Capa da publicação STJ e voyeurismo virtual: risco ao processo penal
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Uma nova jabuticaba punitivista: a legitimação do voyeurismo judiciário pelo STJ

10/09/2025 às 10:10

Resumo:


  • O Direito Penal possui distinções importantes em relação aos outros ramos do Direito, como a necessidade de existir Lei anterior que defina o crime e a punição.

  • No processo penal, é fundamental respeitar a presunção de inocência do réu, garantir o contraditório e a ampla defesa, evitando cerceamentos que possam acarretar nulidades na condenação.

  • A utilização de informações de redes sociais para fundamentar decisões judiciais, como legitimado pelo STJ, pode representar um perigo para a segurança jurídica, pois não garante a veracidade das informações e pode resultar em injustiças.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Pode o juiz usar redes sociais como prova penal? O STJ abriu precedente para o voyeurismo virtual, ameaçando a legalidade e a presunção de inocência.

Qualquer estudante de ciências jurídicas e sociais aprende rapidamente que existem distinções importantes entre o Direito Penal e os outros ramos do Direito.

Em se tratando de questões civis e trabalhistas, quando a Lei é omissa o juiz pode decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (art. 3º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro). Mas quando o juiz deve decidir uma matéria criminal a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito não podem ser aplicados, pois não há crime sem Lei anterior que o defina, nem punição sem prévia cominação legal (art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal).

A liberdade é o bem jurídico mais valioso do ser humano. Em razão disso, as normas de Direito Penal devem ser aplicadas com rigor e extremo cuidado. O processo penal, ao contrário do processo civil e o do trabalho, de maneira geral não aceita soluções negociadas. E mesmo quando a transação penal é possível ela deve ser realizada estritamente de acordo com o roteiro prescrito na Lei.

O juiz que instrui um processo penal deve presumir a inocência do réu, respeitar o princípio do contraditório e possibilitar ao acusado ampla defesa. Mesmo que o processo corra em segredo de justiça, não podem existir decisões desconhecidas pelo advogado do acusado. Todas as provas produzidas pelo órgão de acusação devem ser conhecidas e podem ser impugnadas. O réu tem o direito de apresentar contraprovas. Tudo que ocorre no processo deve ser reduzido a termo e ficar à disposição da acusação e da defesa.

Essas regras básicas, que garantem a paridade de armas, levam à prolação de uma sentença baseada na verdade factual demonstrada no processo. Verdade essa que foi compartilhada e eventualmente disputada pelas partes. O cerceamento de defesa no processo penal acarreta nulidade da condenação. Cabe ao juiz colher as provas, mas ao exercer seu poder ele não pode em hipótese alguma tentar beneficiar a tese acusatória.

Tudo isso tem sido lentamente flexibilizado por um punitivismo que desde o Mensalão tem se tornado mais e mais escandaloso. Naquela oportunidade, laudos técnicos que eram favoráveis à tese dos réus foram mantidos em segredo e não puderam ser utilizados no julgamento. Joaquim Barbosa aplicou uma versão distorcida da teoria do domínio do fato para condenar réus sem qualquer evidência de que eles tivessem participado da cadeia de comando que resultou na prática de atos supostamente ilegais. José Dirceu foi condenado por Luis Fux porque não provou sua inocência (uma clara inversão do princípio constitucional da presunção de inocência). O Ministro Ricardo Lewandowski foi pressionado a não proferir votos em favor dos acusados. E no final a maioria do STF se rendeu à pressão midiática e de certa maneira homologou a condenação dos petistas que já havia ocorrido nas páginas dos grandes jornais.

Algo pior ocorreria durante a Lava Jato, operação que resultou na prisão e condenação de diversas pessoas com base em delações premiadas obtidas mediante prisões cautelares abusivas. O processo penal foi utilizado como instrumento de tortura pela dupla Sérgio Moro e Deltan Dellagnol. Ambos mantinham através do Telegram uma camada processual secreta à qual os advogados dos acusados não tinham acesso. Escutas ilegais foram realizadas e liberadas para a imprensa. Juiz e promotor atuavam como editores jornalísticos da operação e Deltan chegou a utilizar informações privilegiadas para ganhar dinheiro dando palestras. E para piorar o TRF-4 chegou a proferir um Acórdão dizendo literalmente que durante a Lava Jato o juiz não tinha obrigação de respeitar o princípio da legalidade.

Regras de competência foram ignoradas. Demonstrações públicas claras de suspeição foram minimizadas pelos Tribunais. A Lava Jato foi uma verdadeira orgia de ilegalidades. E para piorar até hoje não se sabe exatamente o que ocorreu com o dinheiro arrecadado com os acordos de delações premiadas. A farra somente começou a chegar ao fim quando o Ministro Alexandre de Moraes impediu os velhacos do MPF de se apropriarem de dinheiro público para construir uma Fundação privada que seria utilizada para alavancar as carreiras políticas dos heróis/vilões da Lava Jato.

A restauração da normalidade não ocorreu sem muita resistência da imprensa e de uma parcela dos juízes de primeira instância. É nesse contexto que foi noticiada uma novidade realmente preocupante. O STJ simplesmente legitimou o voyeurismo judiciário.

Esse é mais um exemplo da Facebookização do processo, fenômeno possibilitado pela transposição da vida, das instituições e das ações judiciais para o ciberespaço. É simplesmente ridículo um juiz usar o Portal do Tribunal com a mesma disposição ou estado mental que emprega nas redes sociais para coletar informações sobre as partes no processo, alternando entre ambientes virtuais semelhantes, mas qualitativamente diferentes.

No Portal do Tribunal, ao despachar processos o juiz deve se ater à lei e considerar com rigor provas coletadas sob o crivo do contraditório. Nas redes sociais os usuários (juízes incluídos) ficam expostos às informações verdadeiras, falsas, falsificadas, criadas por IAs, etc... publicadas pelos usuários, hackers e bots, sem necessariamente ter condição de discernir o que é verdadeiro do que deveria ser considerado verdade alternativa.

A nova jurisprudência do STJ, precariamente fundamentada no CPP, criou um verdadeiro ralo pelo qual o rigor técnico-jurídico poderá voltar a escoar. Isso é realmente ridículo e espantosamente perigoso num país que luta para restaurar a normalidade da aplicação da Lei Penal após duas orgias de populismo judiciário punitivista (Mensalão e Lava Jato).

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O STJ não deve ignorar que muitos juízes de primeira instância são adeptos do Direito Penal do Inimigo e ficarão tentados a cometer abusos. O voyeurismo virtual judiciário rapidamente se estenderá dos acusados aos advogados deles. E da consulta privada à violação sistemática da privacidade de todas as pessoas no entorno do acusado que não foram sequer acusadas de ter cometido um crime. Isso para não mencionar algo ainda pior.

Pode um juiz acreditar nas alegações que o réu e os amigos dele fizeram numa rede social de que no dia dos fatos todos estavam em Londres ou Paris, mostrando como prova uma foto realística produzida por IA? A resposta é NÃO. Deve o juiz mandar prender o réu porque ele se gabou no Facebook de ter cometido um crime que não cometeu, tendo feito isso porque queria apenas ganhar likes dos “manos” dele? A resposta também é NÃO.

Apesar de tramitar num ambiente virtual (e portanto tecnologicamente semelhante ao do Facebook), um processo judicial não é algo postado numa rede social. O processo é uma sucessão de atos formais que devem ser praticados de acordo com as regras legais pertinentes. Nas redes sociais, ao contrário, predomina a informalidade.

Aquilo que é divulgado no Facebook não pode e não deve ser considerado pelo juiz como “prova” de uma verdade factual. Até porque é impossível acreditar que o perfil de alguém foi realmente criado pela pessoa que diz ser o seu titular. Quando pratica atos num processo, o juiz é identificado pela assinatura digital aposta na decisão. Mas esse tipo de identificação seguro da titularidade de um perfil não existe no Facebook. Aliás, é muito comum perfis dessa rede social serem hackeados ou criados por terceiros com intenções maliciosas e até criminosas.

Nada impede alguém de criar o perfil falso de Jair Bolsonaro no Facebook reunindo fotos e vídeos dele com militares e políticos ilustrando textos em que ele supostamente se gaba de ter planejado o golpe que fracassou e promete. Num vídeo deepfake ele poderia rir e dizer textualmente que caso seja absolvido ou anistiado, redobrará esforços para destruir a democracia comunista brasileira praticando uma orgia de assassinatos políticos. O STF poderia considerar isso prova contra o ex-presidente? É claro que NÃO. Mesmos se levarmos em conta a autorização dada pela jurisprudência do STJ, fazer isso num caso que se tornou notório nacional e internacionalmente seria juridicamente impossível e processualmente temerário.

Mas e se o réu for alguém sem a projeção do seu Jair? O problema que o STJ criou é imenso. E ele atingirá em cheio pessoas comuns odiadas por policiais ou que gostam de utilizar o Estado para se vingar dos desafetos. Assim como existem policiais que “plantam provas” incriminadoras quando não encontram indícios autênticos da autoria do crime investigado, perfis falsos de suspeitos começarão a pipocar no Facebook. Caso em que o voyeurismo de toga dos juízes punitivistas será inevitavelmente hackeado por “cidadãos de bem” para facilitar prisões e condenações.

É necessário modificar imediatamente o Código de Processo Penal (e o Código de Processo Civil também). O voyeurismo de toga deve ser proibido. A segurança jurídica não é garantida nas redes sociais e o uso delas como fonte de provas pelos juízes acarretará uma avalanche de pequenas injustiças invisíveis. Quando necessário, o juiz deve requisitar informações mediante decisão judicial e o material fornecido pela rede social deve ser cuidadosamente analisado. A autoria de algo que foi supostamente postado na internet por alguém nunca é certa. E em decorrência das características do Direito Penal mencionadas no início essa incerteza sempre deve beneficiar os acusados e não o órgão de acusação como dá a entender o STJ na decisão.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Fábio Oliveira. Uma nova jabuticaba punitivista: a legitimação do voyeurismo judiciário pelo STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8106, 10 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115216. Acesso em: 5 dez. 2025.

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