Resumo: A improbidade administrativa, regulada pela Lei n.º 8.429/1992 (LIA) e substancialmente alterada pela Lei n.º 14.230/2021, desempenha papel fundamental no combate à corrupção e proteção do patrimônio público no Brasil. Este artigo analisa a exigência de dolo como elemento subjetivo essencial para a configuração de atos ímprobos, destacando os avanços normativos e suas implicações práticas na jurisprudência e doutrina. A mudança normativa busca equilibrar a responsabilização de agentes públicos, protegendo aqueles que atuam de boa-fé, enquanto aprimora o rigor probatório e promove maior segurança jurídica. Ademais, são discutidos os desafios na aplicação prática da exigência do dolo, especialmente em casos de corrupção estruturada. O estudo conclui que a reforma legislativa consolida parâmetros mais justos e proporcionais para o enfrentamento da improbidade administrativa.
Palavras-chave: improbidade administrativa, dolo, Lei n.º 14.230/2021, segurança jurídica, administração pública.
1. Introdução
A improbidade administrativa ocupa uma posição central no ordenamento jurídico brasileiro como ferramenta de combate à corrupção e proteção do patrimônio público. Desde a promulgação da Lei n.º 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA), seu objetivo central é instrumentalizar a forma de enquadrar o agente público desonesto e com vontade de lesar o erário público, no entanto ao logo de sua vigência os debates sobre os critérios de responsabilização de agentes públicos e particulares, especialmente no que tange à necessidade de dolo ou culpa para a caracterização de atos ímprobos, foram inúmeros, quer sejam na vasta doutrina quer seja na vasta jurisprudência.
Com a promulgação da Lei n.º 14.230/2021, cujo texto alterou substancialmente a LIA, consolidou-se a exigência de dolo como elemento subjetivo indispensável à configuração de atos de improbidade. Este artigo busca analisar os fundamentos jurídicos e práticos dessa mudança, bem como explorar seus reflexos na jurisprudência e na doutrina.
2. O Conceito de Improbidade Administrativa no Direito Brasileiro
A improbidade administrativa, conforme definida pela LIA, compreende atos que causem enriquecimento ilícito (artigo 9.º), prejuízo ao erário (artigo 10) ou violem princípios administrativos (artigo 11). Não é demais destacar que o art. 37, §4º da Constituição Federal, trouxe de forma clara a necessidade de lei específica para tratar do tema, no entanto trouxe em seu texto quais seriam as sanções aplicadas, vejamos in verbis:
Art. 37. [...]
§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
[...]
Ao logo da vigência da Lei 8.429/1992, inúmeras eram as controvérsias sobre a aplicação do dolo como requisito geral, principalmente em atos que não envolviam enriquecimento ilícito ou dano direto ao erário. Era tormentosa a questão do elemento subjetivo para a caracterização do ato de improbidade, afinal a redação da LIA anterior dava espaço para punir a forma culposa do agir do agente público, que em muitos casos agiam de forma “ilegal”, mais pelo incompetência do que pela desonestidade, o que necessariamente temos que nem todo ato ilegal é improbo.
Neste sentido, necessário destacar a Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça, que dispõe:
“A Lei de Improbidade Administrativa não visa punir o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de lealdade e boa-fé; e por isso, necessário o dolo genérico na conduta do agente" (REsp 1512047/PE)
Antes das alterações promovidas pela Lei n.º 14.230/2021, havia controvérsias sobre a aplicação do dolo como requisito geral, especialmente em atos que não envolviam enriquecimento ilícito ou dano direto ao erário, como o caso dos atos descritos no art. 11. da LIA, em que se permitia a punição a presença do dolo genérico, fato que gerava impactantes decisões desfavoráveis ao agentes público, trazendo graves prejuízos, não só de direitos, mas a própria imagem.
Com a chegada da Lei nº 14.230/2021, em que atualizou drasticamente a LIA, a exigência de dolo foi incorporada expressamente em seu texto, delimitando sua aplicação a condutas intencionais. Com isso o texto atualizado do art. 1º da LIA, conforme mencionamos trouxe expressamente a necessidade da presença do dolo, in verbis:
Art. 1º O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)
Parágrafo único. (Revogado). (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)
§ 1º Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)
§ 2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)
§ 3º O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)
[...]
Salutar essa mudança que busca evitar que meros erros administrativos ou divergências interpretativas sejam tratados como improbidade, protegendo a boa-fé dos agentes públicos e fortalecendo o princípio da segurança jurídica.
3. O Dolo na Improbidade Administrativa: Aspectos Teóricos e Normativos
O dolo, no campo jurídico, refere-se à vontade consciente de realizar uma conduta ilícita, com plena ciência das consequências jurídicas e fáticas de tal ato. Diferentemente da culpa – que se caracteriza pela negligência, imprudência ou imperícia –, o dolo exige intencionalidade.
Na LIA, o artigo 1.º, §4.º, define dolo como “a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9.º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”. Essa definição enfatiza que atos ímprobos não podem ser presumidos, mas devem ser provados com base em elementos concretos.
Fernando Borba Franco e Luana Pedrosa de Figueiredo Cruz, argumentam que: “O dolo, para fins de caracterização de ato de improbidade, poderá e deverá ser tratado como a vontade livre e consciente de praticar os atos de tal maneira que vai além do ato praticado sem cuidado, sem cautela, e sim com o especifico proposito ou a ausência de cuidado deliberados, para lesar o erário.”(2023)
Segundo o jurista Marçal Justen Filho, a exigência do dolo qualifica a interpretação e aplicação da lei, distinguindo erros administrativos de práticas efetivamente lesivas à administração pública (JUSTEN FILHO, 2022).
Essa interpretação está alinhada aos princípios constitucionais, especialmente o da legalidade, previsto no artigo 37 da Constituição Federal, e o da proporcionalidade, que exige sanções adequadas à gravidade das condutas, evitando assim que condutas realizadas por negligência, imprudência ou imperícia sejam tratadas como atos de improbidade administrativa.
4. Jurisprudência do STF e STJ sobre o Dolo
4.1.O STF e a Constitucionalidade do Dolo
No julgamento da ADI 7042, o Supremo Tribunal Federal analisou a constitucionalidade das alterações promovidas pela Lei n.º 14.230/2021. A Corte decidiu que a exigência de dolo é compatível com a Constituição, reafirmando que a improbidade administrativa deve ser aplicada apenas a condutas intencionais. Consolidando o seguinte entendimento:
"A improbidade administrativa pressupõe conduta dolosa, uma vez que a punição de atos culposos, além de desproporcional, comprometeria a segurança jurídica e o devido processo legal."
O relator da ADI, Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto menciona que a ausência de dolo comprometeria o princípio da proporcionalidade, uma vez que a aplicação de sanções graves a condutas culposas poderia desestimular a administração pública e violar garantias fundamentais.
Finalizando a Corte Superior destacou que a Lei de Improbidade Administrativa tem por objetivo punir práticas intencionais que violem os princípios da administração pública ou que causam prejuízos ao erário, e afirma ainda que, punições excessivas ou inadequadas, como em casos de culpa simples, podem gerar efeitos contrários ao espírito da lei.
4.2. O STJ e a Retroatividade da Lei
O Superior Tribunal de Justiça também consolidou a exigência do dolo em suas decisões. Em casos como o REsp 1.666.228/SP, a Corte estabeleceu que a improbidade administrativa exige conduta dolosa, afastando a possibilidade de imputação baseada exclusivamente em culpa, in verbis:
"A improbidade administrativa exige conduta dolosa, sendo insuficiente a culpa para atrair a aplicação das sanções da Lei n.º 8.429/1992"
Além disso, o STJ tem aplicado retroativamente as disposições mais benéficas da Lei n.º 14.230/2021, em conformidade com o artigo 5.º, XL, da Constituição Federal. Esse entendimento permite que condenações baseadas em condutas culposas sejam revisadas, adequando-se à nova exigência de dolo.
5. A Exigência de Dolo: Perspectiva Doutrinária
A exigência do dolo como elemento subjetivo essencial para a caracterização de atos de improbidade administrativa é um tema amplamente debatido na doutrina jurídica. Nesse sentido, a Lei nº 14.230/2021 representa um marco relevante ao clarificar que a Lei de Improbidade Administrativa (LIA) não se confunde com a ação civil pública ou com a ação de ressarcimento. Com isso, reafirma-se a aplicação dos princípios do direito sancionador no tratamento de atos ímprobos.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a alteração legislativa trouxe avanços importantes, ao proteger agentes públicos de boa-fé e evitar que sejam penalizados por erros administrativos decorrentes da complexidade inerente à gestão pública. Essa mudança reforça a segurança jurídica e promove maior equilíbrio na aplicação da norma.
Por outro lado, Emerson Garcia aponta que a exigência de dolo pode gerar desafios à responsabilização, especialmente em contextos de corrupção estruturada, onde a intenção lesiva é muitas vezes camuflada por formalismos. Apesar disso, ele reconhece que a exigência do dolo qualifica o combate à improbidade, ao evitar interpretações arbitrárias e punições desproporcionais, o que fortalece a justiça nas decisões.
Calil Simão destaca que a Lei nº 14.230/2021, sancionada em 25 de outubro, promoveu alterações substanciais na Lei nº 8.429/1992, incorporando anseios doutrinários. Essas mudanças visaram combater a vulgarização do conceito de improbidade administrativa, corrigindo a aplicação ampliativa da lei a situações de meros erros funcionais ou ilegalidades formais.
Dessa forma, a exigência do dolo consolida-se como um parâmetro essencial para a responsabilização, permitindo a distinção entre a conduta dolosa, passível de sanção, e a atuação legítima, ainda que eventualmente marcada por equívocos. A Lei nº 14.230/2021 reforça, portanto, a necessidade de maior rigor jurídico e de proporcionalidade no enfrentamento da improbidade, protegendo agentes de boa-fé e qualificando o combate à corrupção.
Conclusão
A exigência de dolo para a configuração de atos de improbidade administrativa, introduzida pela Lei nº 14.230/2021, representa um marco normativo que busca equilibrar a proteção ao patrimônio público com a garantia de segurança jurídica para agentes públicos. Esse avanço legislativo delimita as condutas ímprobas às práticas intencionais, afastando punições arbitrárias e protegendo gestores que atuam de boa-fé, ao mesmo tempo em que fortalece o rigor probatório, exigindo evidências claras da intenção dolosa nas acusações.
Essa mudança normativa promove um ambiente administrativo mais estável e confiável, mas também impõe desafios práticos significativos. A necessidade de comprovação do dolo torna as investigações e processos mais complexos, exigindo maior capacidade técnica dos órgãos de controle e do Poder Judiciário, sobretudo em casos envolvendo corrupção estruturada, onde as intenções lesivas nem sempre são facilmente demonstráveis.
Portanto, a exigência do dolo consolida-se como um passo essencial para qualificar o combate à improbidade administrativa, assegurando uma aplicação justa e proporcional da norma. Seu sucesso depende do fortalecimento das estruturas de fiscalização, da capacitação técnica dos envolvidos no processo e da consolidação desse entendimento na doutrina e na jurisprudência. Apenas assim será possível garantir a eficácia da norma, a proteção ao interesse público e o respeito às garantias constitucionais.
Referências Bibliográficas
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