Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a hipótese de dispensa de licitação emergencial prevista na Lei nº 14.133 de 1º de abril de 2021 (NLLC), avaliando os riscos da má utilização desse instituto e a responsabilização do agente público em casos de erro grosseiro. Abordam-se os dispositivos da nova legislação, os princípios e diretrizes trazidos pelo Decreto-Lei nº 4.657 de 04 de setembro de 1942 (LINDB) e a jurisprudência recente do Tribunal de Contas da União. Conclui-se pela necessidade de cautela e planejamento da Administração Pública, sob pena de responsabilização dos gestores e ineficiência dos gastos públicos.
Palavras-chave: Licitação; Dispensa; Emergência; Erro Grosseiro; Nova Lei de Licitações; LINDB; TCU.
Introdução
A licitação é o procedimento administrativo formal em que a administração pública convoca, mediante condições estabelecidas em ato próprio, empresas interessadas na apresentação de propostas para o oferecimento de bens e serviços.
Destarte, a própria Constituição Federal, em seu art. 37, XXI, ao fazer a exigência da licitação, relata a possibilidade de se dispensá-la, observando os ditames legais, vejamos:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(…)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (grifo nosso)
Nesse diapasão, a Lei nº 14.133/2021, em seu artigo 72 trata da possibilidade da dispensa de licitação, vejamos:
“Art. 72. O processo de contratação direta, que compreende os casos de inexigibilidade e de dispensa de licitação, deverá ser instruído com os seguintes documentos:” (grifamos)
Dessa forma, o art. 75 da NLLC, traz as hipóteses taxativas de dispensa de licitação, e dentre elas, a emergência e calamidade pública, vejamos:
“Art. 75. É dispensável a licitação:
(…)
VIII - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso;” (grifamos)
A contratação pública direta em situações emergenciais é um instrumento legítimo e necessário à Administração Pública para garantir a continuidade de serviços essenciais e evitar danos maiores à coletividade, Contudo, a banalização da dispensa de licitação emergencial pode configurar desvio de finalidade e resultar em erro grosseiro, com consequências para os gestores públicos.
Com a entrada em vigor da Lei nº 14.133/2021, a nova lei de licitações e contratos administrativos, que substitui o antigo regime da Lei nº 8.666/1993, a disciplina da dispensa por emergência ganhou novos contornos, exigindo maior rigor quanto à justificativa, à instrução processual e ao controle.
Aliado a isso, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), especialmente após a alteração promovida pela Lei nº 13.655/2018, introduziu critérios para a interpretação das normas administrativas e estabeleceu a responsabilidade do agente público somente em caso de dolo ou erro grosseiro, impondo-se aqui à análise conjunta.
Este artigo, portanto, visa examinar como a nova lei e a LINDB se articulam na delimitação dos limites da dispensa emergencial, considerando ainda a jurisprudência atual do TCU, que tem apontado os casos de erros grosseiros passíveis de responsabilização.
Fundamentos da Dispensa de Licitação por Emergência na Lei nº 14.133/2021
As hipóteses passíveis de dispensa de licitação, na Lei nº 14.133/2021 estão elencadas no rol taxativo do artigo 75 da NLLC, como falamos anteriormente, e, a emergência e calamidade pública é uma delas.
A Lei nº 14.133/2021, em seu art. 75, inciso VIII, prevê a possibilidade de dispensa de licitação em casos de emergência ou calamidade pública, desde que seja caracterizada a hipóteses de urgência e possa acarretar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos.
Como vemos, é necessário, a demonstração clara da situação emergencial ou calamitosa e suas consequências.
Importa ressaltar que o inciso VIII do art. 75 da Lei nº 14.133/2021, limita a duração dos contratos emergenciais a no máximo de 01 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, não admitindo prorrogação.
Além disso, o § 6º do artigo 75, diz textualmente que:
“§ 6º Para os fins do inciso VIII do caput deste artigo, considera-se emergencial a contratação por dispensa com objetivo de manter a continuidade do serviço público, e deverão ser observados os valores praticados pelo mercado na forma do art. 23 desta Lei e adotadas as providências necessárias para a conclusão do processo licitatório, sem prejuízo de apuração de responsabilidade dos agentes públicos que deram causa à situação emergencial.”
Da mesma forma que no dispositivo legal autoriza a dispensa de licitação nos casos tipificados (emergência ou de calamidade pública), deverão ser observados os parâmetros legais também positivados na norma, sem prejuízo da responsabilização do agente público que deu causa a situação.
Ressalta-se que o art. 167-C, da Constituição da República, disse que:
“Com o propósito exclusivo de enfrentamento da calamidade pública e de seus efeitos sociais e econômicos, no seu período de duração, o Poder Executivo federal pode adotar processos simplificados de contratação de pessoal, em caráter temporário e emergencial, e de obras, serviços e compras que assegurem, quando possível, competição e igualdade de condições a todos os concorrentes, dispensada a observância do § 1º do art. 169 na contratação de que trata o inciso IX do caput do art. 37 desta Constituição, limitada a dispensa às situações de que trata o referido inciso, sem prejuízo do controle dos órgãos competentes.” (grifo nosso)
Ademais a própria Constituição Federal traz essa possibilidade legal como exceção à regra, desde que seja uma situação pontual, atípica e temporária.
Nessa linha, Ronny Charles ensinou que:
“Obviamente, diante de tais tragédias, o Poder Público é chamado a agir. Contudo, esta ação, via de regra, exige a contratação de bens, equipamentos, materiais e serviços, entre outras pretensões contratuais, para que a ação estatal produza os efeitos desejados. Locações de imóveis, compra de alimentos, contratação de serviços de engenharia, entre outras demandas, são imprescindíveis para socorrer a população atingida.
(…)
Tal contratação direta deve se restringir estritamente ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e, na Lei nº 14.133/2021, apenas para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso.”
(CHARLES, Ronny. Dispensa Emergencial e o Dever de Eficiência. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/dispensa-emergencial-e-o-dever-de-eficiencia/, acessado em: 24 de julho de 2025).
Portanto, não há ilegalidade em se dispensar a licitação e realizar contrato emergencial, porém, devem ser observados os fundamentos legais que regulamentam tal possibilidade, sob pena de responsabilização do agente público que deu causa.
O Princípio da Responsabilidade e o Erro Grosseiro na LINDB
A LINDB, em seu art. 28, introduz uma cláusula de proteção à atuação dos agentes públicos, afastando a responsabilização por atos regulares de gestão, salvo em casos de dolo ou erro grosseiro:
“Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.”
O conceito de erro grosseiro, embora indeterminado, tem sido delineado pela doutrina e jurisprudência como aquele que decorre de negligência inescusável, falta de diligência mínima, ou desconsideração de normas básicas.
A LINDB impõe, assim, um balanço entre eficiência e segurança jurídica, buscando evitar o chamado "apagão das canetas", ao mesmo tempo em que responsabiliza atos flagrantemente desleixados ou contrários à boa gestão pública.
Sob o “erro grosseiro”, o egrégio Tribunal de Contas da União tem debatido muito o tema e tem mantido o entendimento que:
“Acerca da jurisprudência que vem se firmando sobre o tema, as decisões até o momento proferidas parecem se inclinar majoritariamente para a equiparação conceitual do 'erro grosseiro' à 'culpa grave'. Para fins do exercício do poder sancionatório do TCU, tem-se considerado como erro grosseiro o que resulta de grave inobservância do dever de cuidado e zelo com a coisa pública (Acórdão 2391/2018-TCU-Plenário, Relator: Benjamin Zymler, Acórdão 2924/2018-TCU-Plenário, Relator: José Mucio Monteiro, Acórdão 11762/2018-TCU-Segunda Câmara, Relator: Marcos Bemquerer, e Acórdãos 957/2019, 1.264/2019 e 1.689/2019, todos do Plenário, Relator Augusto Nardes).”
Acórdão 4375/2025 - Segunda Câmara-TCU (GRIFO NOSSO)
“Considerando a jurisprudência do TCU, o erro grosseiro é entendido como a grave inobservância do dever de cuidado e zelo com a coisa pública. Ademais, nos termos do Acórdão 2012/2022-TCU-Segunda Câmara, rel. Min. Antonio Anastasia, nele incorre o gestor que falha gravemente nas circunstâncias em que não falharia aquele que emprega um nível de diligência normal no desempenho de suas funções, considerando os obstáculos e dificuldades reais apresentados à época da prática do ato impugnado.”
Acórdão 11674/2023-Primeira Câmara -TCU (GRIFO NOSSO)
Dessa forma, podemos entender que o erro grosseiro a que alude o art. 28 do Decreto-lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), incluído pela Lei 13.655/2018, fica configurado quando a conduta do agente público se distancia daquela que seria esperada do administrador médio, avaliada no caso concreto.
Casos de Erro Grosseiro e Dispensas Emergenciais
O norte da questão suscitada é a demonstração nos autos da efetiva ocorrência de situação emergencial ou calamitosa apta a justificar o afastamento da competição entre interessados por meio da licitação pública.
Como visto, a dispensa demonstra que de alguma forma, por algum motivo, a Administração pública optou por não realizar a licitação.
Vale ressaltar que a simples desorganização administração ou falta de planejamento adequado, ou uma situação urgente, mas previsível, não se encaixam na regra da dispensa emergencial, sendo desídia da administração, e, como consequência, a responsabilização de quem deu causa.
Ressalta-se que é aplicável às dispensas emergenciais a regra de responsabilização prevista no art. 73 da Lei nº 14.133/2021, onde diz que:
“Art. 73. Na hipótese de contratação direta indevida ocorrida com dolo, fraude ou erro grosseiro, o contratado e o agente público responsável responderão solidariamente pelo dano causado ao erário, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis”.
Em diversos julgados, os tem reconhecido que a emergência decorrente da omissão da Administração não justifica a dispensa. Trata-se da chamada emergência fabricada, que ocorre quando a Administração, mesmo ciente da necessidade futura, não adota providências em tempo hábil.
De outra banda, o artigo 22 da LINDB, diz claramente que:
“Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.”
A jurisprudência atual reforça a importância do planejamento da contratação pública mesmo em cenários que aparentam ser emergenciais. O gestor não pode se escusar sob o manto da urgência, quando a situação era previsível e evitável.
Contudo, também se reconhece que em determinadas situações, a boa-fé e a diligência do agente público, mesmo que o resultado tenha sido falho, afastam a imputação de sanções, à luz da LINDB.
Ademais, o Decreto Federal nº 9.830/2019, sobre a Responsabilização na hipótese de dolo ou erro grosseiro, nos diz que:
“Art. 12. O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.
§ 1º Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.
§ 2º Não será configurado dolo ou erro grosseiro do agente público se não restar comprovada, nos autos do processo de responsabilização, situação ou circunstância fática capaz de caracterizar o dolo ou o erro grosseiro.
§ 3º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização, exceto se comprovado o dolo ou o erro grosseiro do agente público.
§ 4º A complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público serão consideradas em eventual responsabilização do agente público.
§ 5º O montante do dano ao erário, ainda que expressivo, não poderá, por si só, ser elemento para caracterizar o erro grosseiro ou o dolo.
§ 6º A responsabilização pela opinião técnica não se estende de forma automática ao decisor que a adotou como fundamento de decidir e somente se configurará se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica ou se houver conluio entre os agentes.
§ 7º No exercício do poder hierárquico, só responderá por culpa in vigilando aquele cuja omissão caracterizar erro grosseiro ou dolo.
§ 8º O disposto neste artigo não exime o agente público de atuar de forma diligente e eficiente no cumprimento dos seus deveres constitucionais e legais.”
(grifo nosso)
Portanto, é necessário, portanto, avaliar o contexto fático em que se deu a contratação, se houve planejamento, ou se houve tentativas reais de realizar licitação, como também a urgência foi devidamente documentada e amplamente justificada.
Conclusão
A dispensa de licitação por emergência é um instrumento importante, mas deve ser utilizada com responsabilidade e dentro dos limites legais. A nova Lei nº 14.133/2021, em conjunto com a LINDB e os julgados do Tribunal de Contas da União, constrói um sistema que busca responsabilizar o erro grosseiro, mas também proteger os bons gestores.
O agente público precisa demonstrar que atuou com diligência, planejamento e boa-fé, sob pena de ver sua conduta qualificada como omissão culposa ou dolosa.
Por fim, a consolidação de uma cultura de planejamento e integridade nas contratações públicas é essencial para reduzir os casos de emergência fabricada e proteger o interesse público.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. (Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm).
BRASIL. Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018 (Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13655.htm).
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.(Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm)
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657 de 4 de setembro de 1942 (Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm)
BRASIL. Decreto Federal nº 9.830, de 10 de junho de 2019. (Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/d9830.htm).
Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 4375/2025 - Segunda Câmara.
Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 11674/2023-Primeira Câmara.
CHARLES, Ronny. Dispensa Emergencial e o Dever de Eficiência. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/dispensa-emergencial-e-o-dever-de-eficiencia/, acessado em: 24 de julho de 2025