Resenha: O foco do presente artigo é apresentar breves reflexões sobre a possibilidade jurídica da tríplice acumulação de benefícios previdenciários – especificamente a situação do segurado que pretende receber uma pensão por morte junto ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) ao mesmo tempo em que é titular de uma aposentadoria e outra pensão por morte junto ao INSS (RGPS).
Considerações iniciais
O presente artigo, de caráter estritamente acadêmico, resulta do estudo de um caso real. Embora peculiar a situação analisada, é possível reconhecer sua relevância para os gestores de regimes próprios de previdência social.
Ademais, a escassez de trabalhos que tratam de casos atípicos de acumulação de benefícios previdenciários — ou seja, situações que fogem ao padrão de análise estabelecido pelo art. 24 da Emenda Constitucional nº 103/2019 — constituiu fator determinante para a elaboração deste tópico.
Assim, o artigo apresenta reflexões jurídicas, resguardado o viés opinativo do autor, com o objetivo de subsidiar gestores de regimes próprios de previdência social que se deparem com situações análogas à ora examinada.
Importa ponderar que este estudo não abrange legislações locais sobre a matéria, adotando como base exclusivamente o ordenamento jurídico constitucional e federal, especialmente porque o art. 24 da EC nº 103/2019 possui eficácia plena e aplicabilidade imediata aos entes federativos.
Tecidas tais considerações iniciais, que reputo de extrema relevância, passa-se ao estudo de caso.
Desenvolvimento
A pensão por morte, especialmente no âmbito dos regimes próprios de previdência social (RPPS), constitui prestação essencial para assegurar a continuidade da subsistência dos dependentes do segurado falecido. Sua natureza protetiva decorre dos princípios da solidariedade e da substituição da renda familiar, reafirmando o compromisso do Estado com a dignidade dos beneficiários.
Busca-se, assim, a manutenção do padrão de vida familiar, evitando que a morte do provedor resulte em situação de vulnerabilidade social e econômica para seus dependentes.
É evidente que a pensão por morte não se limita ao aspecto previdenciário, configurando-se também como relevante instrumento de política pública de proteção social. Sua importância transcende o caráter meramente econômico, alcançando dimensões sociais e psicológicas ao proporcionar segurança e estabilidade aos dependentes em momento de acentuada fragilidade emocional e financeira.
Nessa perspectiva, a Previdência Social, no âmbito do serviço público, igualmente garante a concessão de pensão por morte a um rol de dependentes previamente estabelecido em lei.
No estudo de caso proposto, a requerente fictícia já percebe aposentadoria e pensão por morte no Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Não obstante, pleiteia um terceiro benefício previdenciário perante o RPPS: pensão por morte em razão do falecimento de servidor aposentado, na qualidade de cônjuge ou companheiro.
Para tanto, impõe-se a invocação do art. 40, § 6º, da Constituição Federal:
Art. 40 – [...] § 6º - Ressalvadas as aposentadorias decorrentes dos cargos acumuláveis na forma desta Constituição, é vedada a percepção de mais de uma aposentadoria à conta de regime próprio de previdência social, aplicando-se outras vedações, regras e condições para a acumulação de benefícios previdenciários estabelecidas no Regime Geral de Previdência Social .
Do dispositivo acima extrai-se a vedação à percepção de aposentadorias no âmbito do RPPS, ressalvadas as hipóteses de cargos acumuláveis.
É evidente que a limitação ali prevista não alcança os benefícios previdenciários custeados pelo RGPS, porquanto restringe expressamente seu alcance à previdência do servidor público.
Quanto aos benefícios do RGPS, aplicam-se as limitações estabelecidas pela Lei Federal nº 8.213/1991, em especial as disposições do art. 124:
Art. 124. Salvo no caso de direito adquirido, não é permitido o recebimento conjunto dos seguintes benefícios da Previdência Social:
I - Aposentadoria e auxílio-doença;
II - Mais de uma aposentadoria;
III - Aposentadoria e abono de permanência em serviço;
IV - Salário-maternidade e auxílio-doença;
V - Mais de um auxílio-acidente;
VI - Mais de uma pensão deixada por cônjuge ou companheiro, ressalvado o direito de opção pela mais vantajosa.
Parágrafo único. É vedado o recebimento conjunto do seguro desemprego com qualquer benefício de prestação continuada da Previdência Social, exceto pensão por morte ou auxílio acidente.
Ora, tratando-se de norma restritiva de direito, cuja interpretação deve igualmente ser restrita, conclui-se, em primeiro lugar, que inexiste qualquer impedimento ao acúmulo de pensão por morte e aposentadoria junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), conforme narrado no estudo de caso proposto.
Para tanto, recorro aos ensinamentos de Tércio Sampaio Ferraz Júnior sobre a matéria:
“Assim, por exemplo, recomenda-se que toda norma que restrinja os direitos e garantias fundamentais reconhecidos e estabelecidos constitucionalmente deva ser interpretada restritivamente. O mesmo se diga para as normas excepcionais: uma exceção deve sofrer interpretação restritiva.”
De outro lado, é possível sustentar a interpretação de que a vedação trazida pelo inciso VI, por se tratar de norma atinente ao RGPS, não alcança o acúmulo de pensões por morte oriundas de regimes previdenciários distintos — RGPS e RPPS, no caso sob análise.
À luz do art. 24 da Emenda Constitucional nº 103/2019, cuja aplicação é de eficácia plena e imediata — tornando irrelevante eventual disposição diversa em âmbito municipal — estabelece-se que:
“É vedada a acumulação de mais de uma pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro, no âmbito do mesmo regime de previdência social, ressalvadas as pensões do mesmo instituidor decorrentes do exercício de cargos acumuláveis na forma do art. 37 da Constituição Federal” (art. 24, caput).
Dessa forma, a nova disposição constitucional veda apenas o acúmulo de pensões por morte no âmbito do mesmo RPPS, não afetando a percepção simultânea quando se tratar de regimes previdenciários distintos — como ocorre entre RGPS e RPPS no caso em estudo.
Tal conclusão é reforçada pelo disposto no art. 24, § 1º, inciso I:
Art. 20 - § 1º Será admitida, nos termos do § 2º, a acumulação de:
I - Pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime de previdência social com pensão por morte concedida por outro regime de previdência social ou com pensões decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal [...]
A inteligência constitucional é replicada pela Portaria nº 1.467/2022 do Ministério do Trabalho e Previdência Social, nos seguintes termos:
Art. 165 [...] §2º Será admitida, nos termos do § 3º, a acumulação de:
I - Pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro no âmbito do RPPS com pensão por morte concedida em outro RPPS ou no RGPS, e pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro no âmbito do RGPS com pensão por morte deixada no âmbito do RPPS [...]
De igual modo, destaco trecho de julgado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) sobre a matéria:
CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. PENSÃO POR MORTE. SERVIDOR PÚBLICO. CUMULAÇÃO DE BENEFÍCIOS. ART 24 DA EC N. 103/2019. DUAS PENSÕES POR MORTE DE DIFERENTES REGIMES PREVIDENCIÁRIOS MAIS UM BENEFÍCIO DE APOSENTADORIA. RECEBIMENTO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE VEDAÇÃO LEGAL. LEI N. 3.765/60. INAPLICABILIDADE. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. SENTENÇA REFORMADA. CONCESSÃO DA SEGURANÇA. APELAÇÃO PROVIDA. 1. Apelação desafiada pelo particular em face da sentença que julgou improcedente o pedido autoral, por entender que a pretensão configura desaposentação, vedada pelo ordenamento jurídico pátrio e que, mesmo que possível a reativação da aposentadora por tempo de contribuição anteriormente concedida, não seria possível sua cumulação com os outros benefícios já usufruídos pela apelante, quais sejam: duas pensões por morte instituídas pelo cônjuge, sendo uma oriunda do RGPS e outra do RPPS. 2. Em suas razões, alega a apelante que inexiste óbice constitucional ou legal à acumulação de duas pensões por morte oriundas de diferentes regimes previdenciários (RGPS e RPPS) mais uma aposentadoria por tempo de contribuição. 3. Afirma que a sentença interpretou o art. 24 da Emenda Constitucional nº 103/2019 à luz de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça - STJ e do Supremo Tribunal Federal - STF aplicável em relação às pensões militares, portanto, não apropriada ao caso em discussão, já que não se trata de pensão deixada por servidor militar. 4. Diz que a controvérsia em questão deve ser analisada à luz do art. 24 da EC nº 123/2019, bem como de seu decreto regulamentador - Decreto nº 10.410/2020 - e do art. 124 da Lei nº 8.213/1991, que permite expressamente a possibilidade de cumular as pensões com a aposentadoria. [...] 11. Dessa forma, uma vez descaracterizada a desaposentação, passa-se à análise da possibilidade de a apelante perceber duas pensões por morte deixadas pelo seu falecido marido, desde 2021, cumulativamente com uma aposentadoria por tempo de contribuição. 12. A respeito da acumulação de pensões, deve-se seguir o estabelecido no art. 24 da Emenda nº 103/2019. Infere-se do teor da norma Constitucional acima mencionada que inexiste vedação à acumulação de duas pensões por morte oriundas de diferentes regimes previdenciários. Da mesma sorte, é permitida a cumulação da pensão por morte de qualquer regime de previdência social com benefício de aposentadoria paga pelo RGPS ou pelo RPPS. 13. Outrossim, o art. 124 da Lei nº 8.213/91 veda o recebimento de mais de uma pensão por morte concedida pelo RGPS. 14. No caso, observa-se que os benefícios auferidos pela apelante são 1 (uma) pensão por morte de natureza civil, regida pela Lei nº 8.112/90 e 1 (uma) pensão paga pelo RGPS, concedida com base na Lei nº 8.213/91. 15. Isto posto, a concessão de aposentadoria por tempo de contribuição pelo RGPS não encontra qualquer óbice ao acúmulo dos benefícios previdenciários à apelante. Destarte, revela-se possível o direito da apelante ao acúmulo tríplice dos benefícios em tela. Este também é o entendimento deste E. Tribunal: PROCESSO Nº 08173803920214058100, APELAÇÃO CÍVEL, DESEMBARGADOR FEDERAL CID MARCONI GURGEL DE SOUZA, 3ª TURMA, JULGAMENTO: 18/08/2022. 16. Dessa forma, afasto o reconhecimento da coisa julgada e, considerando estar a causa madura e o que foi exposto acima, realizo, desde já, o julgamento do mérito, na forma do art. 1.013, §3º, I do CPC, dando PROVIMENTO à apelação, reformando a sentença para julgar procedente o pedido, com fulcro no art. 487, I do CPC, e a) condenar o INSS a reconhecer e averbar o tempo de contribuição nos termos da inicial, em favor da autora; b) condenar o INSS a conceder à autora o benefício de aposentadoria por tempo de contribuição (NB 201.329.434-9), com DIB na DER (08/02/2022), a ser implantado no prazo de 20 (vinte) dias, obedecidos os percentuais constantes do art. 24 da EC 103/2019, no que respeita às hipóteses de acumulações previstas no § 1º [...]
(TRF-5, Apelação Cível; Processo judicial nº 0800475-86.2022.4.05.8402; Relator: Desembargador Federal Sebastião José Vasques de Moraes - 6ª Turma; Data de julgamento: 02/05/2023).
Assim, da análise restrita dos diferentes diplomas normativos que regulamentam os benefícios previdenciários e suas limitações nas duas esferas — RPPS e RGPS —, verifica-se a inexistência de qualquer impedimento legal à percepção simultânea de aposentadoria e pensão por morte no âmbito do INSS, ao mesmo tempo em que se pleiteia um terceiro benefício de pensão por morte no regime próprio de previdência social, desde que atendidos os requisitos de concessão e observadas as faixas e percentuais previstos no § 2º do art. 24 da EC nº 103/2019.
Conclusão
Ante o exposto, a análise da possibilidade de tríplice acumulação de benefícios previdenciários revelou que, sob a perspectiva constitucional e legal, não há impedimento para a percepção simultânea de aposentadoria e pensões por morte, desde que oriundas de regimes previdenciários distintos, quando não caracterizada a acumulação constitucional de cargos públicos.
A interpretação restritiva das normas previdenciárias, conforme preconizado pela doutrina, reforça a conclusão de que as vedações expressas na legislação se aplicam estritamente ao contexto dos regimes que as preveem, sem extensão indevida para situações não contempladas de forma explícita.
O estudo evidenciou que a Emenda Constitucional nº 103/2019 consolidou a proibição da acumulação de pensões por morte no âmbito de um mesmo regime de previdência social, ressalvadas aquelas decorrentes de cargos acumuláveis, sem, contudo, afetar a possibilidade de percepção simultânea de pensões provenientes de regimes distintos.
Ademais, a Portaria nº 1.467/2022, do Ministério do Trabalho e Previdência, confirma essa permissão, reforçando o entendimento de que a acumulação inter-regimes é juridicamente viável.
Conclui-se, portanto, pela viabilidade da concessão do terceiro benefício previdenciário de pensão por morte no estudo de caso proposto, desde que atendidos os requisitos de concessão e observadas as faixas e percentuais previstos no § 2º do art. 24 da EC nº 103/2019.
Essa conclusão representa interpretação segura e fundamentada das normas previdenciárias aplicáveis a situações análogas, reafirmando o caráter protetivo da previdência social e garantindo que os dependentes não fiquem desamparados, assegurando a continuidade da renda familiar em consonância com os princípios constitucionais que regem a matéria.
Referências bibliográficas
BRASIL. Apelação Cível nº 0800475-86.2022.4.05.8402. Relator: Desembargador Federal Sebastião José Vasques de Moraes. 6ª Turma, Tribunal Regional Federal da 5ª Região, 2 de maio de 2023.
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BRASIL. Emenda Constitucional nº 103/2019. Constituição Federal. Brasília, 13 de nov. 2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm. Acesso em: 14 de fev. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. [S. l.], 1991. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em: 14 de fev. 2025.
BRASIL. Lei nº 9.717, de 27 de novembro de 1998. Dispõe sobre regras gerais para a organização e o funcionamento dos regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos militares dos Estados e do Distrito Federal e dá outras providências. [S. l.], 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9717.htm. Acesso em: 14 de fev. 2025.
BRASIL. Portaria nº 1.467/2022. Ministério do Trabalho e Previdência. Brasília, 02 de jun. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/rpps/destaques/portaria-mtp-no-1-467-de-02-junho-de-2022. Acesso em: 14 de fev. 2025.
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.