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Audiência de custódia por videoconferência, revisão da prisão preventiva e o papel do Ministério Público

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05/08/2025 às 08:44
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O PL 2982/2025 altera o CPP ao instituir audiência de custódia virtual como regra. A proposta enfraquece garantias fundamentais ou moderniza o sistema penal?

1. INTRODUÇÃO

O Projeto de Lei nº 2982, de 2025, em tramitação no Senado Federal, propõe alterações significativas no Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, o Código de Processo Penal. As modificações visam, primordialmente, estabelecer a audiência de custódia por sistema de videoconferência como regra, proibir o relaxamento automático da prisão por vícios na abordagem policial se os requisitos da prisão preventiva estiverem preenchidos, e clarificar o mecanismo de revisão periódica da prisão preventiva.

A presente análise adota uma abordagem doutrinária, explorando os fundamentos teóricos e as implicações práticas dessas propostas para o ordenamento jurídico brasileiro. Será ressaltado o impacto das alterações no papel do Ministério Público, destacando as qualidades percebidas da proposta para o sistema legal do país. Adicionalmente, será realizada uma comparação com abordagens em três sistemas jurídicos estrangeiros, e serão referenciadas propostas legislativas similares em tramitação no Brasil. Nas considerações finais, buscar-se-á estabelecer um entendimento definido sobre a relevância e os desafios inerentes a este projeto de lei.


2. As Alterações Propostas e Seus Fundamentos no Ordenamento Jurídico Brasileiro

O PL nº 2982 de 2025, introduz três eixos de alteração no CPP, cada um com objetivos e justificativas específicas que merecem uma análise aprofundada sob a ótica doutrinária.

2.1. Audiência de Custódia por Videoconferência

A proposta legislativa visa modificar os artigos 3º-B e 310 do CPP para instituir a audiência de custódia por videoconferência como a regra geral para presos em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória, a ser realizada em até 24 horas. A presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou advogado constituído é mantida. Para viabilizar tal medida, o projeto determina que todos os estabelecimentos prisionais possuam salas equipadas com mecanismos de videoconferência estáveis. Excepcionalmente, em situações de força maior, a audiência poderá ser presencial, mas não por questões de custo ou risco à segurança.

As justificativas para essa mudança são multifacetadas. O proponente enfatiza o princípio da eficiência na Administração Pública, previsto no artigo 37 da Constituição Federal, argumentando que a obrigatoriedade da audiência presencial gera um "inestimável desperdício de recursos". Um levantamento do Ministério da Justiça de 2018, citado na justificação, aponta que a escolta de presos para audiências custou R$ 250 milhões aos estados, sem incluir salários de agentes penitenciários. A proposta defende uma interpretação histórica do item 5 do artigo 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que exige a apresentação do detido "sem demora à presença de um juiz", argumentando que o preceito foi adotado em 1969, antes das tecnologias atuais, e que a otimização dos procedimentos é constante. A Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (2003) é mencionada como precedente para o uso de videoconferência em depoimentos.

Apesar das qualidades aparentes de celeridade, economicidade e modernização, a proposta de tornar a videoconferência a regra para audiências de custódia levanta importantes questionamentos doutrinários. A Resolução 329/2020 do Conselho Nacional de Justiça inicialmente vedava expressamente a realização de audiências de custódia por videoconferência, embora a Resolução 357/2020 tenha posteriormente admitido essa modalidade em caráter excepcional, quando a realização presencial não fosse possível em 24 horas. A preocupação central reside na capacidade de se garantir a plenitude dos direitos fundamentais do preso em um ambiente virtual.

A priorização explícita da eficiência e da redução de custos, conforme a justificação do projeto , entra em uma tensão fundamental com o propósito primordial da audiência de custódia. Este procedimento, conforme consolidado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e por instrumentos internacionais, visa não apenas o controle da legalidade da prisão, mas, crucialmente, a verificação da integridade física e psicológica do detido e a detecção de eventuais maus-tratos ou tortura. Organizações de direitos humanos e parte da comunidade jurídica manifestam forte preocupação de que a videoconferência dificulte a percepção de sinais sutis de abuso, que muitas vezes só são detectáveis por meio da interação física direta e da observação atenta do juiz. A oralidade e a imediação, princípios basilares do devido processo legal, são aspectos que podem ser comprometidos em um ambiente virtual. A capacidade de um juiz de avaliar plenamente as circunstâncias da prisão e a condição do detido pode ser significativamente afetada pela ausência da presença física.

A justificação do projeto invoca uma interpretação histórica do Pacto de São José da Costa Rica para adaptar a norma à realidade tecnológica hodierna. No entanto, esta abordagem hermenêutica suscita um desafio significativo no direito internacional dos direitos humanos. A questão central é até que ponto os tratados devem ser interpretados dinamicamente para incorporar avanços tecnológicos, e em que momento tal interpretação pode desvirtuar a intenção fundamental e o escopo protetivo da norma original. Embora a adaptação tecnológica seja frequentemente necessária para a eficiência processual , o objetivo central da audiência de custódia – a prevenção da tortura e a proteção da integridade física – pode demandar uma interpretação mais restritiva de "presença", que enfatize a imediaticidade física como um elemento insubstituível para a efetividade da salvaguarda. A preocupação é que, ao se flexibilizar o conceito de "presença", se comprometa a capacidade de cumprir o propósito mais sensível da audiência.

2.2. Vícios na Abordagem Policial e o Relaxamento da Prisão

O PL propõe a inclusão do §11 ao Art. 310. do CPP, estabelecendo que a existência de eventuais vícios na abordagem policial não implicará, por si só, no relaxamento da prisão, desde que os requisitos para a decretação da prisão preventiva (Arts. 312. e 313) estejam preenchidos. A proposta ressalva, contudo, que tal medida não prejudica a apuração de responsabilidade criminal e administrativa das autoridades policiais denunciadas, caso existam indícios mínimos de materialidade.

O objetivo declarado dessa alteração é combater a impunidade, impedindo que a "mera menção à tortura ou violência policial, individual e isoladamente", motive a soltura de pessoas presas em flagrante delito. A justificação cita um caso concreto de 2024, em Itaquaquecetuba, onde uma quadrilha foi solta com base unicamente na alegação de tortura por uma das sequestradoras, sem qualquer indício material ou oitiva de outras partes. O projeto argumenta que tal prática constitui um "verdadeiro abuso de poder" que usurpa os princípios do processo penal. As qualidades para o ordenamento jurídico brasileiro residem na busca por maior segurança jurídica e no combate à sensação de impunidade, assegurando que a decisão sobre a manutenção da prisão se baseie nos requisitos substantivos da preventiva, e não apenas em supostas falhas procedimentais não comprovadas.

Esta proposta dialoga diretamente com a "teoria dos frutos da árvore envenenada" (do inglês, fruit of the poisonous tree doctrine), amplamente aplicada no direito brasileiro. Essa teoria, de origem norte-americana, preceitua que provas obtidas por meios ilícitos, ou delas derivadas, são inadmissíveis no processo. A alteração proposta, ao desvincular o relaxamento da prisão da existência de vícios na abordagem policial (se presentes os requisitos da preventiva), introduz uma nuance significativa. A ideia é que, embora a conduta policial ilícita deva ser apurada e sancionada nas esferas criminal e administrativa , ela não deveria, por si só, anular a prisão se houver fundamentos autônomos e robustos para a decretação da prisão preventiva. Isso representa uma escolha política que busca evitar que uma falha processual, mesmo que grave, se torne um salvo-conduto para criminosos, sem prejuízo da responsabilização dos agentes públicos. Essa abordagem se aproxima de modelos onde a admissibilidade de provas ilicitamente obtidas é mais discricionária ou vinculada a propósitos específicos, em vez de uma exclusão automática para a detenção subjacente.

No entanto, a modificação proposta também suscita preocupações quanto ao potencial enfraquecimento do efeito dissuasório da regra de exclusão. O propósito primário das regras de exclusão de provas, notadamente no contexto norte-americano, é desincentivar a conduta policial ilegal. Se a consequência imediata da má conduta policial – o relaxamento da prisão – for removida ou substancialmente mitigada, mesmo com a promessa de investigações administrativas e criminais separadas, existe o risco de que os policiais se sintam menos compelidos a aderir estritamente aos procedimentos legais durante as abordagens e prisões. A argumentação subjacente é que a consequência judicial imediata (a soltura do detido) funciona como um desestímulo mais eficaz do que uma investigação administrativa ou criminal, que pode ser longa, complexa e com desfecho incerto para os oficiais. Isso gera uma tensão entre o objetivo de combater a impunidade dos criminosos e a necessidade de prevenir abusos policiais. A efetividade da "apuração de responsabilidade criminal e administrativa" como um mecanismo de dissuasão autônomo requer uma avaliação crítica.

2.3. Revisão Periódica da Prisão Preventiva

O projeto de lei aqui analisado modifica o Art. 316. do CPP para codificar expressamente a interpretação firmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2022 (ADI nº 6582/2022). O novo texto proposto estabelece que, decretada a prisão preventiva, o órgão emissor da decisão deverá revisar sua necessidade a cada 90 dias, mediante decisão fundamentada (§1º). Contudo, a inobservância desse prazo não implicará a revogação automática da prisão; o juízo competente deverá ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos (§2º).

Essa alteração é uma resposta direta à controvérsia gerada pelo caso "André do Rap", em 2020, quando um traficante de alta periculosidade foi solto por decisão liminar do Ministro Marco Aurélio Mello, baseada na não revisão da prisão preventiva no prazo de 90 dias, conforme a redação original do Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019). A soltura resultou na fuga do criminoso e gerou grande repercussão e críticas à corte. O STF, posteriormente, em 2022, fixou o entendimento de que a ausência de reavaliação não implica revogação automática, mas sim a necessidade de o juízo ser provocado a reavaliar. A proposta busca, assim, "extirpar qualquer possibilidade de regressar ao entendimento pretérito, absolutamente incompatível com a realidade assoberbada do Judiciário brasileiro e somente benéfico à criminalidade". As qualidades para o ordenamento jurídico incluem o aumento da segurança jurídica pela conformidade da lei com a jurisprudência consolidada, a racionalização das prisões provisórias e a prevenção da soltura de indivíduos perigosos por meros formalismos processuais.

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A proposta de emenda ao Art. 316. do CPP, que codifica a interpretação judicial do STF, representa um exemplo claro da interação dinâmica entre o Poder Judiciário e o Legislativo. O Legislativo atua para formalizar e estabilizar entendimentos jurisprudenciais que se mostraram controversos ou de alto impacto social. O principal efeito dessa codificação é o aumento da segurança jurídica, uma vez que a regra passa a estar explicitamente consagrada na lei, reduzindo ambiguidades e prevenindo futuras interpretações divergentes que poderiam levar a resultados indesejados, como a soltura automática de criminosos perigosos. Essa abordagem reflete uma escolha pragmática para preencher uma lacuna legislativa que havia permitido uma interpretação considerada problemática.

A redação original do parágrafo único do art. 316, introduzida pelo "Pacote Anticrime" , tinha como objetivo primordial coibir o excesso de prisões provisórias, alinhando-se ao princípio da duração razoável do processo. Contudo, o caso "André do Rap" expôs um conflito percebido entre esse princípio e a preocupação com a segurança pública, o que levou à reinterpretação do STF. O PL em análise codifica essa reinterpretação, efetivamente priorizando a segurança pública e a manutenção da detenção de indivíduos que preencham os critérios substantivos da prisão preventiva, em detrimento de uma consequência processual automática estrita para a inação judicial. Isso ilustra um debate persistente na sociedade e no direito sobre como equilibrar o direito fundamental à liberdade e o princípio da presunção de inocência com o imperativo da segurança pública e a eficácia do sistema de justiça criminal. A menção à "realidade assoberbada do Judiciário brasileiro" como uma restrição prática sugere que a automaticidade estrita poderia ser impraticável diante da carga de trabalho dos tribunais.


3. O Papel do Ministério Público Diante das Alterações Propostas

As alterações propostas no projeto impactam diretamente a atuação do Ministério Público, instituição essencial para a persecução penal e a defesa da ordem jurídica.

3.1. Atuação na Audiência de Custódia por Videoconferência

O projeto de lei mantém a presença obrigatória de um membro do Ministério Público na audiência de custódia por videoconferência. Além disso, assegura que o MP terá "todos os mecanismos para intervenção" e poderá "suscitar questões de ordem". Essa previsão garante a continuidade do papel do MP no controle da legalidade da prisão, na avaliação da necessidade de decretação ou manutenção da prisão preventiva e na participação ativa na revisão judicial inicial da situação do detido. A presença do MP é crucial para assegurar a correta aplicação da lei e a defesa do interesse público.

A mudança para o formato de videoconferência, embora mantenha a presença formal do MP, pode, contudo, exigir uma adaptação e um aprimoramento da atuação ministerial. Em um ambiente virtual, a capacidade do membro do MP de observar e avaliar integralmente a condição do detido, especialmente no que tange a alegações de tortura ou maus-tratos, pode ser desafiadora. O MP, na sua função de custos legis e de órgão acusador, ocupa uma posição singular. A dependência de sinais visuais e a percepção do conforto do detido em relatar abusos podem ser mitigadas pela tela. Isso implica uma responsabilidade acrescida para o MP de atuar proativamente, garantindo que o ambiente virtual não comprometa a função protetiva da audiência de custódia. Poderão ser necessárias diretrizes mais explícitas ou treinamentos específicos para os membros do MP sobre como operar eficazmente neste novo formato, a fim de detectar sinais sutis de coação ou coerção e assegurar que os direitos do preso sejam plenamente respeitados.

3.2. Fiscalização de Vícios na Abordagem Policial

O proposto §11 ao art. 310. do CPP, ao mesmo tempo em que impede o relaxamento automático da prisão por vícios na abordagem policial (se presentes os requisitos da preventiva), expressamente ressalva a "determinação de apuração de responsabilidade criminal e administrativa das autoridades policiais delatadas, se existirem indícios mínimos de materialidade". Essa disposição impõe um dever claro e reforçado ao Ministério Público de investigar e, se for o caso, processar os policiais por infrações criminais e administrativas relacionadas à má conduta durante as prisões. O papel do MP no controle externo da atividade policial é, portanto, reafirmado e, de certa forma, fortalecido, pois deve assegurar que as alegações de abuso sejam devidamente investigadas, mesmo que não resultem na soltura imediata do detido.

Essa abordagem da proposta legislativa em relação à má conduta policial estabelece uma responsabilidade complexa e dual para o Ministério Público. Por um lado, o MP é a autoridade de acusação, incumbida de buscar condenações e combater a impunidade. Por outro, é o órgão de controle externo da atividade policial, com a missão de garantir a legalidade e prevenir abusos. Ao separar a validade da prisão da investigação da má conduta policial, o projeto de lei exige que o MP prossiga simultaneamente com o processo criminal contra o detido e, se houver "indícios mínimos de materialidade", inicie investigações contra os policiais envolvidos. Isso demanda um delicado equilíbrio para evitar a percepção de conflitos de interesse ou a priorização de uma função em detrimento da outra. Do ponto de vista doutrinário, essa configuração reforça a posição ímpar do MP como parte e como guardião da ordem jurídica, exigindo mecanismos internos robustos para gerenciar esses papéis potencialmente conflitantes.

3.3. Participação na Revisão Periódica da Prisão Preventiva

O proposto §2º do art. 316. do CPP estabelece que, se o prazo de 90 dias para a revisão da prisão preventiva não for observado, o "juízo competente" deverá ser "instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos". Embora o texto não especifique explicitamente que o Ministério Público seja o responsável por "instigar" essa reavaliação , o papel do MP, como dominus litis e guardião da ordem jurídica, é crucial e implicitamente proativo. Na prática, espera-se que o MP monitore o cumprimento do prazo de 90 dias e, se necessário, peticione ao tribunal para que a reavaliação seja realizada, garantindo que a prisão provisória continue justificada e legal. Essa atuação se alinha com a responsabilidade mais ampla do MP pelo controle da legalidade nos processos criminais.

A ausência de menção expressa ao MP como o agente instigador no art. 316, §2º, não diminui a sua responsabilidade de assegurar a efetividade da revisão periódica. Dada a sua função constitucional de defender a ordem jurídica e o seu papel ativo no processo penal, é uma implicação lógica e necessária que o MP, ao lado da defesa, seja uma das entidades responsáveis por garantir que essa revisão ocorra. Se o MP não monitorar proativamente e instigar essas reavaliações, especialmente em um contexto de judiciário "assoberbado" , a eficácia da regra dos 90 dias como salvaguarda contra a detenção indevida poderia ser comprometida. Isso aponta para a necessidade de o Ministério Público desenvolver diretrizes internas que garantam um engajamento consistente e proativo com este mecanismo de revisão, assegurando que a prisão preventiva, medida de caráter excepcional, não se prolongue indevidamente.


4. Direito Comparado: Abordagens Similares e Contrastantes

A análise das propostas do PL nº 2892, de 2025, ganha profundidade ao ser cotejada com as experiências de outros sistemas jurídicos, revelando abordagens similares e contrastantes.

4.1. Audiências de Custódia Virtuais

A transição para audiências de custódia virtuais é um tema de debate global, com diferentes respostas em diversas jurisdições.

  • Estados Unidos: Nos EUA, as "initial appearances" (apresentações iniciais) e as audiências de revisão de fiança são etapas cruciais que geralmente exigem a presença do réu (Regra 5, FRCRP). Contudo, para algumas infrações menos graves (misdemeanors), a videoconferência pode ser permitida com o consentimento do réu (Regra 43, FRCRP). O foco principal é garantir que o réu compreenda as acusações e as condições de sua soltura. Durante a pandemia de COVID-19, o uso de aparições virtuais aumentou, mas persistem discussões sobre seu impacto no devido processo legal e na capacidade de avaliar o comportamento do réu para identificar questões como coerção ou abuso.

  • Reino Unido: O Reino Unido implementou uma rápida digitalização dos atos processuais, incluindo as "remand hearings" (audiências de custódia), utilizando plataformas como a Cloud Video Platform (CVP) e o Video Hearings Service (VHS). Embora reconhecida pela eficiência, a abordagem britânica ainda enfrenta preocupações em casos que envolvem provas ao vivo, questões complexas ou réus vulneráveis, onde a presença física é frequentemente considerada superior para a garantia da justiça. Salvaguardas incluem a garantia de privacidade, testes de equipamento e suporte técnico.

  • França: O sistema francês utiliza a "comparution immédiate" (comparência imediata) para julgamento rápido após a custódia policial. Embora a videoconferência tenha sido crescentemente utilizada para diversos atos processuais, especialmente para detidos ou indivíduos que representam risco à ordem pública , a presença virtual do acusado em audiências de julgamento (incluindo a comparution immédiate perante o tribunal correcional) geralmente exige o acordo do Ministério Público e de todas as partes. Isso demonstra uma forte ênfase no direito do acusado de estar fisicamente presente em tribunal.

A proposta brasileira de tornar a videoconferência a regra para audiências de custódia representa uma posição mais assertiva em comparação com muitas jurisdições. Enquanto os EUA a permitem para delitos menores e com consentimento , e o Reino Unido a adotou amplamente com ressalvas , a França, em geral, exige o acordo das partes para a presença virtual do acusado em audiências de julgamento. O tema subjacente é a tensão global entre os benefícios de eficiência e economia das audiências virtuais e as preocupações fundamentais com o devido processo legal, em particular o princípio da "imediação" e a capacidade de detectar tortura. A decisão do Brasil de torná-la a regra, mesmo com salvaguardas, o coloca na vanguarda desse debate, podendo enfrentar desafios semelhantes aos destacados por organismos internacionais em relação à supervisão dos direitos humanos.

4.2. Impacto de Vícios na Abordagem Policial na Validade da Prisão/Prova

A questão dos vícios na abordagem policial e suas consequências para a validade da prisão ou da prova é tratada de forma diversa nos sistemas jurídicos comparados.

  • Estados Unidos: Nos EUA, a "teoria dos frutos da árvore envenenada" (exclusionary rule) proíbe, em geral, o uso de provas obtidas como resultado de ação policial inconstitucional. No entanto, existem exceções, como a "descoberta inevitável" (a prova seria encontrada legalmente de qualquer forma) ou a "fonte independente" (a prova foi obtida de uma fonte separada e lícita). A má conduta policial pode levar à invalidade de uma prisão se faltar causa provável ou se o oficial agiu de forma desonesta.

  • Reino Unido: Os tribunais ingleses adotam uma abordagem mais pragmática em relação a provas obtidas ilegalmente. Embora tais provas possam ser admissíveis se relevantes, o tribunal tem discricionariedade para excluí-las se sua admissão tornar o julgamento injusto. O foco está na justiça do julgamento, e não necessariamente em desestimular a má conduta policial por meio da exclusão automática. Contudo, aqueles que obtêm provas de forma indevida podem enfrentar outras consequências legais.

  • França: A lei francesa reconhece os "vices de procédure" (vícios de procedimento), que podem levar à anulação total ou parcial de um procedimento judicial, incluindo a "garde à vue" (custódia policial), se os direitos fundamentais forem violados. Um atraso na notificação de direitos ou uma verificação de identidade ilegal pode resultar na nulidade, potencialmente levando à libertação do acusado.

  • Alemanha: O processo penal alemão é geralmente cético em relação ao enfraquecimento da exigência de presença física. Embora o conceito de "fruto da árvore envenenada" exista, não é aplicado tão estritamente quanto nos EUA. É importante notar que resistir a um ato oficial ilegal geralmente não é punível, indicando um reconhecimento de que a legalidade processual afeta a legitimidade da ação estatal.

A proposta brasileira (art. 310, §11) de impedir o relaxamento automático da prisão devido a vícios na abordagem policial, caso os requisitos da prisão preventiva estejam preenchidos, representa um afastamento de uma interpretação estrita da doutrina dos "frutos da árvore envenenada" aplicada à própria prisão. Em vez de uma invalidação automática da detenção, o projeto opta por uma investigação separada da má conduta policial. Essa abordagem aproxima o Brasil do modelo discricionário do Reino Unido ou da aplicação mais matizada da Alemanha , que priorizam a justiça global do julgamento ou os fundamentos substantivos da detenção, ao mesmo tempo em que fornecem vias para a responsabilização dos agentes estatais. Essa é uma escolha pragmática, que busca equilibrar a necessidade de desestimular a má conduta policial com o imperativo percebido da segurança pública e a prevenção da soltura de indivíduos perigosos por motivos processuais.

4.3. Revisão Periódica da Detenção Provisória

A revisão periódica da detenção provisória é um mecanismo de controle crucial para garantir o equilíbrio entre a liberdade individual e a necessidade de prisão cautelar, com variações significativas entre as jurisdições.

  • Alemanha: A lei alemã impõe limites temporais estritos à prisão preventiva ("Untersuchungshaft"). Embora não haja um período de revisão automática fixo como os 90 dias do Brasil, a detenção geralmente não pode exceder seis meses, após o que o Tribunal Superior Regional deve revisar sua justificação. Períodos mais longos são permitidos apenas em casos excepcionais e complexos. A ênfase é no princípio da proporcionalidade e na celeridade da investigação.

  • França: Na França, a "détention provisoire" (detenção provisória) tem durações iniciais (por exemplo, 4 meses para delitos, 1 ano para crimes) e pode ser prorrogada por um juiz ou pela chambre de l'instruction por períodos específicos, até uma duração máxima que varia significativamente com base na gravidade e no tipo de crime (por exemplo, 2 anos para crimes puníveis com menos de 20 anos, até 4 anos para certos crimes graves como tráfico de drogas ou terrorismo). Os mecanismos de revisão estão vinculados a esses períodos fixos e a pedidos de prorrogação.

  • Estados Unidos: O sistema dos EUA se baseia em audiências de fiança e no direito de habeas corpus para contestar detenções ilegais. Embora não haja uma revisão judicial periódica estrita como no Brasil ou na Alemanha, os réus podem solicitar "bail review hearings" (audiências de revisão de fiança) se as condições mudarem ou se a fiança for excessivamente alta. O sistema busca equilibrar a presunção de inocência com o risco de fuga e as preocupações de segurança pública.

O modelo brasileiro de revisão obrigatória a cada 90 dias é relativamente frequente em comparação com os períodos iniciais da França ou o limite geral de 6 meses na Alemanha para revisão por um tribunal superior. No entanto, a distinção fundamental, agora codificada pelo PL 2982, é a não automaticidade da soltura se a revisão for perdida. Isso cria um modelo híbrido: um dever estrito para o tribunal de revisar, mas uma consequência flexível se o dever não for cumprido, permitindo a discricionariedade judicial para evitar a soltura de indivíduos perigosos. Isso equilibra o imperativo dos direitos humanos de revisão regular com as realidades práticas da carga de trabalho judicial e as preocupações de segurança pública, refletindo uma síntese única de abordagens observadas em outras jurisdições.

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Sobre o autor
Ramiro Ferreira Freitas

Mestre em Educação, especialista em Direito Constitucional, Direito Internacional, Docência Jurídica, bacharel em Direito, consultor jurídico, parecerista e revisor de periódicos científicos, conferencista autor de livros e artigos, professor.︎ Advogado OAB 38063 Bio

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Ramiro Ferreira. Audiência de custódia por videoconferência, revisão da prisão preventiva e o papel do Ministério Público . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8070, 5 ago. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114586. Acesso em: 5 dez. 2025.

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