Capa da publicação Inclusão digital: direito social e dever do Estado
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Do direito social de acesso às tecnologias da informação e análise da responsabilidade estatal pela exclusão digital

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A inclusão digital é um direito social e exige políticas públicas. Pode o Estado invocar a reserva do possível contra o mínimo existencial e a responsabilidade objetiva?

Resumo: Este artigo analisa a inclusão digital como um direito social fundamental e a responsabilidade do Estado diante da exclusão digital, a qual compromete o acesso a outros direitos sociais essenciais, como a educação e o trabalho. Sustenta-se que, mesmo nos casos de omissão estatal, é aplicável a responsabilidade objetiva do Estado, não sendo admissível invocar a reserva do possível para afastar a garantia do núcleo mínimo desse direito. O estudo destaca o papel das tecnologias digitais na concretização dos direitos fundamentais e enfatiza o dever do Estado de implementar políticas públicas voltadas à superação da exclusão digital, como condição indispensável para a promoção da dignidade humana, da justiça social e da igualdade.

Palavras-chave: Inclusão digital; direitos sociais; responsabilidade estatal; exclusão digital; sociedade da informação.


1. DAS NOVAS TECNOLOGIAS E SEU IMPACTO QUANTO À EXCLUSÃO DIGITAL DENTRO DE UMA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

Até poucos anos, dispositivos tecnológicos como os celulares não eram amplamente difundidos. Hoje, essas tecnologias são consideradas essenciais para o desempenho de atividades cotidianas, atuando não apenas como instrumentos de integração social — sobretudo por meio das redes sociais —, mas também como catalisadoras da autonomia individual e coletiva, ao facilitar o acesso à informação e permitir a integração em tempo real dos usuários, formando uma espécie de comunidade digital1.

O direito de acesso à internet já é reconhecido como um direito fundamental, inerente à pessoa humana. Nesse sentido, cite-se a decisão exarada pela Suprema Corte indiana no caso Anuradha Bhasin v. Índia que, com o objetivo de assegurar a efetividade de direitos fundamentais online, entendeu que a supressão do acesso à internet, ainda que de modo temporário, implicaria em restrição a um direito fundamental, e por isso a restrição deveria ser aplicada somente em situações excepcionais e notificada com uma antecedência razoável2.

O emblemático caso do ano de 2010 referente ao vazamento de documentos secretos do governo americano feito pelo ciberativista Julian Assange, idealizador do sítio eletrônico Wikileaks, que consistiu em vídeo de dezessete minutos o qual expôs dois soldados norte-americanos atacando doze civis desarmados, dentre os quais dois eram jornalistas da agência de notícias Reuters3, traz à baila reflexões sobre a utilização dos recursos tecnológicos como meio de denunciar graves violações a direito humanos fundamentais, além da própria existência de um direito à verdade cuja efetividade se poderia assegurar por estes mesmos recursos4.

O Regulamento de Inteligência Artificial da União Europeia reconheceu a inteligência artificial (IA) como uma família de tecnologias em rápida evolução capaz de oferecer benefícios econômicos e sociais para toda a coletividade e prescreve regimes de responsabilização por danos causados pelos sistemas, os quais, por sua vez, foram catalogados conforme o risco decorrente de sua utilização (risco inaceitável, alto, limitado e mínimo)5. Referida medida impacta diretamente direitos fundamentais ao tutelar a privacidade e segurança pessoal dos usuários de sistemas de inteligência artificial e estabelecer diretrizes para coibir a discriminação algorítmica quanto à incrementação das plataformas de IA6.

Claudio Novelli e Giulia Sandri utilizam a expressão “democracia digital” para se referir à utilização de tecnologias digitais, com destaque para a internet e plataformas de redes sociais, com escopo de fortalecer os processos democráticos, seja pela ampliação da participação política por meio de debates nas plataformas digitais ou pelo aumento da transparência e responsabilização dos governos. Referidos autores concluem que embora a democracia digital não consiga substituir a democracia representativa tradicional, é capaz de complementá-la por meio de consultas online, orçamentos participativos digitais, plataformas de deliberação, e votação eletrônica, destacam o potencial interativo e distribuído das tecnologias digitais para envolver mais cidadãos nas decisões públicas7.

Ao abordar o tema da cidadania digital, Ceccarini destaca que a repercussão da democracia digital acaba por formar “cidadãos críticos”, com participação ativa durante todo o processo eleitoral, pois rompe com os modelos tradicionais de participação na política (individualizados e intermitentes). Ressalta a gradativa perda de força da votação tradicional como única forma legítima de participação e, em seu lugar, surgem formas líquidas de engajamento, favorecidas por interações digitais e pelo consumo acidental de informações online. Aponta uma fusão constante entre o mundo digital e o mundo físico, o que promove o hibridismo do engajamento político, a vigilância dos políticos — antes limitada à imprensa — passou a ser realizada também pelos próprios cidadãos, desde as campanhas eleitorais até o acompanhamento dos mandatos8.

No Brasil, Diniz, Santiago, e Ferreira da Costa sinalizam que o grande desafio do século XXI é a preservação dos valores humanos, da dignidade da pessoa humana, dos direitos fundamentais e da personalidade, diante das inovações tecnológicas. Destacam a necessidade de reflexão profunda sobre a utilização dos sistemas de IA a fim de prevenir uma hegemonia tecnocrática9.

Mayume Caires Moreira e Dirceu Pereira Siqueira apontam que a humanidade chegou no estágio em que o acesso à tecnologia se tornou imprescindível para o livre desenvolvimento da personalidade e para o exercício da cidadania, vez que essas ferramentas facilitam o acesso à informação, ao trabalho, à saúde, à educação e a outros direitos essenciais10.

Diante das circunstâncias aludidas, fica evidente a existência de um novo contexto social decorrente de transformações promovidas por essas novas tecnologias colocadas à disposição da coletividade, é a chamada sociedade da informação. A realidade, que esse conceito procura expressar, refere-se às transformações técnicas, organizacionais e administrativas, cujo fator-chave não é mais a energia barata — como ocorria na sociedade industrial —, mas sim a informação acessível, oriunda dos avanços tecnológicos na microeletrônica e nas telecomunicações11.

A sociedade da informação é caracterizada pela utilização de tecnologias de armazenamento e transmissão de dados e informação produzidas com baixo custo para atender às necessidades das pessoas, além de se preocupar com a questão da exclusão digital, o uso da informação é a peça chave para que um cidadão se torne um agente ativo dentro da rede. Ao absorver e produzir novos conteúdos, o cidadão passa a integrar um coletivo inteligente que pode alimentar o ciclo informacional: informação – conhecimento – desenvolvimento – informação. Nesse caso, define-se informação como um produto social e uma necessidade social essencial para o exercício dos direitos humanos12.

Dentro de uma sociedade da informação o problema passa a ser a existência de uma nova classe de pessoas excluídas do acesso a essas tecnologias, é o fenômeno da exclusão digital. Entende-se por exclusão digital como a privação do acesso e uso das tecnologias da informação, causada por falta de recursos, conhecimento ou interesse. Esse fenômeno impede que pessoas realizem tarefas cotidianas, dificulta o acesso ao emprego, ao conhecimento e à participação social. Agrava desigualdades sociais e econômicas, pois quem está fora do “mundo digital” têm menores chances de crescer profissional e socialmente. Compromete o desenvolvimento do país, reduz a eficácia de serviços públicos digitais e limita a competitividade das empresas. Além disso, reforça a exclusão social, aumenta a pobreza e impede o surgimento de uma inteligência coletiva essencial para o progresso cultural, econômico e tecnológico13.

Diante desse cenário, faz-se necessária a análise a respeito de possível responsabilidade estatal diante do fenômeno da exclusão digital, visto impactar não somente o direito de acesso às tecnologias, como também outros direitos sociais elencados no art. 6º da Constituição Federal.


2. DO DIREITO SOCIAL DE ACESSO ÀS TECNOLOGIAS

Direitos sociais (ou direitos de segunda dimensão) são mandamentos que exigem do Estado um comportamento positivo, um “facere” para a sua consecução. São dispositivos constitucionais de eficácia limitada, pois dependem de norma infraconstitucional para sua aplicação, são, portanto, normas de cunho programático. Segundo José Afonso da Silva:

Prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.14

O caput do artigo 6º da CF/88 elenca os seguintes direitos sociais: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. Parcela majoritária da doutrina entende que o rol de direitos consagrados no caput do art. 6º é meramente exemplificativo. Nesse sentido, Nathalia Masson leciona que a amplitude dos temas inseridos no Capítulo II do Título II da Constituição Federal torna inequívoco que os direitos sociais não são somente os que estão inscritos nos arts. 6º, 7º, 8º, 9º, 10 e 11 da CR/88, pois eles podem ser localizados também no Título VIII – Da Ordem Social, vale dizer, nos arts. 193. e seguintes da CF/8815. Desse modo, faz-se possível o reconhecimento de um direito como sendo social ainda que não esteja assim previsto ali de modo expresso.

Sandra Maria Lemos Campelo, Eva Sampaio Xavier e Emmanuel Matheus de Sena Brasil defendem que, diante da centralidade da tecnologia na vida moderna, o acesso à internet deve ser reconhecido como um direito social fundamental, a fim de assegurar a efetividade de outros direitos fundamentais, como o direito à saúde, à educação, ao trabalho e à participação cidadã — sobretudo para as camadas mais vulneráveis da população.Destacam que, embora o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) estabeleça princípios relevantes, seu impacto prático foi limitado, não promovendo a universalização do acesso à internet. A exclusão digital, nesse contexto, representa uma forma de exclusão social e violação de direitos, o que impõe ao Estado o dever de garantir o acesso pleno e universal à internet como bem público essencial, a fim de promover: igualdade, justiça social e desenvolvimento humano16.

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A ausência de legislação específica e de políticas públicas efetivas tem contribuído para o agravamento das desigualdades sociais e para o atraso no desenvolvimento econômico e tecnológico do país. O acesso à informação é essencial para a concretização dos princípios fundamentais elencados na Constituição Federal de 1988, tais como a dignidade humana (art. 1º, III) e exercício da cidadania (art. 1º, II). A inclusão digital também se faz medida de rigor para a consecução dos objetivos fundamentais elencados na CRFB/88 com destaque para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), a garantia do desenvolvimento nacional (art. 3º, II) e erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III), sendo, portanto, dever do Estado assegurar meios para que todos os indivíduos, inclusive os mais vulneráveis, possam acessar e utilizar as ferramentas digitais.

Embora a Constituição Federal não mencione expressamente a inclusão digital, ela consagra princípios como a igualdade e a dignidade da pessoa humana, além do direito à informação, que fundamentam a necessidade de políticas inclusivas no ambiente digital. A inclusão digital, nesse sentido, é entendida como condição indispensável para a efetivação de diversos direitos fundamentais e para a redução das desigualdades sociais17. Diante do exposto, conclui-se que a promoção da inclusão digital configura uma obrigação do Estado, decorrente dos princípios e direitos fundamentais consagrados na Carta Magna de 1988, por isso, o direito de acesso às tecnologias, ou direito de inclusão digital se perfaz em direito social.


3. DA RESPONSABILIDADE ESTATAL PELA INCLUSÃO DIGITAL

Marcella Mangullo conceitua responsabilidade como o dever de reparar o patrimônio alheio em razão do dano causado a este terceiro. Isto é, dada a ocorrência de um dano, o responsável, nos termos da lei, deve recompor o patrimônio prejudicado18. São pressupostos para a caracterização da responsabilidade civil: a existência de uma ação, comissiva ou omissiva, qualificada juridicamente; causação de dano à vítima pela ação do agente ou de terceiro por quem o imputado responda; e nexo de causalidade entre o dano e a ação do agente19.

A responsabilidade estatal é corolário do Estado de Direito, e por isso, o estabelecimento de mecanismos para a responsabilização do Estado e de seus atores se mostra como medida de rigor20. O princípio republicano também atua como fundamento da responsabilidade do Estado, referido princípio é reconhecido como a viga mestra do Estado brasileiro, o qual caracteriza o dito regime pela tripartição do exercício do poder e pela periodicidade dos mandatos políticos, com consequentes responsabilidades dos mandatários21. Desse modo, preenchidos os pressupostos da responsabilidade supra elencados, o Estado poderá ser responsabilizado pelos danos que causar.

Conforme delineado alhures, o direito de acesso às tecnologias ou direito de inclusão digital consiste em um direito social na medida em que requer do Estado um comportamento positivo, um facere, para a concretização desse direito, que se dará por meio de políticas públicas. A violação desse dever jurídico, resultante da omissão do Estado na implementação de políticas voltadas ao acesso a recursos tecnológicos, implica lesão ao direito coletivo. Isso configura dano aos administrados e pode caracterizar a responsabilidade estatal pela omissão. Ressalta-se a relação direta entre essa omissão e o agravamento das desigualdades sociais, em especial entre as camadas populacionais mais vulneráveis22.

Dessarte, é possível a responsabilização do Estado pela exclusão digital, nos moldes do art. 37, §6º da CRFB/88, que consagra a teoria do risco administrativo. Nesse contexto, a responsabilidade estatal será objetiva.

No entanto, parcela da doutrina administrativa, capitaneada por Celso Antônio Bandeira de Mello abre divergência nesse tópico, sobre a suposta necessidade de demonstração de culpa do Estado nos casos de omissão para a apuração de sua responsabilidade. Tal posicionamento visa afastar a figura do “segurador universal”, pois - segundo essa posição - todo dano poderia ser genericamente atribuído ao Estado23.

Bandeira de Mello destaca que a responsabilidade estatal pela “falta de serviço" (entendida como ausência de serviço ou sua má ou tardia prestação) é de natureza subjetiva, estando fundamentada na culpa do ente estatal. Nesse contexto, é imprescindível demonstrar que o Estado atuou abaixo dos padrões exigidos, ou seja, com negligência, imprudência ou imperícia. O simples funcionamento defeituoso do serviço, por si só, não é suficiente para imputar responsabilidade à administração24. A responsabilidade da administração seria subjetiva por todo comportamento omissivo, sem distinção.

Quanto à responsabilidade estatal por omissão de dever vinculado, Marilza Ferreira do Nascimento obtempera:

Diante do dever vinculado (ou específico) inexiste a liberdade de escolha entre agir e não agir e, muito menos, entre agir bem e agir de modo deficiente. A opção do gestor público é uma só: agir com presteza e eficiência para evitar o dano. Por isso, é justo que, se falhar, responda objetivamente por sua conduta, só se isentando da obrigação ressarcitória na presença de uma das excludentes da responsabilidade estatal.25

Todavia, quanto à omissão de dever discricionário Nascimento advoga pela necessidade de adoção da teoria subjetiva, pois a fruição dos serviços públicos por parte dos administrados ficaria condicionada às possibilidades governativas de implementá-las. Isto é, segundo ela, a omissão estatal, ainda que naturalmente lesiva, não geraria qualquer obrigação reparatória diante da suposta ausência de direito adquirido, sobretudo quando a inação decorrer da falta de recursos materiais, especialmente os de ordem financeira, para a implementação de políticas públicas necessárias à efetividade dos direitos formalmente garantidos aos cidadãos. Tal posicionamento visa coibir a atribuição ao Estado de qualquer omissão genérica, o que tornaria qualquer dano indenizável26.

Em ambos os posicionamentos supracitados, a teoria da “reserva do possível” se mostraria como óbice para a responsabilização desmedida do Estado por seu comportamento faltoso, sobretudo nas omissões de deveres discricionários, situação na qual o administrador se vale de sua possibilidade de escolha e do orçamento disponível para a efetivação dos interesses da coletividade.

Vale dizer, no julgamento do Tema nº 698 o Supremo Tribunal Federal balizou a aplicação da cláusula da ‘’reserva do possível. Não pode ser invocada pelo Estado com a finalidade de se exonerar do cumprimento de suas obrigações constitucionais diante da necessidade de resguardar, pelo menos, o núcleo indisponível do direito e assegurar a progressividade na concretização dos direitos sociais, por isso a cláusula é inoponivel em situações de grave ausência ou deficiência do serviço. Segundo o Ministro Celso de Mello, a reserva do possível compreende o binômio: razoabilidade da pretensão e existência de disponibilidade financeira27.

Por outro lado, outros prosélitos apontam a existência de uma única interpretação estabelecida pela Constituição Federal: a responsabilidade objetiva do Estado perante os cidadãos. O fundamento normativo da responsabilidade civil do Estado está previsto no art. 37, §6º da CRFB/88, e o comando constitucional não diferencia comportamentos comissivos e omissivos. Logo, depreende-se que a finalidade teleológica da norma é a uniformização da responsabilidade estatal, seja para excesso, seja para falhas da Administração28.

Esta última corrente se mostra como mais adequada, na medida em que realiza interpretação alinhada com a finalidade do próprio mandamento constitucional e permite o pleno alcance de direitos aos administrados, com destaque para o direito de acesso aos recursos tecnológicos. Logo, pode-se concluir que a responsabilidade decorrente da exclusão digital é objetiva e pode o Estado ser responsabilizado por sua conduta omissiva caso reste inerte.

Vale dizer ainda, o Estado não poderia se escusar do dever de promover a inclusão digital com base na reserva do possível, diante da intangibilidade do mínimo existencial. Nesse sentido:

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO)29.

Todo direito possui um núcleo mínimo irredutível, isto é, um mínimo cuja supressão não é admitida, e, caso ocorra, faz-se necessária a atuação do judiciário (art. 5º, XXXV da CF/88). Não se trata de usurpação de competência entre os poderes, nem em desrespeito ao juízo de conveniência e oportunidade da Administração, mas sim de um mecanismo para assegurar a própria dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF/88) e a prestação estatal na efetivação dos direitos sociais30.

A atuação do Poder Judiciário para garantir direitos fundamentais, sobretudo os de natureza social, não configura violação à separação dos poderes quando visa assegurar o núcleo essencial desses direitos. O princípio da reserva do possível, embora inicialmente interpretado sob a ótica exclusiva da limitação orçamentária estatal, passou a ser analisado de forma mais ampla, considerando a razoabilidade da pretensão e a proteção do mínimo existencial. Este último tornou-se um critério intransponível, que condiciona a atuação estatal e a própria ponderação judicial, de forma que a escassez de recursos não pode servir como justificativa para negar direitos fundamentais indispensáveis à dignidade humana. Assim, cabe ao Judiciário intervir sempre que o Executivo se omitir ou adotar condutas que comprometam a efetivação de direitos fundamentais, especialmente quando isso atingir patamares mínimos irredutíveis de existência digna31.

A análise da cláusula da reserva do possível, sob a perspectiva originária do Tribunal Constitucional Federal Alemão, revela que sua essência não está restrita à mera disponibilidade orçamentária, mas àquilo que pode ser exigido do Estado e da coletividade dentro dos parâmetros da razoabilidade. Tal compreensão exige que se avalie não apenas a existência de recursos financeiros, mas também o mérito da pretensão em si, ponderando se ela se insere em um espaço legítimo de exigibilidade social. Trata-se, portanto, de reconhecer que, mesmo quando há recursos disponíveis, nem toda demanda é automaticamente justificável do ponto de vista jurídico e ético. A reserva do possível deve ser compreendida como um instrumento de equilíbrio entre a efetivação dos direitos fundamentais e a responsabilidade coletiva, demandando do Poder Público não apenas a prestação, mas a prestação que se mostre proporcional e racional à luz das circunstâncias concretas. Desse modo, preserva-se a efetividade dos direitos sem desconsiderar os limites materiais e normativos da atuação estatal32.

Quanto ao direito social de acesso às tecnologias, ou direito social de inclusão digital, também existe um núcleo mínimo irredutível, cuja supressão compromete não só a dignidade dos lesados, como também prejudica seu acesso a outros direitos sociais (educação, e trabalho ad exemplum), o que alastra o gravame e por consequência, a lesão à dignidade dos cidadãos digitalmente excluídos.

As tecnologias educacionais contribuem diretamente para a efetivação do direito social à educação ao ampliar o acesso ao ensino de qualidade e promover a inclusão. Ferramentas como plataformas online, softwares educacionais e recursos digitais democratizam o conhecimento e permitem que estudantes em contextos de vulnerabilidade tenham acesso aos mesmos conteúdos disponíveis em grandes centros. Além de favorecerem a personalização do ensino conforme as necessidades individuais dos alunos, essas tecnologias tornam a aprendizagem mais dinâmica, interativa e eficaz. Apesar dos desafios relacionados à exclusão digital, à infraestrutura limitada e à formação de professores, o uso adequado da tecnologia fortalece a equidade educacional e reafirma o compromisso do Estado com o acesso universal e igualitário à educação33.

Quanto ao trabalho, as tecnologias, especialmente as de informação e comunicação, desempenham um papel essencial na efetivação do direito social ao trabalho, ao ampliarem as possibilidades de acesso e exercício das atividades laborais. Elas transformam profundamente a forma e o local onde o trabalho é realizado, permitindo que as tarefas sejam desempenhadas não apenas no ambiente físico da empresa, mas também remotamente, a partir de casa ou de qualquer lugar com conexão. Essa flexibilidade possibilita o surgimento de ambientes de trabalho ubíquos, adaptados a diferentes estilos e condições, e viabiliza a formação de equipes virtuais compostas por profissionais de diferentes regiões e culturas, o que amplia o aproveitamento de talentos diversos. Além disso, a computação ubíqua elimina barreiras temporais e espaciais, potencializa a comunicação entre trabalhadores e gestores, e aumenta a eficiência no processamento de informações34.

Destarte, a implementação de políticas públicas para a inclusão digital repercute na efetivação de outros direitos sociais, assim como a supressão do núcleo mínimo irredutível para a concretização de tal direito afeta diretamente outros direitos sociais. Por isso, a omissão estatal na implementação de políticas de inclusão digital é um dano capaz de afetar outros direitos e agravar a lesão à dignidade dos administrados. A exclusão digital resulta em dano indireto a outros direitos sociais, agravando a responsabilidade estatal pela omissão.

Conforme lição de Duílio Landell de Moura Berni, a inclusão digital deve ser considerada um direito social e fundamental, imprescindível para garantir o pleno exercício da cidadania no contexto contemporâneo. O acesso aos meios digitais representa, de forma concreta, o acesso à cidadania, pois é por meio deles que as pessoas podem exercer seus direitos de informação, comunicação, educação, saúde e acesso a serviços públicos. A exclusão digital, portanto, configura uma exclusão da cidadania, violando princípios constitucionais como a igualdade, a dignidade da pessoa humana e a justiça social. Reconhecido como direito humano pela ONU e como direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro, o acesso às Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) também se vincula diretamente à efetivação de direitos consagrados na Constituição Federal, como o direito à informação e à liberdade de expressão. Além disso, o Marco Civil da Internet e a Lei de Acesso à Informação reforçam a obrigatoriedade de promoção do acesso digital como forma de garantir a liberdade, o desenvolvimento da personalidade e a participação cidadã, consolidando a inclusão digital como instrumento essencial para o exercício de outros direitos fundamentais35.

Diante disso, é possível afirmar que o Estado brasileiro tem um dever jurídico de promover a inclusão digital como serviço público essencial, de forma contínua e universal. Tal responsabilidade estatal decorre não apenas dos princípios constitucionais da solidariedade e da justiça social, mas também da necessidade de efetivar direitos a prestações, que visam assegurar a igualdade de oportunidades e a liberdade real de participação social e econômica.

A inclusão digital não se limita ao acesso físico às tecnologias, mas exige também a garantia de domínio e literacia digital, principalmente para pessoas em situação de vulnerabilidade. A ausência de ações estatais para assegurar o acesso pleno à internet, à informação e à comunicação digital reforça as desigualdades sociais já existentes, especialmente considerando as gritantes diferenças regionais dentro do país.

Portanto, cabe ao Estado desenvolver políticas públicas eficazes que universalizem o acesso às TIC, assegurando que a inclusão digital seja tratada como um serviço público fundamental, indispensável para a promoção da cidadania plena e para a superação da exclusão social.

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Sobre o autor
João Carlos Ermelindo Bernardo

Aluno da graduação da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDO, João Carlos Ermelindo. Do direito social de acesso às tecnologias da informação e análise da responsabilidade estatal pela exclusão digital. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8096, 31 ago. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115261. Acesso em: 5 dez. 2025.

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