1. A Lei 15.150/2025, que alterou a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), para incluir o § 1º-B no seu art. 32, criminalizou a realização de tatuagens e a colocação de piercings em cães e gatos, quando a finalidade for estética.
Textualmente:
Art. 32. [...]
§ 1º-B. Incorre nas mesmas penas quem realiza ou permite a realização de tatuagens e a colocação de piercings em cães e gatos, com fins estéticos.
As “mesmas penas” referidas no novo parágrafo são as do parágrafo anterior (§ 1º-A) do mesmo artigo: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.
2. Essa alteração legislativa pode ser interpretada como uma reação à crescente tendência de antropomorfização dos animais de companhia (Mota-Rojas et al. 2021) ― uma prática em que se atribuem a eles desejos, necessidades ou valores humanos, muitas vezes sem base em evidências científicas, o que pode levar a decisões que priorizam expectativas humanas em detrimento do bem-estar real dos animais (Wynne, 2007).
Atribuir aos animais características humanas, como vaidade ou desejo de adornar o corpo, é uma forma de antropomorfismo que distorce sua natureza e pode comprometer seriamente seu bem-estar (Mota-Rojas et al., 2021). Essa prática, comum em ambientes domésticos, consiste na projeção de emoções, desejos e valores humanos sobre os animais, muitas vezes sem respaldo nas necessidades etológicas e fisiológicas reais das espécies.
De acordo com estudo de Mota-Rojas et al. (2021), a humanização excessiva dificulta a compreensão das demandas comportamentais e biológicas dos animais, favorecendo práticas prejudiciais como o uso de roupas desconfortáveis que comprometem a termorregulação (Tang et al., 2018), intervenções cirúrgicas sem indicação clínica, aplicação de cosméticos e tinturas no pelo, e uso de perfumes que interferem na comunicação olfativa dos cães. Também são comuns comportamentos alimentares inadequados, como a oferta de doces ou alimentos industrializados, que podem contribuir para a obesidade e outros distúrbios metabólicos. Além disso, atitudes como carregar cães no colo ou em bolsas, impedir interações com outros animais e restringir sua mobilidade por excesso de proteção comprometem o desenvolvimento cognitivo e emocional, favorecendo quadros de ansiedade e dificuldade de adaptação a estímulos cotidianos (Mota-Rojas et al., 2021).
A origem dessa percepção humanizada pode ser compreendida à luz do desenvolvimento cognitivo e social. Estudos indicam que a exposição precoce a representações antropomórficas de animais — como em livros infantis, desenhos animados e brinquedos — pode prejudicar a construção de conhecimentos factuais sobre as espécies e reforçar uma percepção centrada em características humanas e emoções atribuídas aos animais. Essa visão distorcida tende a ser mantida ao longo da vida e influencia práticas incompatíveis com o bem-estar animal (Geerdts, 2016).
Nesse contexto, a Lei nº 15.150/2025, ao vedar expressamente a realização de tatuagens e a colocação de piercings em cães e gatos, quando a finalidade for estética, pode ser interpretada como uma reação legislativa à naturalização de formas extremas de antropomorfismo. Trata-se, em última análise, da criminalização de práticas que, ainda que motivadas por afeto ou senso estético humano, geram sofrimento, dor ou desconforto aos animais. Essa perspectiva convida à reflexão: conhecer e respeitar as necessidades reais dos animais exige mais do que carinho — requer o abandono de projeções humanas e o compromisso com uma convivência ética e informada. O antropomorfismo, assim como a negligência, pode comprometer gravemente o bem-estar animal — e, quando causa sofrimento, passa a ser objeto de sanção legal.
3. Apesar do avanço representado pela norma ao coibir práticas abusivas e cruéis travestidas de “acessório visual”, é fundamental que sua interpretação e aplicação não comprometam a autonomia técnica dos profissionais veterinários e as práticas consagradas de identificação animal com propósito ético e sanitário.
A identificação permanente de animais é uma ferramenta essencial em diversas situações, incluindo campanhas de castração de cães e gatos em programas de controle populacional, o método CED (Captura, Esterilização e Devolução) para gatos ferais, guarda judicial de animais apreendidos e, também, em contextos de responsabilidade individual sobre animais de companhia, nos quais a identificação se torna imprescindível para casos de fuga, abandono ou disputas de guarda.
Existem diversos tipos de identificação permanente, tais como: microchip, ear-tipping (corte da ponta da orelha em gatos) e a tatuagem. Entre essas, destaca-se a tatuagem verde linear, recomendada por Griffin et al. (2020), como uma marca padronizada para indicar a esterilização de cães e gatos em campanhas de castração de alto volume. Essa tatuagem, geralmente feita com uma linha verde na região da virilha, é discreta, indolor, pois deve ser realizada sob anestesia, de baixo custo e tem finalidade estritamente funcional: evitar cirurgias exploratórias desnecessárias em animais já esterilizados, o que poderia causar sofrimento evitável e sobrecarregar recursos veterinários.
Já o ear-tipping é considerado o método mais eficaz para identificação visual à distância de gatos comunitários e ferais já castrados, sendo uma prática preconizada por entidades como a World Animal Protection (2022), especialmente no contexto de programas CED. Em que pese essa técnica não ser ponto de discussão, visto não estar elencada como proibida na referida Lei, é importante citá-la aqui, tanto por se tratar de método de identificação permanente, quanto para esclarecer equívocos comuns: não se trata de mutilação no sentido pejorativo, tampouco de prática antiética.
O corte da orelha é realizado com o animal sob anestesia geral, de forma rápida, segura e durante o próprio procedimento cirúrgico de esterilização. Críticas desinformadas, inclusive oriundas de setores da própria causa animal, desconsideram o reconhecimento técnico do método, inclusive o Conselho Federal de Medicina Veterinária, por meio da Resolução CFMV 1.595/2024, reconhece formalmente o corte reto da orelha de felinos como método não mutilante de identificação, desde que realizado com anestesia e analgesia adequadas, oferecendo respaldo ético e legal à técnica.
Portanto, a recaptura e reesterilização de um gato feral por falta de identificação pode causar mais sofrimento que sua marcação por ear-tipping, além de ser antieconômica e operacionalmente inviável em larga escala.
O estudo de Lord et al. (2010) revelou que o uso de tatuagens como forma de identificação é raro entre gatos, o que reforça a necessidade de ampliar a discussão sobre alternativas acessíveis e eficazes de marcação. Os autores destacam que a subutilização de métodos identificatórios está ligada à falta de conscientização dos responsáveis por animais e à ausência de recomendações mais ativas por parte dos médicos-veterinários.
Já o estudo de Owens et al. (2022) demonstrou que métodos de identificação como coleiras e microchips não causam prejuízos significativos à saúde física ou emocional dos gatos, sendo éticos e recomendados. Ainda assim, nem sempre tais opções estão disponíveis, especialmente em ações de campo ou comunidades carentes, reforçando o papel complementar da tatuagem.
Importa destacar que a tatuagem utilizada nesses contextos difere radicalmente daquela aplicada com finalidade estética: é simples, funcional, discreta e tecnicamente indicada em programas de controle populacional quando o uso do microchip não é possível (Benka et al., 2015). Além disso, estudos como o de Lindner e Fuelling (2006) demonstram que tatuagens auriculares são eficazes, duradouras, com boa legibilidade, e representam um método ético e seguro de identificação animal em contextos científicos e práticos. Os autores enfatizam a confiabilidade da tatuagem como recurso de identificação individual, inclusive para animais soltos, contribuindo para sua adequada rastreabilidade e proteção jurídica.
4. Em contrapartida, a colocação de piercings não apresenta qualquer justificativa funcional, sanitária ou técnica reconhecida, tratando-se exclusivamente de prática estética. Por essa razão, é incompatível com os princípios do Direito Animal (Ataide Jr., 2025) e com a ciência do bem-estar animal e não encontra respaldo em protocolos veterinários ou manuais técnicos.
Nesse sentido, é imprescindível compreender que a Lei nº 15.150/2025 veda a realização de tatuagens e piercings com finalidade estética, mas não impede o uso, tecnicamente justificado, de tatuagens para fins de identificação. A interpretação adequada da norma deve, portanto, resguardar a autonomia profissional dos veterinários e o direito à utilização de métodos consagrados e éticos, desde que sua aplicação atenda a critérios técnicos, seja proporcional à finalidade e exclua o intuito estético.
A proteção dos direitos animais não se faz por proibições absolutas, mas por regulações coerentes com os princípios técnicos. É nesse equilíbrio entre legislação e ciência — e na recusa ao antropomorfismo como guia de conduta — que se constrói uma política de proteção animal verdadeiramente eficaz e comprometida.
Referências
ATAIDE JUNIOR, V. de P. Introdução ao Direito Animal: a teoria das capacidades jurídicas animais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2025.
BENKA, V. A. W. et al. Ear-tips to ear-tags: marking and identifying cats treated with non-surgical fertility control. Journal of Feline Medicine and Surgery, v. 17, n. 9, p. 767-774, 2015, p. 771.
GEERDTS, Megan S. (Un)Real animals: Anthropomorphism and early learning about animals. Child Development Perspectives, v. 10, n. 1, p. 10-14, 2015, p. 11.
GRIFFIN, Brenda et al. Veterinary medical care guidelines for spay-neuter programs. Journal of the American Veterinary Medical Association, v. 256, n. 5, p. 520-538, 2020, p. 530.
LINDNER, D. L.; FUELLING, R. A. The use of tattoos to identify unknown dogs and cats. Journal of Veterinary Medical Education, v. 33, n. 2, p. 254-258, 2006, p. 256.
LORD, L. K. et al. Identification methods used in cats: owner behavior and preferences. Journal of the American Veterinary Medical Association, v. 237, n. 4, p. 387-394, 2010, p. 392.
MOTA-ROJAS, D. et al. Anthropomorphism and its adverse effects on the distress and welfare of companion animals. Animals, v. 11, n. 11, p. 3263, 2021, p. 2-3.
OWENS, C. et al. Physical and behavioral consequences of collar and microchip identification methods for domestic cats. Journal of Applied Animal Welfare Science, v. 25, n. 3, p. 245–257, 2022, p. 253.
TANG, K.-P.M.; CHAU, K.-H.; KAN, C.-W.; FAN, J. Assessing the accumulated stickiness magnitude from fabric–skin friction: Effect of wetness level of various fabrics. R. Soc. Open Sci. 2018, 5, 180860.
WORLD ANIMAL PROTECTION. Manual de Captura, Esterilização e Devolução (CED) para gatos comunitários. São Paulo: WAP, 2022, p. 19-22.
WYNNE, Clive D. L. What are animals? Why anthropomorphism is still not a scientific approach to behavior. Comparative Cognition and Behavior Reviews, v. 2, p. 125-135, 2007, p. 128-129.