Capa da publicação Reforma constitucional contra o mito dos três poderes
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Poder moderador e poder educativo ou educador no Estado Democrático de Direito brasileiro.

O mito dos freios e contrapesos (checks and balances)

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A Constituição Federal de 1988 é democrática, mas ainda está presa ao mito dos três poderes. A reforma constitucional pode reorganizar as funções do Estado e fortalecer a soberania popular e a cidadania democrática?

Resumo: Em defesa da Constituição brasileira de 1988, Constituição de “Nós, o povo soberano brasileiro”, este artigo tem como objetivo principal propor um caminho a ser seguido para construir, através de reforma constitucional, uma nova estrutura orgânico-funcional do governo do Estado democrático de direito brasileiro, um sistema organizacional que seja o espelho dos princípios, destino (fim), objetivos, deveres, direitos e funções sociais e não sociais, implícita ou explicitamente, fixados na Constituição de 1988.

Palavras-chave: Justiça; Filosofia Política; Direito Constitucional; Estado democrático de direito; princípio da separação de funções (“poderes”).

Sumário: Introdução. 1. Distinção entre poder do Estado e governo do Estado. 1.1. Poder do Estado ou Poder Político. 1.1.1. Da força coercitiva: força armada, policial, prisões, etc.. 1.1.2. Da ideologia. Três exemplos: discursos ou narrativas moralmente destrutivas; teorias e práticas pedagógicas ou educativas ideológicas; ideologias jurídicas juizistas ou judiciaristas. 1.1.3. Características do poder político. 1.2. Governo do Estado. 2. O princípio da separação de funções: denominações e gênese. 3. Distinção entre o princípio da separação de funções e a teoria mítica e antidemocrática dos três poderes de Montesquieu e dos Federalistas. 3.1. A confusão da ideia de “função” com a ideia de “poder”. 3.2. A confusão dos autores quanto ao uso dos termos “princípio”, “dogma”, “teoria”, “doutrina”, etc. 3.3. A grande confusão dos autores: a confusão do princípio da separação de funções com a teoria mítica e antidemocrática dos três poderes de Montesquieu e dos Federalistas. 4. Críticas ao princípio da separação de funções porque confundido com a teoria antidemocrática dos três poderes de Montesquieu e dos Federalistas. 5. A teoria antidemocrática dos três poderes de Montesquieu. Poder moderador explícito. Educação: função servil. O judiciário não é um verdadeiro poder. O verdadeiro terceiro poder é o poder moderador. 6. A teoria antidemocrática dos três poderes dos Federalistas. Criação do mito dos freios e contrapesos contra a soberania popular e um governo democrático constitucional. A ideologia antidemocrática da supremacia judicial. Nascimento do ativismo judicial americano. 7. As teorias de número de funções e órgãos de Platão, Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Benjamin Constant, Hegel, Afanasiev, Walzer, Ackerman e Rawls. 7.1. A gênese política, nascimento da democracia e as teorias de Platão e Aristóteles. 7.1.1. A teoria de Platão. Função moderadora implícita. Órgãos da educação e da saúde independentes. Judiciário: sonolento, descartável. 7.1.2. A teoria de Aristóteles. Função moderadora explícita. Judiciário: moderado pelo legislador. Educação: função do legislador. 7.2. Teoria de Maquiavel. Função moderadora implícita. Judiciário: moderado pelo rei. 7.3. As teorias de Hobbes e Locke. 7.3.1. A teoria de Hobbes. Função moderadora implícita. Órgão da educação: independente. Judiciário: controlado pelo soberano representante. 7.3.2. Teoria de Locke. Função moderadora explícita. O judiciário não existe como órgão independente. 7.4. A teoria de Rousseau. Órgão moderador explícito. Órgão da educação: independente. O Judiciário não faz parte do governo formal do Estado. 7.5. A teoria de Kant. Órgão educador: independente. Função moderadora explícita. Judiciário: controlado pelo órgão do governo soberano do povo. 7.6. Teoria de Benjamin Constant. Órgão moderador explícito. Judiciário: moderado pelo órgão moderador. 7.7. Teoria de Hegel. Órgão moderador explícito. Judiciário: não faz parte do governo formal do Estado. Educação: função servil. 7.8. A teoria de Afanasiev. Função moderadora explícita. Educação: função servil. Judiciário: moderado. Os exemplos da Constituição da China de 1982 e da Constituição de Cuba de 2019. 7.9. As teorias de Bruce Ackerman, Michael Walzer e John Rawls. 7.9.1. Teoria de Ackerman. Função moderadora implícita. Judiciário: moderado. 7.9.2. Teoria de Walzer. Função moderadora implícita. Órgão da educação, da saúde e outros órgãos sociais: independentes. Judiciário: moderado. 7.9.3. Teoria de Rawls. Função moderadora explícita. Órgão da educação: independente. A suprema corte (judiciário) não é “suprema”. O soberano (supremo universal, supremo de supremos) é o povo, dono da Constituição e da sua interpretação. 8. Constituição Federal brasileira de 1988. Contradição interna. 9. Uma proposta de reorganização do governo do Estado democrático de direito brasileiro. Conclusão. Referências bibliográficas.


Introdução

Em defesa da Constituição brasileira de 1988, Constituição de “Nós, o povo soberano brasileiro”, este texto tem como objetivo principal propor um caminho a ser seguido para construir, mediante reforma constitucional, uma nova estrutura orgânico-funcional do governo do Estado democrático de direito constitucional brasileiro, um sistema organizacional construído à imagem e semelhança dos princípios, destino (fim), objetivos, deveres, direitos e funções sociais e não sociais, presentes, implícita ou explicitamente, na Constituição brasileira de 1988. Entre outros, são eles: a soberania popular; a cidadania democrática; a sociedade democrática; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; a educação democrática; saúde e segurança para todos os indivíduos e cidadãos, com prioridade absoluta de todas as crianças, adolescentes, jovens, idosos, povos indígenas, de todos os indivíduos e cidadãos mais vulneráveis.

Nesse propósito, fundado no princípio da separação de funções (“poderes”), estampado como cláusula pétrea no art. 60, § 4º, III, da CF/88, critica e rejeita a teoria mítica e antidemocrática dos três poderes de Montesquieu e dos Federalistas, inscrita no art. 2º da CF/88, bem como o mito antidemocrático dos freios e contrapesos criado pelos mesmos Federalistas.


1. Distinção entre poder do Estado e governo do Estado

Na ocasião da vitória do partido trabalhista do Reino Unido, nas eleições de julho/2024 e quando o partido republicano dos Estados Unidos ganhou as eleições de novembro/2024, nos meios de comunicação e redes sociais observamos, nos comentários escritos e falados dos especialistas da política, as seguintes expressões:

1) “Partido Trabalhista volta ao poder”; “Partido Trabalhista retorna ao governo”;

2) “Trump se prepara para tomar o poder (Trump prepares to take power)”; “Joe Biden recebe Donald Trump... Encontro faz parte do processo de transição de governo”.

Em outro momento, José Dirceu, ideólogo e político socialista-comunista de ideologia marxista-leninista e membro importante do PT, Partido dos Trabalhadores do Brasil, afirmou:

[...] na comunidade internacional, isso não vai ser aceito e, dentro do país, é uma questão de tempo pra a gente tomar o poder... aí nós vamos tomar o poder que é diferente de ganhar eleição

(JOSÉ DIRCEU, in YouTube – Canal Jovem Pan. Acessado em 13.10.2024) (ressaltado por nós).

Também, o atual Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Luís Roberto Barroso, quando Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), disse: “... eleição não se vence, se toma...” (MINISTRO BARROSO. In YouTube - Canal Informativoonlinecombr. Acessado em 13.10.2024, destaque nosso). Depois, o Ministro disse que a frase era do Senador de Roraima Mesias de Jesus e que foi tirada da frase a palavra “Roraima”. Então, a frase seria: “... em Roraima a eleição não se vence, se toma... ”

Diante disso, perguntamos: “poder” é o mesmo que “governo”? A eleição se “vence” ou se “toma”? Qual a relação entre poder, governo e eleição? Nas linhas a seguir, nossa resposta.

1.1. Poder do Estado ou Poder Político

Ora, os que governam não devem ser amantes do poder, porque se o forem encontrarão amantes rivais e lutarão com eles (...) Nossos governantes e nossas governantes também... Não creias que tudo quanto eu disse se aplique apenas aos homens, e não às mulheres

(PLATÃO)

O poder político é o componente energético e coercitivo do Estado, a energia ou força coercitiva do Estado. Manifesta-se, principalmente, como força física, força armada, policial, juízos e tribunais de exceção, lawfare, prisões, etc. É a força capaz de reprimir, de constranger, de dominar, de, inclusive, exterminar fisicamente (acabar com a vida física) o inimigo político. Essa força atua no campo “da luta armada”. Dissemos “principalmente” porque o poder político tem também um componente ideológico, uma força com capacidade de dominar, destruir, reprimir o oponente ou inimigo político sem necessidade de exterminá-lo fisicamente. Essa força é utilizada no campo da “batalha ou guerra cultural”, que é, na verdade, guerra político-cultural.

Como diria Platão, tais forças são almejadas e usadas por juízes, tribunais, políticos, partidos políticos, que atuam e ou lutam por “amor ao poder”. São os “amantes do poder político”. São os antidemocráticos, os “ultras” ou “extremistas”, os incivilizados, de direita e de esquerda, que objetivam apoderar-se do poder político e, com ele na mão, implantar governos antidemocráticos: autoritários, autocráticos, ditatoriais, tirânicos, juristocráticos.

Já os juízes, tribunais, políticos e grupos políticos democráticos, civilizados, alicerçados nos, entre outros, princípios da soberania popular, da cidadania democrática, da dignidade da pessoa humana, do pluralismo político, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, da justiça e paz, lutam para concretizar esses princípios na realidade, implantando, promovendo e ou defendendo governos constitucionais democráticos de direita ou de esquerda. Tais agentes usam a força coercitiva apenas como defesa ou como forma de dissuasão, e a ideologia (se é que se pode chamá-la assim) democrática (do amor pelos outros e pela humanidade, da ética universal, do diálogo, da cooperação, da convivência justa e pacífica das diversas ideias, opiniões, valores, crenças, culturas, etc.) para defender-se ou buscar coexistir com as ideologias antidemocráticas.

1.1.1. Da força coercitiva: força física, força armada militar, policial, prisões, etc.

Como dissemos, é a força capaz de dominar, reprimir, constranger, e, inclusive, exterminar fisicamente o inimigo político. Em relação a este aspecto do poder, Hobbes ensina:

[...] os pactos sem espada não passam de palavras, sem força para dar a menor segurança a ninguém (...) o monarca recebe de um pacto seu poder, quer dizer... deriva... [d]esta simples verdade: que os pactos, não passando de palavras e vento, não tem força para obrigar, dominar, constranger ninguém, a não ser a que deriva da espada pública... poder coercitivo (...) Aquele que é portador... dessa força comum... dessa espada pública... se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano...

(HOBBES, 2000, pp. 141, 144, 146, 151) (destaques nossos)

Em relação ao que Hobbes pensa sobre o governo, veremos isso mais adiante, quando tratemos da sua teoria de número de funções e orgãos de governo.

Surgindo muito depois de Hobbes, a teoria marxista-leninista do Estado também faz distinção entre o poder do Estado e o governo do Estado. Sobre o poder do Estado, citando Engels, Lênin, em sua obra “O Estado e a Revolução”, escreve:

[...] Continua Engels: ... O segundo traço característico do Estado é a instituição de um poder público que... se organiza também como força armada. Esse poder público... é indispensável (...) Esse poder público existe em todos os Estados. Compreende não só homens armados, como também elementos materiais, prisões e instituições coercivas de toda espécie

(ENGELS. In. LÊNIN, 2011, pp. 39, 40) (negritos nossos)

Já quanto à forma de chegar-se ao poder, para o marxismo-leninismo, isso só pode ser feito mediante a violência armada, como no golpe de Estado liderado pelo mesmo Lênin na Revolução Russa de 1917, mesma força utilizada para levar adiante a Revolução.

Seguidor de Lênin, o teórico D. Gvishiani, explicando a Revolução Russa, ensina que é com a força armada que acontece a tomada do poder político e a Revolução e também mostra que esse poder é diferente do governo do Estado, que ele chama de “gestão do Estado”, “atividade do aparelho dirigente do Estado”:

Inmediatamente después de triunfar la Gran Revolución Socialista de Octubre, Lenin puso en primer plano los problemas de la organización y gestión… en cuanto el poder político pasaba a manos de los trabajadores. (…) Ejerciendo la dirección del país… Lenin… elaboró y formuló los principios socialistas de la organización científica de la gestión… del Estado (…) A iniciativa de Lenin, en la URSS… adquirió un vasto desarrollo la investigación científica… de la actividad del aparato dirigente del Estado.

(GVISHIANI, 1973, p. 4) (negritos nossos)

Também alinhado a Lênin, fazendo associação direta entre poder político e revolução, Paulo Freire, pensador socialista-comunista de ideologia marxista-leninista, na sua “Pedagogia do Oprimido”, também faz distinção entre poder político e governo. Sobre o poder político, ele leciona:

[...] O sentido pedagógico, dialógico, da revolução, que a faz “revolução cultural” também, tem de acompanhá-la em todas as suas fases (...) Isto exige da revolução no poder que, prolongando o que antes foi ação cultural dialógica, instaure a “revolução cultural”... Toda revolução, se autêntica, tem de ser também revolução cultural... Desta maneira, o poder revolucionário... não apenas é um poder, mas um novo poder (...) O quefazer [político-educativo-ideológico] é teoria e prática. É reflexão e ação... A tão conhecida afirmação de Lênin: “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário” significa precisamente que [só] há revolução... com reflexão e ação (...) E, se não é possível o diálogo com as massas populares antes da chegada ao poder, porque falta a elas experiências do diálogo, também não lhes é possível chegar ao poder, porque lhes falta igualmente experiência dele (...) Seria uma contradição se os opressores, não só defendessem, mas praticassem uma educação libertadora. Se porém, a prática desta educação implica o poder político e se os oprimidos não o têm, como então realizar a pedagogia do oprimido antes da revolução?... Um primeiro aspecto desta indagação se encontra na distinção entre educação sistemática, a que só pode ser mudada com o poder, e os trabalhos educativos, que devem ser realizados com os oprimidos, no processo de sua organização...

(FREIRE, 1987, pp. 41, 122, 134, 156) (negritos nossos)

Por outro lado, sobre o governo (gestão ou direção), Freire afirma que o governo e seus diversos aspectos: objetivos, liderança, decisões, tarefas e, sobretudo, a organização, devem estar subordinados aos objetivos da “práxis revolucionária”, antes e depois da tomada do poder:

Na práxis revolucionária há uma unidade, em que a liderança – sem que isto signifique diminuição de sua responsabilidade coordenadora e, em certos momentos, diretora – não pode ter nas massas oprimidas o objeto de sua posse (...) É verdade que sem liderança, sem disciplina, sem ordem, sem decisão, sem objetivos, sem tarefas a cumprir e contas a prestar, não há organização e, sem esta se dilui a ação revolucionária...

(FREIRE, 1987, pp. 123, 177) (negritos nossos)

Devemos, no entanto, ressaltar que não é apenas usando a força armada nas revoluções que se chega ou se toma o poder político. Existem outros meios. Por exemplo, é o que ocorre nas democracias constitucionais em que: 1) o governo é exercido por meio de representantes eleitos pelo povo; e 2) existe um judiciário e uma Suprema Corte com juízes “amantes do poder político”, o que não permite a sua autocontenção (automoderação, autocontrole) e leva ao ativismo judicial. Nesse tipo de democracia, pode-se tomar o poder político do povo: 1) mediante eleições e posterior golpe (autogolpe) de Estado; e 2) mediante golpe direto na Constituição ou “assalto à Constituição” (expressão de Bruce Ackerman) realizado pelos juízes das Supremas Cortes.

No caso do pleito eleitoral, a eleição se vence para chegar ao governo do povo, para, como agentes e representantes eleitos pelo mesmo povo, governar com o povo, em diálogo, união e comunhão com o povo, sempre em benefício do povo. Mas, por descuido das forças democráticas combinado com a ocultação das reais intenções dos “amantes do poder político” que concorrem nas eleições, nem sempre é assim.

Para os “amantes do poder político”, a eleição é apenas um meio usado com a finalidade de apoderar-se do poder político do povo. Então, primeiro se vence uma eleição e se chega ao governo para, depois, mediante golpe (autogolpe) de Estado, apoderar-se do poder político do povo e, com ele na mão, implantar uma ditadura, um governo ditatorial a favor dos que tem e estão com o poder. Nesse caso, isto é, para os “amantes do poder político”, a frase “tomaremos o poder, que é diferente de ganhar eleição” é igual à frase “eleição não se vence, se toma.”

Em relação a isso, o PT, Partido dos Trabalhadores do Brasil, do qual José Dirceu e Paulo Freire são figuras importantes, na sua carta de princípios de 1º de maio de 1979, nos informa da relação que, para ele, existe entre eleições, poder político e governo:

[...] Nesse sentido, o PT proclama que sua participação em eleições e suas atividades parlamentares se subordinarão a seu objetivo maior, que é estimular e aprofundar a organização das massas exploradas. Afirma, outrossim, que buscará apoderar-se do poder político e implantar o governo dos trabalhadores.

(PT, 1979, item 3) (os negritos são nossos)

Fiel a esse objetivo maior, “apoderar-se do poder político e implantatr o governo dos trabalhadores” (na verdade, o governo ditatorial do PT), o Presidente Lula ensina que isso pode ser feito mediante um golpe:

[...] porque quando se quer dar um golpe se constrói uma narrativa. Primeiro para construir na mente das pessoas a ideia de que a mentira é verdade, e a mentira se tornando verdade, então, você pode aplicar o golpe que você quiser...

(PRESIDENTE LULA, In: YOUTUBE – Canal BM&C NEWS. Acessado em 20.09.2024) (ressaltado por nós)

Leia-se: “o golpe que você quiser”, isto é, pode ser golpe direto na Constituição, golpe ou autogolpe de Estado, golpe nas eleições, golpe na liberdade de expressão dos opositores, etc.

Um caso ilustrativo de “apoderar-se do poder político” depois de vitorioso numa eleição é aquele que aconteceu no Peru com Alberto Fujimori. Ele chegou ao governo através de eleição e, depois, mediante golpe (autogolpe) de Estado, tomou o poder, e governou como ditador. Fujimori era político associado, direta ou indiretamente, às forças políticas de ideologia neoliberal, capitalista, de extrema direita. No mesmo Peru, houve outro caso. Pedro Castillo ganhou uma eleição e chegou ao governo. Depois tentou um golpe (autogolpe) de Estado para tomar o poder, mas não conseguiu. Castillo é político ligado, direta ou indiretamente, à ideologia marxista-leninista, socialista-comunista, de extrema esquerda.

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Como se vê, tanto os políticos e partidos políticos de direita quanto os políticos e partidos políticos de esquerda, ambos “amantes do poder político”, têm o mesmo objetivo: tomar o poder político do povo e, com isso, tomar também o dinheiro público, dinheiro do povo, e governar segundo os seus interesses e os daqueles que estão com eles. Em regra, sem exceção, os “amantes do poder político” (como qualquer outro político corrupto, inclusive, parlamentares) também são amantes do dinheiro público, que, num Estado democrático, é, com absoluta prioridade, dinheiro das crianças, dos adolescentes e dos jovens do povo.

Por outro lado, no caso da tomada do poder político mediante golpe direto na Constituição e, portanto, golpe de Estado constitucional, ele é praticado por juízes das Cortes Supremas. Por exemplo, as Cortes que têm sua origem e ou sua inspiração no processo golpista de 1787 liderado pelos Federalistas e permitido pela burguesia americana contra a Constituição dos 13 estados confederados americanos, Constituição denominada de Artigos da Confederação. Tal golpe federalista burguês foi vitorioso e, como resultado, a Constituição imposta pelos golpistas federalistas tornou-se a Constituição americana de 1787, que entrou em vigor em 1789.

Trataremos desse processo golpista mais adiante, quando abordemos a teoria de número de funções e órgãos dos Federalistas.

Tal processo golpista burguês-federalista tinha três objetivos fundamentais:

1) impedir que o povo tome o poder e se instaure um governo constitucional popular;

2) permitir que o povo participe do governo da burguesia americana da época, que tomara o poder com o triunfo da Revolução Americana, apenas e tão só “escolhendo seus representantes”, sem participação nas decisões do governo constitucional burguês;

3) com a criação do mecanismo constitucional dos freios e contrapesos, controlar “constitucionalmente” o povo e, através da Suprema Corte americana (do poder judiciário americano), controlar também “constitucionalmente” o poder executivo (o rei-presidente ou monarca-presidente) e, fundamentalmente, com a colaboração do poder executivo e do senado, controlar o poder legislativo do povo (expressão da dimensão legislativa da vontade geral ou universal do povo) dentro do governo constitucional da burguesia americana de então.

Em decorrência, tal mecanismo constitucional, entre outros frutos políticos, produziu:

1) o empoderamento e privilegiamento do judiciário, especialmente, da Suprema Corte, tendo a missão bárbara de controlar “constitucionalmente” os outros poderes, fundamentalmente, o poder legislativo eleito pelo povo.

2) o surgimento da ideologia antidemocrática da supremacia judicial.

Tal empoderamento e tal ideologia jurídica produziram, estimularam e ou fortaleceram nos justices supremos americanos o “amor ao poder político”.

3) criando-se o presidencialismo (em oposição ao parlamentarismo), a possibilidade do ressurgimento da ideologia da “supremacia do rei, do monarca”, agora na figura do “rei-presidente ou monarca-presidente”, pois, na época, esse poder não foi abolido, mas apenas mitigado para servir de apoio no controle do legislativo eleito pelo povo.

Em 1803, esse “amor ao poder político” da Suprema Corte, combinado com a ideologia antidemocrática da supremacia judicial, manifestou-se no caso Marbury vs. Madison. Ao julgar esse caso, em síntese, a Suprema Corte americana, guiada pelo seu “amor ao poder político”, mediante golpe direto na Constituição americana, isto é, “assaltando a Constituição americana” (expressão de Bruce Ackerman) decidiu, mais politicamente do que juridicamente, no sentido de que nenhum ato legislativo ou executivo poderia ser contrário, não à Constituição em si, mas à abrangente, criativa e antidemocrática “interpretação” da Constituição feita pelos “justices” supremos da Corte, “interpretação” que o povo americano e a Constituição americana não lhes delegou ou concedeu, nem tácita nem expressamente, nem implícita nem explicitamente.

Originou-se aí o ativismo judicial americano e a abrangente e antidemocrática e “criativa” “hermenêutica constitucional”, que, nos tempos atuais faz parte da ideologia antidemocrática do neoconstitucionalismo com o nome de “criativa” “nova hermenêutica constitucional”. Surgiram, então, os “juízes e tribunais criativos” e a denominada juristocracia americana disfarçada de democracia, que se apresenta, ideologicamente, como defensora ou salvadora da constituição e da democracia. A frase que define essa decisão da Suprema Corte americana de 1803 é: “A Constituição é aquilo que eu justice supremo digo o que ela é”. Luiz XIV diria: “A Constituição e sua interpretação sou eu”.

Com isso, a Suprema Corte americana concedeu-se, na prática (na prática porque a Constituição não lhe delegou esse poder) o poder moderador (controlador, regulador) dos outros poderes. Esse poder moderador levou à Corte a praticar a usurpação das funções do legislativo e do executivo, o que levou ao governo ditatorial (de fato ou na prática) dos justices supremos. É o se chama de “ditadura da toga”. Tudo isso sem que os justices supremos americanos tivessem nem sequer um voto popular.

No decorrer da história americana, esse poder e ideologia jurídica foram sendo contestados e mitigados. Atualmente, passados mais de 200 anos, nos Estados Unidos, esse poder e ideologia antidemocráticos dos justices americanos estão mitigados, tanto que os americanos estão assistindo à manifestação da ideologia da “supremacia do rei-presidente”, podendo cumprir-se o temor de parte dos americanos: vencida as eleições pelo republicano Donald Trump, ele se torne ditador, ditador de direita. O tempo dirá se tal ditadura se concretizará ou não.

Cabe, porém, alertar que essa possibilidade de ditadura vale também em relação à democrata Kamala Harris. Isso porque: 1) se tivesse vencido as eleições, ela se tornaria “rainha-presidente”; 2) as circunstâncias políticas pelas que atravessa o país americano e o mundo se mostram extremamente “polarizadas”; 3) o partido democrata americano está formado, associado e ou apoiado, direta ou indiretamente, contra Trump e o Trumpismo, por forças extremistas de esquerda, que, inclusive, pretenderam eliminar Trump fisicamente durante a campanha eleitoral; e 4) como disse Platão, o “amor ao poder político” (e ao dinheiro público) é também das mulheres, não apenas dos homens. Daí, se Kamala Harris tivesse vencido as eleições, também ela poderia ter-se tornado ditadora, ditadora de saia, ditadora de esquerda.

Assim, esse sistema constitucional americano, que inclui o mecanismo dos freios e contrapesos e a ideologia da supremacia judicial, criado pelos Federalistas em 1787 com o objetivo maior de controlar o povo e o poder legislativo do povo, fora e dentro do governo da burguesia americana da época, longe de produzir o “controle recíproco” entre os três “poderes”, abriu as portas para a possibilidade real de duas ditaduras: ou a ditadura dos justices supremos (“ditadura da toga“) ou a ditadura do rei-presidente, sejam de direita, sejam de esquerda.

Tal sistema constitucional americano criado pelos Federalistas em 1787 foi importado por outros países, dentre os quais o Brasil. Limitados ao Brasil, veremos isso mais adiante.

1.1.2. Da ideologia. Três exemplos: narrativas moralmente destrutivas; teorias e práticas pedagógicas ou educativas ideológicas; ideologias jurídicas juizistas ou judiciaristas

Não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A questão é: sua base ideológica é inclusiva ou excludente? (...) uma intervenção no mundo... implica tanto o esforço de reprodução da ideologia... quanto o seu desmascaramento

(PAULO FREIRE)

Quanto aos discursos ou narrativas moralmente destrutivas, o Presidente Lula da Silva, também leciona sobre isso:

[...] se quiser vencer uma batalha eu preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo (...) Companheiro Maduro, você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela durante tanto tempo, de antidemocracia, do autoritarismo...

(PRESIDENTE LULA, In: YOUTUBE – Canal UOL. Acessado em 20.07.2024) (negritado por nós)

Notemos aqui que o Presidente Lula não fala da espada física, da força armada, de prisões, mas de narrativas ou discursos com potencialidade de destruição moral (não física) do inimigo político numa batalha ou guerra político-cultural.

Por outro lado, relativamente às teorias e práticas pedagógicas ou educativas ideológicas, um exemplo é a teoria da pedagogia desenvolvida por Paulo Freire, principalmente, nas suas obras “A pedagogia do oprimido” e “A pedagogia da autonomia”.

A teoria pedagógica de Paulo Freire é uma teoria essencialmente antidemocrática, pois defende um regime de governo ditatorial, uma ditadura socialista-comunista de ideologia marxista-leninista. É uma teoria pedagógica bancária-socialista ou bancária-comunista desenvolvida para “destruir” não apenas a teoria pedagógica ou educativa que ele denominou de “educação bancária”, ou melhor, educação “bancária-capitalista” de ideologia neoliberal, mas também, e principalmente, para ser instrumento ideológico de luta dos “oprimidos” buscando destruir o “capitalismo opressor” e implantar o socialismo-comunismo. Para Freire, sua pedagogia bancária-comunista deve começar nas escolas para depositar a ideologia marxista-leninista na mente das crianças, adolescentes e jovens:

[...] O que fazer [político-educativo-ideológico] é teoria e prática. É reflexão e ação (...) antes mesmo de ler Marx já fazia minhas as suas palavras (...) A tão conhecida afirmação de Lenin: “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário” significa precisamente que [só] há revolução... com reflexão e ação (...) A questão da formação docente ao lado da reflexão sobre a prática educativo-progressista [de ideologia marxista-leninista] em favor da autonomia do ser dos educandos é a temática central em torno de que gira este texto... Daí a crítica permanentemente presente em mim à malvadeza neoliberal, ao cinismo da sua ideologia (...) Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção que... implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento (...) Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica. Saber igualmente fundamental à prática educativa do professor ou da professora é o que diz respeito à força, às vezes maior do que pensamos, da ideologia (...) O poder da ideologia... faz, por exemplo, a muitos de nós, aceitar docilmente o discurso cinicamente fatalista neoliberal...

(FREIRE, 1987, p. 121, 122; e 1997, pp. 14, 15, 110, 141, 142, 145) (negritos nossos)

Com essas ideias, a pedagogia de Paulo Freire harmoniza-se e complementa-se plena e perfeitamente com a pedagogia ou educação bancária-comunista de ideologia marxista-leninista do Partido Comunista da antiga União Soviética - PCUS. Na pluma de V.G. Afanasiev, na sua obra “Dirección científica de la sociedad”:

[…] El Partido Comunista… se preocupa por el desarrollo de la democracia socialista (…) lo hace por vía de la labor de organización y de educación ideológica das masas (…) La política del partido es el punto de partida… de los procesos de la educación comunista (…) La ideología del partido, la ideología marxista-leninista (…) El partido protege la conciencia de las masas contra la ideología ajena, la burguesa (…) La finalidaddel partido consiste en formar la mentalidad comunista en las vastas masas trabajadoras y educarlas en las ideas del marxismo-leninismo.

(AFANASIEV, pp. 169, 173, 177, 178) (destaque nosso)

Assim, segundo Freire, a prática educativa dos professores e do PT como “partido educador-educando” (FREIRE) deve ser uma prática ideológica bancária-comunista: a prática de depositar nas mentes dos estudantes (crianças, adolescentes e jovens) e trabalhadores a ideologia marxista-leninista, visando formar revolucionários para, via golpe de Estado ou via eleição e golpe (autogolpe) de Estado, apoderar-se do poder político do povo e implantar o governo ditatorial do PT, que Paulo Freire, o PT, o partido comunista da URSS, bem como os partidos comunistas da China e de Cuba, ideologicamente (falsa e enganosamente), chamam de governo dos trabalhadores (do proletariado, dos oprimidos) ou de “democracia socialista” ou “socialismo democrático” ou ainda de “socialismo democrático e popular” quando, em verdade, é uma ditadura de partido comunista, um socialismo ditatorial de partido comunista.

Já em relação às ideologias jurídicas juizistas ou judiciaristas, um exemplo é a ideologia jurídica do neoconstitucionalismo, que é uma ideologia juristocrática, portanto, antidemocrática, destruidora da democracia. O neoconstitucionalismo é uma ideologia jurídica diretamente derivada da ideologia da supremacia judicial nascida no processo da construção da Constituição americana de 1787. É uma ideologia constitucionalista que tem como protagonista central a figura do “tribunal ou juiz criativo”, mas não de qualquer juiz, mas de um juiz com poderes sobre-humanos, um “juiz-Hércules” com carreira no Olimpo (DWORKIN), ou, como diriam Hobbes: um juiz-rei-Leviatã, e Platão: um juiz-rei-filósofo.

O neoconstitucionalismo é uma ideologia que apresenta o judiciário (a Suprema Corte) como dono da constituição e da sua interpretação e ou como defensor e salvador da “democracia” constitucional, bem como “protetor” dos direitos constitucionais fundamentais contra eventuais danos causados pelo que denominam, convenientemente, de “processo político majoritário”. Conforme Luís Roberto Barroso, entusiasmado neoconstitucionalista:

[...] A partir do final da década de 40... a onda constitucional trouxe... também um novo modelo, inspirado na experiência americana... A fórmula envolvia a constitucionalização dos direitos fundamentais, que ficavam imunizados contra a ação eventualmente danosa do processo político majoritário: sua proteção passava a caber ao Judiciário (...) Um novo modelo. O novo direito constitucional... tem sido referido, por diversos autores, pela designação de neoconstitucionalismo... desenvolvido em uma cultura filosófica pós-positivista... marcado... pela expansão da jurisdição constitucional e por uma nova hermenêutica (...) que... se assenta... [n]o papel criativo de juízes e tribunais

(BARROSO, 2011, pp. 269, 270 e nota de rodapé nº 10, 271 e nota de rodapé nº 12, 285, 288, 289) (as cursivas são do autor, os negritos nossos)

Conforme os seus adeptos e defensores, a tal ideologia jurídica juristocrática neoconstitucionalista estaria fundamentada na doutrina que denominam de pós-positivismo, que pela sua vez teria suas raízes nas ideias de Kant e Rawls. De novo, Luís Roberto Barroso:

O marco filosófico do novo direito constitucional [neoconstitucionalismo] é o pós-positivissmo (...) O pós-positivismo se apresenta... como uma terceira via entre as concepções positivista e jusnaturalista (...) a doutrina pós-positivista se inspira na revalorização da razão prática .... obra de Kant (...) A obra seminal de Rawls - Uma teoria da justiça, de 1971- abre caminho para a ascensão do pós-positivismo, por meio da revalorização da razão prática e da inserção dos princípios da justiça no interior da ordem jurídica. Trata-se da chamada virada kantiana, marco da ascensão do pós-positivismo...

(BARROSO, 2011, pp. 269, 270 e nota de rodapé nº 10, 271 e nota de rodapé nº 12, 285, 288, 289) (as cursivas são do autor, os negritos nossos)

Ao falar, mais adiante, das suas respectivas teorias de número de funções e órgãos, veremos que Kant e Rawls, influenciados por Rousseau, são, os três, defensores 1) de uma Constituição democrática cidadã-popular, 2) de um Estado democrático constitucional cidadão-popular, 3) da soberania popular e 4) de um governo constitucional cidadão-popular, quatro dimensões da vontade geral ou universal do povo soberano, da cidadania democrática, isto é, defensores de um sistema democrático constitucional cidadão, ético, educativo, político e jurídico, de um sistema democrático que não se reduz nem se confunde com a ideia de “democracia como governo da maioria”, nem com a ideia de “processo político majoritário” ou “vontade majoritária do processo político”, ideias construídas e ou defendidas ideologicamente pelo neoconstitucionalismo e pela sua também antidemocrática e “criativa” “nova hermenêutica constitucional, praticada por “juízes e tribunais criativos.” Os pensamentos de Rousseau, Kant e Rawls, isolada ou conjuntamente, rejeitam a ideologia da supremacia judicial e a ideologia neoconstitucionalista e sua “criativa” “nova hermenêutica constitucional”, portanto, rejeitam também os “juízes e tribunais criativos” e o ativismo judicial.

1.1.3. Características do Poder Político

Quanto às características do poder do Estado, mencionemos as duas principais: 1) é soberano ou supremo, isto é, possui a qualidade (ou atributo) da soberania ou supremacia; 2) é um, só um, uno, indivisível, indelegável, inalienável e imprescritível. Essas características do poder político são inseparáveis, mas cabe dizer que a qualidade de soberania é tão inerente ao poder do Estado que ela é considerada como sendo o próprio poder soberano ou supremo do Estado. Junto a sua qualidade de ser indivisível e indelegável, vejamos isso em quatro pensadores da soberania ou poder soberano do Estado: Aristóteles, Bodin, Hobbes e Rousseau. O poder supremo do Estado como sinônimo de soberania já está em Aristóteles:

O governo é o exercício do poder supremo do Estado. Esse poder só poderia estar ou nas mãos de um só, ou da minoria, ou da maioria das pessoas (...) A principal dificuldade consiste em saber a quem deve caber o exercício da soberania.

(ARISTÓTELES, 1998, pp. 105 e 149) (negritos nossos).

Para Jean Bodin, autor francês, considerado o primeiro a tratar da soberania de forma sistemática, ela, a soberania, tendo as características de indivisibilidade, indelegabilidade, irrevogabilidade e perpetuidade, é o poder absoluto ou supremo do Estado. Paulo Bonavides, na sua obra “Ciência Política”, nos lembra disso:

A soberania é una e indivisívelnão se delega a soberania, a soberania é irrevogável, a soberania é perpétua, a soberania é um poder supremo, eis os principais pontos de caracterização com que Bodin fez da soberania... um elemento essencial do Estado.

(BONAVIDES, 2003, p. 160) (negritado por nós).

Também para Hobbes o poder do Estado é poder soberano, que ele, ressaltando sua característica de indivisibilidade, chama também de “soberania”, “o maior dos poderes humanos”, “poder comum”, “grande autoridade”:

O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na dependência da sua vontade: é o caso do poder de um Estado (...) Portanto não é de admirar que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido de benefício comum. A única maneira de instituir um tal poder comum... é conferir toda a sua força e poder a um homem ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade (...) à multidão assim unida numa só pessoa chama-se Estado, em latim, civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes... daquele Deus mortal (...) Aquele que é portador dessa pessoa chama-se soberano, e dele se diz que possui poder soberano (...) o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido (...) É evidente que quem é tornado soberano não faz antecipadamente nenhum pacto (...) E se fizer tantos pactos quantos forem os homens, depois de ele receber a soberania esses pactos seriam nulos (...) Portanto é inútil pretender conferir a soberania através de um pacto anterior (...) Quando se confere a soberania a uma assembleia de homens, ninguém deve imaginar que um tal pacto faça parte da instituição (...) a grande autoridade é indivisívele é inseparavelmente atribuída ao soberano (...) o poder soberano inteiro (que já mostrei ser indivisível) tem que pertencer a um ou mais homens, ou a todos...

(HOBBES, 2000, pp. 83, 143, 144, 145, 146, 147, 150 e 153) (as cursivas são do autor; os negritos, nossos).

Chevallier, comentando o absolutismo e a indivisibilidade da soberania ou poder soberano tanto em Bodin quanto em Hobbes, leciona:

[...] Como em Bodin, também em Hobbes o absolutismo da soberania acarreta sua indivisibilidade... Dividir o poder é dissolvê-lo. Os fragmentos do poder reciprocamente se destroem... Verdadeira doença do corpo social. As características dessa soberania absoluta e indivisível são as mesmas que em Bodin...

(CHEVALLIER, 1993, p. 75) (negritos nossos).

Do seu lado, Rousseau, quem (re)colocou o poder soberano ou soberania nas mãos do povo, afirmando as suas características de indivisibilidade e inalienabilidade, chama a soberania também de “força comum”, “autoridade soberana”, “poder soberano”, “poder absoluto”:

Do pacto social (...) ‘Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes’. Esse é o problema fundamental cuja solução é fornecida pelo contrato social (...) Essa pessoa pública, assim formada pela união de todas as demais, tomava outrora o nome de Cidade, e hoje o de República ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo e Potência quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos associados, eles recebem coletivamente o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto participantes da autoridade soberana (...) o poder soberano não tem nenhuma necessidade de garantia em face dos súditos (...) Dos limites do poder soberano (...) o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como ficou dito, o nome de soberania (...) Pela mesma razão por que é inalienável, a soberania é indivisível.”

(ROUSSEAU, 1996, pp. 20, 21, 22, 24, 34, 38, 39) (as cursivas são do autor; os negritos, nossos).

Daí, tanto para Rousseau como para Bodin e Hobbes, o poder do Estado ou soberania é indivisível. Quanto ao titular da soberania, porém, Rousseau opõe-se a Bodin e Hobbes. Para Bodin e Hobbes o titular da soberania é um indivíduo: o monarca, o príncipe. Já para Rousseau, o titular da soberania é o povo, a cidadania, a coletividade cidadã. Chevallier comenta:

Absoluta, infalível, indivisível, inalienável, - a que se pode acrescentar, como se viu: sagrada e inviolável, - de que prestigiosos atributos não se acha aureolada essa soberania segundo Rousseau! Muito bem se disse: depois de O Espírito das leis, que acentuava outros valores, O Contrato é ‘a desforra da soberania’. Sobre as ruínas do absolutismo monárquico, condenado em espírito, Rousseau quis erigir, lembrando-se de Genebra, uma soberania sem perigo para os governados e, apesar disso, tão augusta, majestosa e exigente quanto a soberania de um só, segundo Bodin, Hobbes e Bossuet. Soberania do povo, isto é, dos cidadãos em conjuntosoberania inteiramente abstrata, em substituição à soberania concreta de um Luís XIV... Soberania que opõe a O Estado sou eu, do monarca absoluto, O Estado somos nós, dos governados em conjunto!

(CHEVALLIER, 1993, p. 174) (as cursivas são do autor; os negritos, nossos).

Alinhando-se a Rousseau, John Rawls leciona:

O poder político (...) num regime democrático é... o poder dos cidadãos como corpo coletivo (...) cada cidadão tem uma mesma parcela de poder político

(RAWLS, 2003, pp. 128 e 271) (negritos nossos).

Observe-se: Rawls se refere a parcelas ideais de poder, isto é, para ele, explicando didaticamente, o poder político num Estado democrático é um “condomínio” da cidadania, dos concidadãos, sendo que cada cidadão é dono (condômino) de uma parte ideal igual do poder político democrático ou soberania popular. Nessa linha, se o poder do Estado democrático fosse divisível, ele deveria ser dividido numa quantidade ou número de poderes correspondente ao número de cidadãos que formam o povo, a cidadania. No Brasil, então, o poder do Estado democrático de direito, se ele fosse divisível, deveria ser dividido em mais de cento cinquenta milhões de poderes iguais, não apenas em três, ou em quatro, ou em cinco, ou em seis etc.

Assim, num Estado de democracia constitucional, a soberania ou poder do Estado é do povo-cidadão, unicamente do povo-cidadão (supremo universal, supremo de supremos), e é indivisível e indelegável. É o princípio da soberania popular constitucional: a soberania ou poder político do Estado democrático de direito é do povo, pelo povo, com o povo e para o povo.

No Brasil, é o que afirma a Constituição Federal de 1988, Constituição da soberania popular brasileira, Constituição cidadã brasileira, Constituição de “Nós, o povo soberano brasileiro”: art. 1º, caput, incisos I e II, e parágrafo único, combinados com o art. 14, caput, incisos I, II e III.

1.2. Governo do Estado

É o componente empreendedor, diretor, gestor do Estado. É também chamado de “exercício do poder” ou “exercício da soberania” do Estado. Na definição de Aristóteles: “O governo é o exercício do poder supremo do Estado” (ARISTÓTELES, 1998, p. 105). Essa definição, no entanto, para nós, não é muito apropriada, pois, pelo que foi visto sobre o poder do Estado, poderia ser interpretada como o “exercício da força armada” e ou da “arma ideológica” do Estado. Mas não é. Para nós, sem pretender exatidão nem esgotar seu amplo significado, é mais apropriado definir o governo do Estado como sendo o exercício da razão e vontade pública do Estado. Então, o poder político é a força armada e ideológica do Estado. O governo é o exercício da razão e vontade pública do Estado. Com o poder, o Estado reprime, domina, constrange, destrói, dissuade, defende-se. Com o governo, o Estado dá e ou deve dar educação, saúde, trabalho, segurança, vida digna e em abundância a todos.

O governo é a atividade denominada de direção, administração ou gestão do Estado. É o processo ou atividade empreendedora de: 1) planejamento; 2) organização; 3) liderança; 4) controle; e 5) retroalimentação, tanto do processo do governo geral ou global (do Estado como um todo), bem como dos processos de governo particulares: educação, saúde, segurança pública, economia, legislativo, judiciário, etc. Implica o processo de tomada de decisões em todas as esferas de governo: na esfera geral e nas esferas particulares. Tudo isso para realizar de forma plena, efetiva, eficaz e eficiente (princípios da efetividade, eficácia e eficiência) o fim (destino) e objetivos gerais e particulares fixados pela Constituição e pelas normas infraconstitucionais.

O governo do Estado é, na verdade, autogoverno, isto é, governo independente. Isso significa que o Estado possui a capacidade de governar-se sem a intervenção ou intromissão de outros Estados e entidades externas ou internacionais. Significa que nos seus negócios e assuntos internos e externos é ele que toma suas próprias decisões sem a ingerência ou intervenção de outros Estados ou entidades externas ou internacionais, com os quais, no entanto, assim como internamente, mantém e deve manter relações de interação, diálogo, cooperação, pacificação.

Em virtude da sua dimensão de governo, o Estado é, analogicamente, desde Platão, considerado um “navio”, um navio que deve ser administrado, dirigido, governado:

Estado surge da necessidade dos homens (...) Há indivíduos talhados para cultivar a Filosofia e dirigir a cidade (...) as cidades não se livrarão dos seus males enquanto não forem governados pelos filósofos (...) sobre o governo do navio [do Estado]... o bom piloto [o filósofo]... estando verdadeiramente qualificado, é ele que tem que dirigi-lo, queiram os outros ou não...”

(PLATÃO, 1996, pp. 39, 122 e 134) (ressaltado por nós)

Fazendo críticas a Platão, Walzer retoma essa analogia do governo do Estado-navio:

[...] a autonomia das esferas produzirá uma maior repartição de bens sociais... Espalhará mais amplamente o prazer de governar (...) Vejamos o caso do piloto ou do timoneiro ao leme de um navio, dirigindo a sua rota (...) O que os marinheiros não percebem é ‘que um navegador autêntico só pode tornar-se apto a comandar um navio depois de estudar as estações do ano, o céu, as estrelas e os ventos e tudo quanto faz parte do seu ofício’. Passa-se o mesmo com a nave do Estado (...) Na verdade, porém, quanto mais profundamente analisamos o significado do poder, mais nos sentimos inclinados a rejeitar a analogia de Platão. É que só nos confiamos ao timoneiro depois de termos decidido para onde queremos ir e essa decisão, mais do que o estabelecimento de determinada rota, é a que melhor ilumina o exercício do poder ...

(WALZER, 1999, pp. 273 e 274) (negritos nossos).

Ao falar do autogoverno dos cidadãos, Rawls também utiliza a analogia de Platão:

Presume-se que o governo vise ao bem comum (...) Ora, o Estado é de certo modo semelhante ao navio em alto-mar (...) Naturalmente, os fundamentos do autogoverno não são apenas de ordem prática (...) Além disso, o efeito do autogoverno, quando os direitos políticos iguais têm seu valor equitativo, é o de aumentar a autoestima e o senso de capacidade política do cidadão...

(RAWLS, 1997, pp. 255 e 256) (negritos nossos).

Rawls também afirma a importância da educação democrática para todos os cidadãos, para eles saberem governar o Estado-navio democrático:

A democracia... também reconhece que, sem instrução [educação] ampla sobre os aspectos básicos do governo democrático para todos os cidadãos, e sem um público informado a respeito de problemas prementes, decisões políticas e sociais cruciais simplesmente não podem ser tomadas.

(RAWLS, 2004, p. 184) (destaque e negritos nossos).

Assim, para Rawls, o Estado democrático é, também, um Estado educador. É Estado que se educa com o povo e educa o povo, os cidadãos que compõem o povo para que eles participem ampla e ativamente do bom, ético, inteligente, salutar, dialógico e justo autogoverno do Estado-navio democrático.

Diferentemente do poder do Estado, o governo do Estado, embora também uno, é divisível ou separável em funções ou trabalhos. É nesse momento governamental, mais precisamente, na dimensão organizacional do governo, que vige o princípio da divisão ou separação de funções (“poderes”). O princípio da separação de funções, também chamado de princípio da divisão do trabalho, exige que o governo do Estado, para cumprir com seu fim, objetivos e deveres de forma plena, efetiva, eficaz e eficiente, seja dividido ou separado em funções para serem delegadas (“emanadas”, distribuídas) a variados órgãos de governo. Esses órgãos são, por exemplo: órgão da educação, órgão da saúde, órgão da economia, órgão do legislativo, órgão do judiciário, etc.

Num governo democrático (governo ou autogoverno do povo soberano), todos esses órgãos têm autonomia e independência. Isso quer dizer que nenhum desses órgãos cumpre nem deve cumprir decisões de outros órgãos. Cada órgão, agindo de acordo com os princípios éticos ou morais (princípio da moralidade) da justiça (sentido amplo) e da sua interpretação da ordem jurídica constitucional (princípio da interpretação democrática da Constituição e das leis), nas suas respectivas esferas de governo, toma suas próprias decisões, mas sempre observando e conservando uma relação de harmonia, respeito, diálogo e cooperação com os outros órgãos e com sociedade democrática, a cidadania democrática e o povo soberano..

Necessário expressar que no governo de um Estado democrático constitucional, o titular da palavra e decisão de última instância, em todos os negócios ou assuntos do Estado, é o povo soberano, a cidadania democrática, o eleitorado como um todo. Rawls ressalta isso:

[...] Numa sociedade democrática... com um governo constitucional... o tribunal de última instância não é o judiciário, nem o executivo, nem o legislativo, mas sim o povo soberano... a cidadania... o eleitorado como um todo.

(RAWLS, 1997, pp. 427, 432 e 433).

Desse modo, podemos dizer que no governo de um Estado democrático constitucional, o verdadeiro administrador, dirigente, gestor, governante, bem como o verdadeiro líder supremo, chefe, presidente, legislador, parlamentar e juiz supremo, não é o “legislador ou parlamentar”, nem o “presidente da República ou chefe de Estado”, nem o “chefe do executivo”, nem o “supremo tribunal, nem o juiz do supremo tribunal”, nem um partido político, nem o líder de um partido político, mas, educados democraticamente para isso, os cidadãos, a cidadania democrática, o eleitorado como um todo, ou seja, o povo soberano: supremo universal, supremo de supremos.

Por essa razão, num governo democrático constitucional, liderado ou guiado pela vontade geral ou universal do povo soberano, as eleições não são e jamais devem ser um meio para apoderar-se do poder político do povo, mas apenas para, por representação política, via eleição popular, como agentes de órgãos de governo, por delegação, governar com o povo, em diálogo, união e comunhão com o povo, sempre em benefício do povo.

Assim, no e para o governo da democracia constitucional, nos passos de Locke, Rousseau, Kant, Lincoln, Walzer e Rawls: 1) a Constituição e sua interpretação são do povo, da cidadania democrática, da sociedade democrática. E quando essa interpretação é delegada, é delegada a todos os órgãos do governo. Todos os órgãos do governo, interpretando os princípios da justiça, a Constituição e as leis, executam suas respectivas funções de governo; 2) a última palavra e decisão soberana, em todos os assuntos constitucionais, legais e políticos são também do povo, da cidadania democrática, da sociedade democrática.

É o princípio do governo constitucional do povo soberano: governo constitucional do povo, pelo povo, com o povo e para o povo.

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Sobre o autor
Misael Alberto Cossio Orihuela

Advogado concursado do Município de Canoas, RS, Brasil; Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica-PUCRS, Brasil; Licenciado em Letras pela UNILASSALE, Canoas, RS, Brasil; Licenciado em Ciencias Administrativas pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Lima-Perú; Mestre em filosofia, área ética e política, pela Pontifícia Universidade Católica-PUCRS, Brasil, com a dissertação: A justiça como equidade de John Rawls: um jusnaturalismo de gênese na educação para a autonomia jurídico-política da cidadania. Nessa dissertação já se defende a ideia da autonomia e independência da educação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ORIHUELA, Misael Alberto Cossio. Poder moderador e poder educativo ou educador no Estado Democrático de Direito brasileiro.: O mito dos freios e contrapesos (checks and balances). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8110, 14 set. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115606. Acesso em: 5 dez. 2025.

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