Resumo: A Lei n. 14.451/2022 alterou o Código Civil, reduzindo os quóruns de deliberação para sociedades limitadas para "mais da metade do capital social". Essa mudança gerou debates sobre sua aplicação a contratos sociais pré-existentes. Este artigo aborda duas questões principais: a) qual quórum aplicar a contratos com remissão genérica ao "quórum legal", e b) a validade de cláusulas contratuais que preveem quóruns superiores aos mínimos legais. Com base em análise bibliográfica, jurisprudencial (STJ) e administrativa (DREI), defende-se que, para cláusulas genéricas, a lei vigente no momento da deliberação é a aplicável.
Palavras-chave: Sociedades Limitadas. Quóruns Deliberativos. Lei n. 14.451/2022. Autonomia da Vontade. Direito Societário.
1. Introdução
A Lei n. 14.451, em vigor desde 2022, promoveu significativas alterações no Código Civil brasileiro, com impacto direto nos aspectos societários, especialmente no que se refere ao quórum legal para deliberação e aprovação de matérias entre os sócios, conforme previsto no artigo 1.076. A principal modificação estabelece que a maioria do capital social é agora suficiente para aprovar grande parte das matérias elencadas no artigo 1.071 do Código Civil.
Essa mudança gerou debates sobre sua aplicação a contratos sociais preexistentes, especialmente aqueles com remissão genérica ao "quórum legal". A dúvida é: o quórum a ser seguido é o da época do contrato ou o alterado pela Lei n. 14.451? Outra questão é a validade de contratos que estipulam quóruns superiores aos mínimos legais. Discute-se se essas cláusulas contratuais permanecem válidas ou se a nova lei prevalece, limitando a autonomia da vontade.
O presente artigo tem como objetivo analisar essas lacunas e divergências interpretativas que se manifestam crescentemente, não apenas na jurisprudência pátria, mas também nos procedimentos de arquivamento de alterações contratuais perante as Juntas Comerciais. Busca-se, assim, oferecer uma análise das implicações jurídicas e propor caminhos para mitigar as incertezas geradas pela nova legislação.
1. A Lei n. 14.451/2022 e a Reconfiguração dos Quóruns Deliberativos
1.1. Contratos que mencionam "Quórum Legal": O problema da remissão genérica.
As sociedades limitadas, enquanto entes dotados de personalidade jurídica própria, quer sejam unicompostas ou pluricompostas, formalizam seu "nascimento" a partir do registro de seu contrato social na Junta Comercial. É nesse instrumento que são especificados os seus "elementos genéticos", tais como denominação, objeto social, composição do capital social, regras de administração e distribuição de resultados, além dos quóruns para a tomada de decisões.
Todavia, não são raros os contratos sociais elaborados a partir de modelos padronizados e genéricos, que se limitam a reproduzir fórmulas prontas e, em relação aos quóruns deliberativos, apenas fazem remissão genérica à "legislação" ou ao "quórum legal", sem especificar percentuais ou condições específicas. Essa prática, embora comum, gera uma ambiguidade significativa, especialmente diante de alterações legislativas supervenientes como a Lei n. 14.451/2022, que redefiniu os percentuais de deliberação.
A principal dúvida que emergiu desse cenário é se tais cláusulas genéricas acompanhariam automaticamente a alteração legislativa ou se os quóruns deveriam se manter conforme a lei vigente no momento do arquivamento/registro do contrato social.
Em tese, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), em seu artigo 6ª2, oferece balizas para a solução da controvérsia quanto à aplicação da nova legislação. Ao consagrar o princípio da aplicação imediata das leis, que resguarda o ato jurídico perfeito, a LINDB estabelece que o ato jurídico praticado é regido pela lei da época da sua celebração. Sob essa ótica, deliberações já realizadas (atos jurídicos perfeitos, como a aprovação de uma destituição de administrador) não seriam atingidas pela nova lei. Contudo, no que se refere às deliberações futuras, se o contrato social se limita a remeter ao "quórum legal", a interpretação majoritária e mais coerente com a finalidade da lei nova é que o quórum aplicável é o vigente à época da deliberação, e não o da celebração do contrato social. Isso porque a remissão genérica implica aceitação da regulação legal que estiver em vigor no momento da efetivação do ato.
Esse entendimento é, inclusive, consolidado por Arake e Tomazette (2022), que defendem que, em face de cláusulas genéricas, a vontade dos sócios é de que a regra legal vigente no momento da deliberação seja aplicada, independentemente de alterações supervenientes. Conforme os autores:
Vale dizer, ainda que, "[do contrário o legislador seria praticamente impotente, já que toda alteração de leis, ou edição de novas, atinge, do instante da publicação em diante, direitos adquiridos. Destarte, não há direito adquirido à permanência de um estatuto legal."9. Assim sendo, para as deliberações tomadas na égide de uma lei nova, já devem valer os novos quóruns alterados. (ARAKE, TOMAZETTE, 2022).
Diferentemente se apresenta o cenário quando a cláusula contratual é expressa ao determinar qual o quórum aplicável, ainda que, em um dado momento, este percentual coincidisse com o estipulado pela legislação vigente. Por exemplo, imagine-se a situação em que o contrato social, antes da alteração legislativa, previa expressamente o quórum de 3/4 (três quartos) do capital social para o aumento do capital social. Com a mudança do Código Civil para a exigência de "maioria do capital social" (50%+1%), a vontade das partes, expressamente manifestada no contrato, tende a prevalecer, sem que haja modificação automática ou controvérsia interpretativa direta da norma legal.
Esse entendimento é solidamente fundamentado pelo princípio da autonomia da vontade, que permite às partes, por sua livre escolha, especificar com precisão o quórum a ser observado para a deliberação de determinada matéria. Adicionalmente, é crucial considerar que o próprio Código Civil, em seu artigo 1.076, corrobora essa prerrogativa, ao dispor a possibilidade de os sócios escolherem quóruns maiores do que os ali previstos. Isso indica que as regras de quórum, para a maioria das matérias, possuem natureza dispositiva e não cogente, permitindo que o acordo de vontades prevaleça para fortalecer a segurança de certas deliberações.
Nessa perspectiva, torna-se viável e prudente aprofundar a análise nas seguintes questões: o quórum previsto no artigo 1.076 do Código Civil é de aplicação obrigatória (cogente) em todas as suas disposições? Ou os sócios possuem a liberdade de estipular percentuais diferentes para a aprovação das matérias elencadas, especialmente quóruns superiores, em exercício da autonomia da vontade?
1.2. Contratos com quóruns superiores ao legal: a questão da autonomia da vontade.
No âmbito das sociedades limitadas, o Código Civil de 2002, em sua seção 'Das Deliberações dos Sócios', estabelece as diretrizes para a tomada de decisões. Primeiramente, o artigo 1.071 elenca, de forma não exaustiva, as matérias que dependem da deliberação dos sócios, tais como a aprovação das contas da administração (inciso I), a designação e destituição de administradores (inciso III), a modificação do contrato social (inciso V), e outras relevantes para a gestão e a estrutura societária.
Com base nas disposições legais do Código Civil, especialmente a interpretação conjunta dos artigos 1.071 e 1.076, fica evidente que este último estabelece os quóruns mínimos obrigatórios para a deliberação das matérias societárias ali previstas. Isso significa que, na ausência de disposição contratual em contrário ou de quórum superior estipulado pelos sócios, esses percentuais legais deverão ser aplicados.
Essa compreensão é fundamental para distinguir a natureza desses quóruns: eles funcionam como um piso legal, assegurando um patamar mínimo de aprovação para decisões importantes, mas não necessariamente impedem que os sócios, no exercício de sua autonomia da vontade, estabeleçam requisitos mais elevados. A possibilidade de estipular quóruns superiores é, inclusive, uma faculdade expressamente reconhecida pela própria legislação, refletindo a liberdade dos sócios de conferir maior rigor e consenso a certas deliberações em prol da segurança e estabilidade da sociedade.
Para esclarecer a natureza dessas disposições, é crucial compreender que os quóruns do artigo 1.076 do Código Civil não possuem caráter imperativo (cogente) para todas as suas disposições. Ou seja, a norma legal atua como uma regra dispositiva, que se aplica quando as partes não pactuam de forma diversa, mas permite que os sócios definam condições mais rígidas. Esse entendimento é, inclusive, corroborado pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI). Conforme expresso no 'Manual das Sociedades Limitadas', documento que orienta os procedimentos de registro mercantil, a disposição contratual que prevê quóruns maiores para as matérias de deliberação dos sócios prevalecerá para fins de deliberação.
Dessa forma, fica claro que a autonomia da vontade dos sócios, expressamente manifestada no contrato social, prevalece sobre as disposições supletivas do Código Civil. O artigo 1.076 do Código Civil, ao estabelecer quóruns para deliberações, age como uma norma dispositiva que fixa um patamar mínimo, mas não impede que os sócios, no legítimo exercício de sua liberdade contratual, estipulem um quórum superior – como a unanimidade – para determinadas matérias. Essa prerrogativa contratual não apenas reflete a intenção das partes em proteger interesses específicos ou exigir maior consenso, mas também é respaldada pela própria lógica do sistema jurídico, que valoriza a pactuação privada quando não há ofensa à ordem pública.
2. Jurisprudência e Posicionamentos do DREI
Apesar das balizas teóricas oferecidas pela LINDB, a aplicação das alterações introduzidas pela Lei n. 14.451/2022 não foi suficiente para sanar todas as dúvidas interpretativas, especialmente no cotidiano das relações entre sócios. Essa lacuna gerou incertezas que transbordaram para o âmbito judicial e administrativo, provocando o Poder Judiciário e os órgãos de registro empresarial a definir a correta aplicação das novas regras em casos de alterações contratuais e demandas por nulidade de deliberações.
Nesse cenário, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial (REsp) n. 1.987.947/MG, o STJ fixou pontos cruciais que corroboram essa perspectiva. A ementa do referido julgado, ou trechos relevantes do corpo do acórdão, ilustra claramente esse posicionamento ao analisar um caso prático:
Observe-se que o Código Civil, até a alteração trazida pela Lei n. 14.451/2022, exigia o quórum especial consistente em 3/4 do capital social, que era previsto no inciso I do art. 1.076 do CC, para a modificação do contrato social (inciso V do art. 1.071 do CC) e para a aprovação de incorporação, fusão, dissolução da sociedade ou cessação do estado de liquidação. Tal exigência foi reduzida para o quórum de maioria absoluta (mais da metade do capital social), em razão da revogação do referido inciso I do art. 1.076 do CC. Adotou-se, a partir da Lei n. 14.451/2022, a regra geral da maioria absoluta para as deliberações a serem tomadas pelos sócios da sociedade limitada. Contudo, nota-se que a deliberação pelo aumento do capital social foi levada a cabo em 2017, quando ainda não estava em vigor a referida Lei n. 14.451/2022. Desse modo, aplica-se à espécie a redação original do artigo que assim dispunha:
De modo semelhante ao posicionamento do Poder Judiciário, o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) também se manifestou sobre a aplicação das novas regras de deliberação. Ao julgar o Recurso Administrativo n. 14022.048117/2024-14, o DREI reforçou que, embora a competência das Juntas Comerciais se restrinja à análise dos aspectos formais dos atos levados a registro, a interpretação e a aplicação das novas regras de quórum merecem atenção, devido ao seu impacto direto na validade dos registros.
A situação analisada pelo DREI, contudo, possuía uma particularidade distinta do caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça. Enquanto o STJ lidou com um contrato que fazia referência genérica ao "quórum legal", na situação examinada pelo DREI, o contrato social era claro e específico ao dispor o percentual de quórum para a deliberação. Por esse motivo, o entendimento consolidado foi de que a regra expressamente disposta no contrato refletia a vontade particular dos sócios e, portanto, deveria ser respeitada e prevalecer, independentemente de ter sido originalmente extraída de uma norma legal que, posteriormente, foi modificada pela Lei n. 14.451/2022:
In casu, a Cláusula 35ª da Sétima Alteração Contratual, expressamente, prevendo o quórum de 3/4, pode não ter sido apenas uma cópia da lei, mas uma escolha deliberada dos sócios à época de sua pactuação. Mesmo que, naquele momento, correspondesse ao mínimo legal, a sua manutenção, em um contexto de posterior redução do quórum legal, configura-se como um pacto mais rigoroso, visando à proteção de interesses minoritários ou à garantia de consensos qualificados em matérias sensíveis à sociedade. A Lei nº 14.451/2022, ao alterar o quórum legal, estabeleceu uma faculdade, não uma imposição de redução para todas as sociedades. A autonomia das partes, prevista no ordenamento jurídico, permite que os sócios estabeleçam quóruns mais elevados do que o mínimo legal, se assim o desejarem, visando à proteção de seus investimentos e à estabilidade da governança.
A decisão do DREI se destaca, ainda, por reforçar que o Código Civil fixa os quóruns mínimos, sem prejuízo de que os sócios, no exercício de sua autonomia de vontade, estabeleçam quóruns maiores, como, por exemplo, a unanimidade. Em outras palavras, há a confirmação expressa pelo Departamento de que o artigo 1.076 do Código Civil funciona como um piso, permitindo que as partes, por meio de seu contrato social, o elevem para atender a interesses específicos de governança.
Diante do exposto, percebe-se que, embora a matéria ainda gere discussões e represente um potencial gerador de futuros conflitos no Judiciário e nas Juntas Comerciais, o entendimento sobre a aplicação da Lei n. 14.451/2022 caminha para uma consolidação. Essa convergência hermenêutica harmoniza os princípios da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que rege a aplicação da lei no tempo, com a prevalência da autonomia da vontade contratual. Em síntese, a interpretação dominante sugere que cláusulas contratuais genéricas que remetem ao 'quórum legal' acompanharão a lei vigente no momento da deliberação, enquanto cláusulas que expressamente estabelecem quóruns superiores devem ser respeitadas, por força da liberdade de pactuação e da natureza dispositiva da maioria das regras do artigo 1.076 do Código Civil.
3. CONCLUSÃO
A Lei n. 14.451/2022, ao flexibilizar os quóruns mínimos exigidos para deliberações em sociedades limitadas, gerou um novo cenário que, apesar de visar à desburocratização, ainda desvela incertezas. Contratos sociais com remissão genérica ao "quórum legal" passarão a adotar automaticamente os novos quóruns da reforma legislativa. Essa interpretação, alinhada à LINDB e corroborada pela jurisprudência do STJ (REsp n. 1.987.947/MG) e pela orientação do DREI, reforça que o ato jurídico se concretiza e se submete à lei vigente no momento da deliberação.
Por outro lado, a autonomia da vontade permanece fundamental. Contratos sociais que expressamente estipulam quóruns superiores aos mínimos legais devem ter suas disposições respeitadas, mesmo após a Lei n. 14.451/2022. O DREI confirma que o Art. 1.076 do Código Civil estabelece um piso, não um teto, permitindo que os sócios ajustem a governança para um patamar mais rigoroso.
A solução para mitigar grande parte dessas incertezas reside na atualização dos contratos sociais. É fundamental que esses instrumentos sejam revisados para definir e especificar claramente os quóruns aplicáveis a cada matéria, alinhando a vontade das partes à nova realidade legislativa e, assim, prevenindo futuros conflitos e garantindo a segurança jurídica das relações societárias.
BIBLIOGRAFIA
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