Em 13 de junho de 2025, o Ministro Cristiano Zanin, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.555.431/RS, reconheceu a validade de uma Audiência de Instrução e Julgamento realizada sem a presença do Ministério Público, apesar de sua regular intimação, ao considerar inexistente prejuízo concreto à parte ré. Com isso, reformou o entendimento anteriormente firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, que havia considerado o ato do juízo de origem como violador do sistema acusatório e prejudicial à ampla defesa, uma vez que a produção probatória se deu exclusivamente na primeira instância.
No presente ensaio, será analisada a decisão de Zanin à luz do Código de Processo Penal – com fulcro nos arts. 3º-A, 41 e 42 –, da Constituição Federal de 1988 (CF/88) – embasado nos arts. 5º, incisos LIII e LIV – e à luz dos princípios do Direito Constitucional e do Direito Processual Penal: o juiz natural, as funções do Ministério Público na ação penal, o contraditório e a ampla defesa, bem como o sistema acusatório.
Diante dos argumentos colacionados, emergem questões a serem respondidas neste ensaio, tais como: se a produção de provas conduzida pelo magistrado não configuraria violação ao princípio do juiz natural, em razão de um protagonismo judicial; se o não comparecimento do Ministério Público – enquanto substituto processual, representante da sociedade e titular da ação penal pública incondicionada – à audiência de instrução e julgamento gera prejuízo à sociedade, e não ao réu; e, por fim, se a validação dos atos anteriormente mencionados – protagonismo judicial do magistrado e prejuízo social decorrente da ausência do Parquet à audiência – configura violação ao sistema acusatório, acarretando inconstitucionalidade.
JUIZ NATURAL E PROTAGONISMO JUDICIAL DO MAGISTRADO
Há um princípio processual penal e, antes, constitucional, denominado de princípio do juiz natural. Este é uma garantia constitucional aos réus em processos criminais acerca da imparcialidade do juiz, insculpida nos arts. 3º-A, do CPP, e art. 5º, LIII, da CF/88:
Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência) (Vide ADI 6.298) (Vide ADI 6.300) (Vide ADI 6.305);
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
O magistrado deve ser provocado – porquanto o juízo deve se manter inerte – e se manter equidistante da acusação (MP) e da defesa (réu) a fim de se garantir a lídima justiça – não adentrando em questões hermenêuticas, cuja subjetividade do magistrado se faz presente, mas, sim, no quesito legal. No caso em tela, o juízo de 1ª instância colheu as provas em audiência com a ausência do acusador, gerando claro prejuízo à parte. Ademais, não garantiu o devido contraditório para a defesa, conforme preleciona o art. 5º, LIV, da CF/88:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
Ocorre que, analisando a questão, é nítido que o magistrado tornou-se o protagonista-acusador da ação, violando o art. 3º-A, do CPP. O fato em tela é, como se dirá em tópico próprio, um retorno ao arcaico sistema inquisitorial – em que o juiz acumulava as funções do Estado em si, tanto de acusação quanto de decisão.
Ante o exposto, vê-se que a produção probatória na AIJ violou o juiz natural, o contraditório e escancarou a Constituição Federal e o Código de Processo Penal ao retorno do sistema inquisitorial, cujo magistrado é o protagonista da ação penal.
A AUSÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO E O PREJUÍZO SOCIAL
O Parquet é um substituto processual da sociedade, sendo incumbido ao MP o início da ação penal e, também, a não desistência do processo – visto que as ações penais públicas incondicionadas cabem exclusivamente ao MP, conforme arts. 129, I, da CF/88, e 41 e 42, do CPP:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.
Art. 42. O Ministério Público não poderá desistir da ação penal.
No presente caso, o Parquet foi devidamente intimado para a AIJ, contudo não compareceu. O MP não possui a opção de não comparecimento, obviamente. Sendo ele um substituto processual da sociedade – na figura do promotor de justiça – e sendo a ação penal pública e incondicionada à sua representação (não podendo ele desistir da ação penal), o prejuízo é social, além da parte ré, visto que o MP representa não os próprios interesses ou (apenas) o da vítima do delito supostamente praticado pelo agente, mas o da sociedade.
Portanto, a ausência do Parquet na presente ação penal pública e incondicionada gera prejuízo social, erga omnes, e não apenas inter partes, sendo sua ausência nula (ou deveria ser).
VIOLAÇÃO AO SISTEMA ACUSATÓRIO PELO PROTAGONISMO JUDICIAL DO MAGISTRADO
Tendo em visa a argumentação ora colacionada até o presente tópico, ressalta-se que o sistema acusatório é expressamente adotado pelo CPP, em seu art. 3º-A, caput (supramencionados no primeiro tópico do ensaio). Em decorrência disso, veda-se qualquer forma de retorno ao sistema inquisitorial, utilizado, principalmente, em regimes totalitários (como a Itália Fascista e a Alemanha Nacional Socialista), com métodos que vão desde a tortura judicial a fim de obter provas (ilícitas, diga-se) ao suplício na aplicação da pena do acusado.
Ademais, o referido sistema processual penal é um princípio, possuindo força normativa e sendo uma norma como qualquer regra insculpida na Carta Magna. Sendo, desse modo, um princípio jurídico também constitucional, a ausência do Parquet devidamente intimado para a AIJ e a produção de prova pelo magistrado no presente caso eiva-se de inconstitucionalidade e ilegalidade, trazendo à baila o juiz (que deveria ser imparcial) protagonista do processo ou o juiz-parte.
Diante do exposto, é perceptível que a atuação do Ministro Relator do referido caso em tela se imantou de inconstitucionalidade e ilegalidade ao permitir a ausência do MP, devidamente intimado, e produzindo as provas ante sua ausência, transformando-se no protagonista-autor da referida ação judicial com trânsito em julgado no processo em tela.
CONCLUSÃO
Ante o exposto, é possível concluir:
O caso em tela viola o princípio do juiz natural (arts. 5º, LIII e 3º-A, da CF/88 e do CPP), visto que é vedado ao magistrado ser protagonista-parte do processo, devendo ser imparcial, consoante a legisltação constitucional e infraconstitucional;
Sendo o Parquet parte acusatória e detentor da ação penal pública e incondicionada (arts. 129, I e 41 e 42, da CF/88 e do CPP), sua ausência AIJ, após devida intimação e ciência da audiência designada, é eivada de nulidade processual, visto, também, que ele representa não apenas o interesse da vítima do delito supostamente praticado pelo agente, mas o da sociedade;
O princípio do sistema acusatório (art. 3º-A, do CPP) é imprescindível ao devido processo legal enquanto garantia processual penal. Sua ausência, além de gerar nulidade processual, eiva-se de inconstitucionalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em: 01 de set. 2025.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 01 de set. 2025.