Resumo: Em meio a templos e manifestações de religiosidade, observa-se a permanência da violência contra a mulher nos espaços religiosos, muitas vezes velada sob discursos doutrinários. Sermões distorcidos e interpretações equivocadas das Escrituras contribuem para a perpetuação de uma cultura de silenciamento, culpa e submissão feminina. Aconselhamentos pastorais, por vezes, reforçam a ideia de que a mulher deve suportar abusos em nome da fé ou matrimônio. Esse artigo propõe uma análise crítica sobre como determinadas leituras bíblicas e práticas religiosas legitimam a violência de gênero e dificultam o acesso das vítimas à proteção e à justiça. Ao mesmo tempo, resgata exemplos da própria Bíblia que evidenciam a resistência e a voz das mulheres oprimidas. O estudo busca contribuir para a construção de uma teologia comprometida com os direitos humanos, direitos das mulheres e a justiça social.
Palavras-chave: Violência contra a mulher. Religião e opressão. Direitos das mulheres. Teologia. Justiça social.
1. INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher está presente em nossa sociedade desde os tempos remotos. No Brasil, é possível identificar que as mulheres foram historicamente silenciadas desde o período colonial, quando predominava o patriarcado. Nesse contexto, até mesmo os assassinatos de mulheres eram amparados pela legislação vigente. Durante as Ordenações Filipinas, por exemplo, as mulheres eram tuteladas pelo pai ou marido, sendo vistas como frágeis e emocionalmente instáveis. Nesse cenário, os homens tinham permissão para agredi-las ou até mesmo matá-las sob a justificativa da honra.
Com o advento do Código Penal de 1830, ainda se mantinha uma estrutura jurídica que desconsiderava a mulher como sujeito de direitos plenos. A legislação previa, por exemplo, a possibilidade de o homem matar a esposa em flagrante adultério sem ser penalizado com rigor.
Já o Código Penal de 1940, apesar de representar um avanço em relação ao anterior, ainda carregava resquícios da desigualdade de gênero, tratando o adultério como crime motivado pela honra masculina.
Somente com a Constituição Federal de 1988 é que passamos a ter um marco relevante na luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. Com base nesse novo paradigma, surgiram leis que reforçam a proteção à mulher, culminando em 2006, na criação da Lei Maria da Penha, que representou um divisor de águas no combate à violência doméstica.
Porém, é possível observar a violência contra a mulher nos tempos bíblicos. Mais adiante, conheceremos algumas dessas histórias, incluindo a história de Tamar, nome do qual carrega o tema deste presente artigo. Histórias reais, muitas vezes silenciadas, retratam a dor e o sofrimento causados por abusos cometidos por homens perversos que se escondem sob a proteção institucional da fé. Em diversas ocasiões, líderes religiosos acabam por colaborar com discursos que naturalizam ou justificam a violência, gerando culpa, medo e silencio nas vítimas.
Discursos como “Deus odeia o divórcio”, ou “é melhor um olho roxo do que uma certidão de divórcio”, perpetuam a ideia de que a mulher deve suportar todo o tipo de abuso em nome da salvação de seu casamento. Tais falas reforçam a submissão feminina, incentivando mulheres a se calarem diante da dor, na esperança de que seus maridos venham a ser transformados por meio da fé. Essa cultura do silencio, aliada as distorções de ensinamentos religiosos, contribui para a permanência da violência.
2. ASPECTOS GERAIS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
2.1. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
A violência contra a mulher é todo ato lesivo que resulte em dano físico, psicológico, sexual, patrimonial, que tenha por motivação principal o gênero, ou seja, é praticado contra mulheres expressamente pelo fato de serem mulheres. A violência contra a mulher pode ser praticada no âmbito da vida privada em ações individuais, exemplos disso são: o assédio, a violência doméstica, o estupro, o feminicídio e a violência obstétrica.
No entanto, a violência contra a mulher também pode ser praticada como ação coletiva, é o caso, por exemplo, de políticas estatais de mutilação genital feminina ainda hoje praticada em alguns lugares. A ação coletiva de violência também pode ser praticada por organizações criminosas, como a rede de tráfico de mulheres para prostituição forçada.
2.2. PRINCIPAIS CAUSAS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
A violência contra a mulher tem como origem a construção desigual do lugar das mulheres e dos homens nas mais diversas sociedades. Portanto, a desigualdade de gênero é a base de onde todas as formas de violência e privação contra mulheres estruturam-se, legitimam-se e perpetuam-se. A desigualdade de gênero é uma relação de assimetria de poder em que os papéis sociais, o repertório de comportamentos, a liberdade sexual, as possibilidades de escolha de vida, as posições de liderança, a gama de escolhas profissionais são restringidas para o gênero feminino em comparação ao masculino.
As causas, portanto, são estruturais, históricas, político-institucionais e culturais. O papel da mulher foi por muito tempo limitado ao ambiente doméstico, que, por sua vez, era uma propriedade de domínio particular que não estava sujeita à mesma legislação dos ambientes públicos. Sendo assim, a própria mulher era enxergada como uma propriedade particular, sem direito à vontade própria e sem direito à cidadania forjada nos espaços públicos, não à toa o sufrágio feminino e os direitos civis para mulheres são conquistas recentes em muitos países e ainda não completamente efetivadas em nenhum lugar do mundo.
As situações individuais e cotidianas, como sofrer assédio de rua, ter o comportamento vigiado e controlado, não poder usar certas roupas, ser alvo de ciúme, reprimir a própria sexualidade, são sintomas, e não causas, de violações mais dramáticas, como o estupro e o feminicídio.
A violência doméstica não é exclusivamente fruto de um infortúnio pessoal, de uma má escolha, de azar. Ela tem bases socioculturais mais profundas, inclusive as mulheres que rompem a barreira do silêncio e decidem denunciar ou buscar por justiça sentem com muito mais força a reação da estrutura de desigualdade de gênero no desencorajamento, na suspeita lançada sobre a vítima ao invés do agressor. A causa estruturante, que é a desigualdade de gênero, é agravada por outros fatores que também potencializam a vulnerabilidade à violência, tais como a pobreza, a xenofobia e o racismo. Embora a violência de gênero atinja todas as mulheres, ela se combina com outros fatores e é sentida de maneira mais dura por mulheres pobres, refugiadas e negras.
2.3. TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Estão previstos cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher na Lei Maria da Penha: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial − Capítulo II, art. 7º, incisos I, II, III, IV e V.
Essas formas de agressão são complexas, perversas, não ocorrem isoladas umas das outras e têm graves consequências para a mulher. Qualquer uma delas constitui ato de violação dos direitos humanos e deve ser denunciada.
2.3.1. VIOLÊNCIA FÍSICA
Entendida como qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher. Ex: espancamento, atirar objetos, sacudir e apertar os braços, estrangulamento ou sufocamento, lesões com objetos cortantes ou perfurantes, ferimentos causados por queimaduras ou armas de fogo, tortura.
2.3.2. VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA
É considerada qualquer conduta que: cause dano emocional e diminuição da autoestima; prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher; ou vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões. Ex: ameaças, constrangimentos, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, insultos, chantagens, exploração, limitação do direito de ir e vir, ridicularização, tirar a liberdade da crença, distorcer e omitir fatos para deixar a mulher em dúvida sobre a sua memória ou sanidade (gaslighting).
2.3.3. VIOLÊNCIA SEXUAL
Trata-se de qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força. Ex: estupro, obrigar a mulher a fazer atos sexuais que causam desconforto ou repulsa, impedir o uso dos métodos contraceptivos ou forçar a mulher a abortar, forçar matrimonio, gravidez ou prostituição por meio de coação, chantagem, suborno ou manipulação, limitar ou anular o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher.
2.3.4. VIOLÊNCIA PATRIMONIAL
Entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. Ex: controlar o dinheiro, deixar de pagar pensão alimentícia, destruição de documentos pessoais, furto, extorsão ou dano, estelionato, privar de bens, valores ou recursos econômicos, causar danos propositais a objetos da mulher ou dos quais ela goste.
2.3.5. VIOLÊNCIA MORAL
É considerada qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. Ex: acusar a mulher de traição, emitir juízos morais sobre a conduta, fazer críticas mentirosas, expor a vida intima, rebaixar a mulher por meio de xingamentos que incidem sobre a sua índole, desvalorizar a vítima pelo seu modo de se vestir.
2.4. PERFIL DO AGRESSOR
O perfil do agressor no contexto da violência doméstica é um tema complexo e importante que merece uma análise mais abrangente. O agressor não é apenas um produto da cultura machista, mas também apresenta características psicológicas que contribuem para seu comportamento abusivo.
O perfil psicológico dos agressores revela que eles enfrentam dificuldades na resolução de problemas e desafios da vida. Possuem baixa autoestima e pouca tolerância à frustração. Não suportam a rejeição e frequentemente manifestam ciúmes patológicos, juntamente com a necessidade de controlar suas parceiras.
Esses agressores são sensíveis às críticas, têm um humor volátil e se irritam facilmente. Suas habilidades sociais costumam ser subdesenvolvidas, dificultando a comunicação eficaz e a resolução pacífica de conflitos (GEDRAT; SILVEIRA; NETO, 2020).
Além dessas características, outros fatores podem agravar a violência, como o estresse, o uso de substâncias como álcool e drogas, e a exposição prévia à violência no ambiente familiar. Muitos agressores cresceram em lares onde a violência era a única forma de lidar com os problemas familiares ou conjugais, tornando-se testemunhas ou vítimas dos maus-tratos. Esses padrões podem ser perpetuados em suas próprias vidas familiares.
2.5. CICLO DA VIOLÊNCIA
Apesar de a violência doméstica ter várias faces e especificidades, a psicóloga norte-americana Lenore Walker identificou que as agressões cometidas em um contexto conjugal ocorrem dentro de um ciclo que é constantemente repetido.
2.5.1. FASE 1 – AUMENTO DA TENSÃO
Nesse primeiro momento, o agressor mostra-se tenso e irritado por coisas insignificantes, chegando a ter acessos de raiva. Ele também humilha a vítima, faz ameaças e destrói objetos. A mulher tenta acalmar o agressor, fica aflita e evita qualquer conduta que possa “provocá-lo”. As sensações são muitas: tristeza, angústia, ansiedade, medo e desilusão são apenas algumas. Em geral, a vítima tende a negar que isso está acontecendo com ela, esconde os fatos das demais pessoas e, muitas vezes, acha que fez algo de errado para justificar o comportamento violento do agressor ou que “ele teve um dia ruim no trabalho”, por exemplo. Essa tensão pode durar dias ou anos, mas como ela aumenta cada vez mais, é muito provável que a situação levará à Fase 2.
2.5.2. FASE 2 – ATO DE VIOLÊNCIA
Esta fase corresponde à explosão do agressor, ou seja, a falta de controle chega ao limite e leva ao ato violento. Aqui, toda a tensão acumulada na Fase 1 se materializa em violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. Mesmo tendo consciência de que o agressor está fora de controle e tem um poder destrutivo grande em relação à sua vida, o sentimento da mulher é de paralisia e impossibilidade de reação. Aqui, ela sofre de uma tensão psicológica severa (insônia, perda de peso, fadiga constante, ansiedade) e sente medo, ódio, solidão, pena de si mesma, vergonha, confusão e dor. Nesse momento, ela também pode tomar decisões − as mais comuns são: buscar ajuda, denunciar, esconder-se na casa de amigos e parentes, pedir a separação e até mesmo suicidar-se. Geralmente, há um distanciamento do agressor.
2.5.3. FASE 3 – ARREPENDIMENTO E COMPORTAMENTO CARINHOSO
Também conhecida como “lua de mel”, esta fase se caracteriza pelo arrependimento do agressor, que se torna amável para conseguir a reconciliação. A mulher se sente confusa e pressionada a manter o seu relacionamento diante da sociedade, sobretudo quando o casal tem filhos. Em outras palavras: ela abre mão de seus direitos e recursos, enquanto ele diz que “vai mudar”. Há um período relativamente calmo, em que a mulher se sente feliz por constatar os esforços e as mudanças de atitude, lembrando também os momentos bons que tiveram juntos. Como há a demonstração de remorso, ela se sente responsável por ele, o que estreita a relação de dependência entre vítima e agressor. Um misto de medo, confusão, culpa e ilusão fazem parte dos sentimentos da mulher. Por fim, a tensão volta e, com ela, as agressões da Fase 1.
2.6. SILENCIAMENTO POR PARTE DAS VÍTIMAS
As mulheres que sofrem violência não falam sobre o problema por um misto de sentimentos: vergonha, medo, constrangimento. Os agressores, por sua vez, não raro, constroem uma autoimagem de parceiros perfeitos e bons pais, dificultando a revelação da violência pela mulher. Por isso, é inaceitável a ideia de que a mulher permanece na relação violenta por gostar de apanhar.
3. RELIGIÃO E VIOLÊNCIA DE GÊNERO
3.1. QUANDO A FÉ ENFRENTA O CRIME
A Bíblia condena o estupro claramente e qualquer outra forma de violência contra a mulher, embora a palavra não apareça desta forma no texto, mas sim as expressões forçar e abusar. Infelizmente este fato sempre fez parte da história humana. Mas por que a Bíblia fala de estupro? Certamente como uma forma de denúncia, mostrando as consequências e ensinando que o mesmo não é o padrão Divino para as relações humanas. A Bíblia não esconde os pecados humanos e por isso também fala dos crimes cometidos pelas pessoas, como o estupro e tantos outros. Toda forma de violação do corpo para efeito sexual é considerada estupro. O sexo foi criado por Deus para o homem e a mulher como fruto do seu amor voluntário um pelo outro. No contexto cristão, a violência doméstica também é recorrente. A Universidade Presbiteriana Mackenzie realizou um estudo com base em dados colhidos de Organizações Não-governamentais (ONGs), e aponta que 40% das evangélicas sofrem violência em seus lares. Inclusive, muitos agressores professam a mesma fé.
3.2. TAMAR, UMA PRINCESA VIOLENTADA: VIOLÊNCIA, PODER E OMISSÃO
O relato bíblico de 2 Samuel 13 apresenta uma das mais impactantes narrativas de violência sexual contra a mulher nas Escrituras Sagradas: a história de Tamar, filha do rei Davi. A passagem descreve o abuso cometido por Amnon, seu meio-irmão, que, dominado pelo desejo doentio, engana Tamar e a estupra, mesmo diante da resistência dela e de seus apelos racionais e emocionais.
Tamar era uma princesa, virgem e filha do rei, o que, naquela época, conferia-lhe um status social e religioso relevante. Ainda assim, isso não foi suficiente para impedir a violência. Amnon, orientado por um amigo, finge estar doente e solicita a presença de Tamar para que ela lhe prepare alimentos. Ao se verem sozinhos, ele a agarra e, mesmo diante da recusa clara — “não, meu irmão, não me forces, porque não se faz assim em Israel” (2 Sm 13:12) —, ele consuma o estupro.
Após o abuso, em vez de arrependimento ou reparação, Amnon passa a odiá-la com mais intensidade do que o amor que dizia sentir. Expulsa Tamar de sua presença, causando-lhe não apenas o trauma físico e emocional, mas também a humilhação pública e a destruição de sua dignidade. Tamar rasga suas vestes e cobre a cabeça em sinal de luto, tornando-se uma mulher desonrada e silenciada, sem que a justiça lhe fosse feita.
O mais grave, contudo, é a reação (ou a falta dela) do rei Davi. O texto relata que ele ficou irado ao saber do ocorrido, mas nada fez contra Amnon. Essa omissão revela o peso do poder patriarcal, onde mesmo o crime hediondo cometido por um homem da realeza é encoberto para preservar a imagem familiar e a estabilidade política.
Esse episódio evidencia como o abuso sexual contra a mulher está ligado não apenas à violência física, mas também à estrutura de poder que silencia, oprime e marginaliza a vítima. Tamar não recebeu justiça, não foi restaurada e nem sequer foi ouvida após o ocorrido. Foi condenada ao isolamento, carregando sozinha a dor da violência sofrida.
No contexto de um artigo que trata da violência contra a mulher em ambientes religiosos, a história de Tamar ilustra como até mesmo dentro das tradições sagradas há registros de práticas abusivas normalizadas, além da cumplicidade de figuras de autoridade. A narrativa bíblica, portanto, serve como alerta e espelho: revela que a cultura do estupro, do silêncio e da impunidade não é uma invenção moderna, mas sim um problema estrutural que atravessa os séculos — e que ainda encontra eco nos discursos que encobrem agressões em nome da fé.
3.3. CONCUBINA DO LEVITA: VIOLÊNCIA EXTREMA E OBJETIFICAÇÃO FEMININA
O capítulo 19 do livro de Juízes relata um dos episódios mais brutais das Escrituras, revelando como o corpo da mulher pode ser reduzido à condição de objeto de troca, vingança e desonra, especialmente em contextos marcados pela ausência de justiça e pela cultura patriarcal. A história da concubina do levita é um retrato cruel da violência de gênero que, embora ocorrida em tempos antigos, continua a ecoar em diversas formas até os dias atuais.
Segundo a narrativa, um levita viaja para buscar sua concubina, que havia retornado à casa de seu pai. Após a reconciliação, eles seguem caminho e decidem pernoitar em Gibeá, cidade da tribo de Benjamim. Ali, são acolhidos por um senhor idoso. Durante a noite, homens da cidade cercam a casa e exigem que o levita seja entregue para que possam violentá-lo sexualmente. Em resposta, o levita, em atitude de covardia e objetificação, oferece sua concubina aos agressores, que a violentam em grupo durante toda a noite.
Pela manhã, a mulher é encontrada caída à porta da casa, sem forças para falar ou reagir, e logo após morre. O levita, ao perceber o ocorrido, a carrega em seu animal, leva o corpo para casa, e num gesto simbólico e chocante, a corta em doze partes, enviando os pedaços às tribos de Israel como forma de denúncia e convocação à guerra.
A análise dessa narrativa evidencia vários elementos estruturais de uma cultura de violência contra a mulher. A concubina não possui nome, não fala, não tem vontade própria e é constantemente tratada como propriedade do homem. Sua dignidade é negada desde o início até o desfecho trágico de sua história. O gesto final do levita — de esquartejá-la — não representa um ato de luto ou justiça, mas sim de apropriação de seu corpo como instrumento político, transformando a dor da vítima em uma bandeira de guerra masculina.
Esse episódio mostra, de forma brutal, como a violência sexual pode ser usada como arma de dominação, e como o silêncio das autoridades e da comunidade contribui para a perpetuação da impunidade. Além disso, revela o uso político do sofrimento feminino, em que a mulher não é vista como sujeito de direitos, mas como meio para fins maiores definidos pelos homens.No contexto deste artigo, que trata da violência contra a mulher dentro do ambiente religioso, a história da concubina do levita serve como alerta para os perigos da leitura literal e descontextualizada de textos sagrados. Mais do que uma narrativa histórica, o episódio é um espelho da misoginia estrutural e da omissão institucional, sendo necessário abordá-lo com uma leitura crítica, ética e comprometida com os direitos humanos (DAVICO, 2023) .
3.4. VIOLÊNCIA ESPIRITUAL CONTRA A MULHER
Segundo a Delegada de Polícia Luana Davico:
“Todos os crimes têm acontecido por conta de ensinamentos distorcidos vitimando mulheres como Sara Mariano, Maria Sônia, Zenaide Mendes, Marta Kunzler. Aos longos dos meus anos de atuação como delegada, nunca recebi nenhuma vítima de violência doméstica vindo denunciar amparada pelos irmãos. A violência espiritual é o uso covarde da fé que é manipulada para incentivar, neutralizar a violência contra as mulheres. Ao procurar o chamado aconselhamento pastoral as mulheres recebem tudo, menos o devido aconselhamento. Passou da hora de responsabilizar esses religiosos...”
DAVICO, L. (2023). VIOLÊNCIA ESPIRITUAL.
Ainda segundo a Delegada:
“Eu vejo o abuso religioso para culpar satanás, o inimigo, o diabo e até acusam às próprias vítimas de falta de fé, oração e jejum. Em nome da fé orientam às mulheres a não denunciarem, não atribuindo a culpa ao verdadeiro culpado... Para todos os lados têm distorções bíblicas. Desprotegem mulheres usando a bíblia... São os defensores da vida sendo coveiros da morte. De acordo com a lei Maria da Penha, quem negligência, justifica ou silencia a violência contra uma mulher dentro da sua igreja, assume o risco e é responsável pela vida desta mulher também.”
Imagine a seguinte situação: Uma mulher sofre com a violência física e mental praticada por seu marido. Ela é alvo constante de ameaças desse homem. Diante dessa situação crítica, ela procura a orientação de uma autoridade religiosa e acaba escutando frases como:
“Não tome uma decisão precipitada, até porque divorcio é algo abominável e vergonhoso”;
“Você precisa ter paciência e pedir para o coração do seu marido mudar. Aguente firme”.
“Esse tempo de dor vai passar, você tem fé? Deus está cuidado de você. Ele vai restaurar seu casamento”;
“Se você ama a Deus? Ama seu marido? Então lute pelo seu casamento, não desista daquilo que Deus te deu”.
Você tem que usar a fé, essa situação é o diabo se levantando contra sua vida, tentando destruir sua família. Então vai para casa é seja submissa”.
O que você acabou de ler acima são algumas das manifestações do abuso religioso praticado contra mulheres Brasil afora.
Muitas dessas vítimas chegam a serem ainda mais oprimidas pelo abuso religioso: “Não denuncie ele! Seu marido está desse jeito, porque você orou pouco”, “a mulher sábia edifica a casa, se seu marido não te trata bem é porque você não está sendo mulher de Deus o suficiente”. Esse abuso refere-se ao uso indevido de crenças ou práticas religiosas para controlar, manipular ou prejudicar outras pessoas. Isso pode incluir coerção psicológica, exploração financeira, manipulação emocional e até mesmo violência física, tudo em nome da religião. Ou seja, infelizmente, algumas pessoas usam a fé como uma ferramenta para exercer poder sobre os outros, o que pode ter sérias consequências para as vítimas.
Nos últimos meses, vem repercutindo nas redes sociais casos de relacionamentos abusivos, onde as mulheres agredidas ou ameaçadas, chegaram a procurar orientação com religiosos e acabaram incentivadas ou coagidas a permanecerem no relacionamento abusivo. Alguns desses casos terminaram em feminicídio. Além de enfrentar ameaças e, em muitos casos, sofrer agressões físicas, essa mulher também carrega o peso da culpa espiritual e o sentimento de que tem a "obrigação" de suportar tais abusos.
3.5. INTERPRETAÇÕES DISTORCIDAS
Se líderes religiosos interpretam de maneira distorcida, e só apresentam textos isolados, para justificar a supremacia masculina ou para incentivar a submissão da mulher, isso pode criar um ambiente que legitima a violência doméstica.
Vamos analisar o seguinte texto bíblico:
“Eu odeio o divórcio”, diz o Senhor, o Deus de Israel, “ e o homem que se cobre de violência como se cobre de roupas” , diz o Senhor dos Exércitos. “Por isso tenham bom senso; não sejam infiéis.” (MALAQUIAS, 2:16).
O versículo de Malaquias 2:16 tem sido, ao longo da história, frequentemente interpretado como uma condenação absoluta ao divórcio.
Entretanto, uma leitura crítica e contextualizada do texto revela que o profeta Malaquias denuncia não o divórcio em si, mas o rompimento da aliança conjugal de forma violenta, desleal e hipócrita. No contexto histórico do pós-exílio babilônico, os homens israelitas estavam abandonando suas esposas, muitas vezes por motivos egoístas, para se casar com mulheres estrangeiras. Isso representava uma quebra da aliança, tanto matrimonial quanto espiritual, e refletia uma postura de injustiça social e espiritual.
O trecho “o homem que se cobre de violência como se cobre de roupas” é especialmente significativo do ponto de vista simbólico: ele expõe a violência oculta e normalizada dentro das relações conjugais, muitas vezes praticada sob a aparência de religiosidade. Assim, o texto bíblico se mostra como uma denúncia ética e teológica à infidelidade e à opressão no casamento, e não como um imperativo que obriga mulheres a permanecerem em contextos de abuso.
Sob essa perspectiva, o uso desse versículo por líderes religiosos para desencorajar mulheres vítimas de violência a denunciarem seus agressores ou a deixarem o relacionamento configura uma distorção doutrinária e espiritual. Ao contrário do que alegam esses discursos, Malaquias 2:16 não condena a separação como ato de proteção, mas o comportamento injusto e violento de quem rompe a aliança de forma egoísta e opressora.
Portanto, o versículo, longe de ser uma proibição absoluta ao divórcio, é uma chamada à responsabilidade, à fidelidade e à justiça dentro das relações conjugais, reforçando a rejeição divina à violência doméstica, especialmente quando ela é justificada ou acobertada por argumentos religiosos.
3.6. CRENÇAS SOBRE O PAPEL DA MULHER
Em muitas religiões, é amplamente defendido que a mulher seja submissa ao homem (algo que é extremamente problemático e recheado de machismo). E essa defesa é utilizada como justificativa para comportamentos abusivos, já que o agressor pode alegar estar exercendo uma suposta autoridade religiosa. Recentemente um líder religioso durante uma pregação falou por diversas vezes que: “Você quer manter seu casamento? Não teima com seu marido mulher, se ele disser rasteja aí, rasteja”.