Capa da publicação Goldschmidt e a crítica garantista à justiça negociada
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A "situação jurídica" de Goldschmidt e a crítica à instrumentalidade penal no Brasil.

Um olhar para o garantismo e a justiça negociada

Leia nesta página:

A concepção de Goldschmidt como “situação jurídica” reforça a crítica garantista ao uso instrumental do processo penal. Como preservar as garantias quando a justiça negociada amplia a coerção estatal?

Resumo: O presente artigo examina a concepção de processo como “situação jurídica” de James Goldschmidt e a sua relevância para a crítica à instrumentalidade do processo penal no Brasil. Em contraposição à teoria clássica da “relação jurídica” de Oscar von Bülow, a tese goldschmidtiana desmistifica a noção de segurança e certeza processual, destacando o processo como um jogo estratégico, marcado por ônus, chances e incertezas. A partir dessa premissa, o trabalho analisa como o processualista Aury Lopes Jr. e a doutrina garantista de Luigi Ferrajoli utilizam essa perspectiva para defender um processo penal que atue como limite ao poder punitivo do Estado, e não como mero instrumento para a aplicação da pena. Por fim, o texto aprofunda a crítica a sistemas como a justiça penal negociada, exemplificada pela transação penal e pelo Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), demonstrando como esses mecanismos subvertem garantias fundamentais e transformam o processo em um instrumento de coerção e barganha, em total descompasso com os ideais de um Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Processo penal. Situação jurídica. Instrumentalidade garantista. Justiça negociada. Garantismo.


1. Introdução

A disciplina do processo penal no Brasil ainda se debate entre o ideal de formalidade e a realidade de uma prática jurídica dinâmica e, por vezes, imprevisível. Durante décadas, a teoria do processo como relação jurídica de Bülow dominou o cenário, apresentando um modelo de segurança e igualdade entre as partes, atrelado a um sistema de direitos e deveres recíprocos. No entanto, essa visão se mostrou inadequada para captar a complexidade do direito processual, especialmente no contexto de um Estado Democrático de Direito.

É nesse cenário que a teoria de James Goldschmidt, que concebe o processo como uma situação jurídica, ganha notável relevância. Ao romper com a ilusão da certeza, Goldschmidt propôs uma nova perspectiva em que o processo não é uma relação estática, mas uma sucessão de atos que criam ônus e chances para as partes, condicionando a possibilidade de êxito no litígio. Essa visão dialoga diretamente com o Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli, servindo como base para a instrumentalidade garantista defendida por juristas brasileiros como Aury Lopes Jr.

O presente artigo busca, portanto, responder à seguinte questão: em que medida a concepção de Goldschmidt, em oposição à teoria da relação jurídica, fortalece a crítica garantista à instrumentalidade do processo penal e à expansão da justiça negociada no Brasil? Para tanto, o estudo se debruça sobre a obra de Goldschmidt e de seus intérpretes brasileiros, confronta o modelo garantista com a prática da justiça negociada e utiliza legislação e jurisprudência para demonstrar a incompatibilidade entre as práticas negociais e as garantias constitucionais do processo penal.


2. O Legado de Goldschmidt: do processo como "relação jurídica" à "situação jurídica"

A teoria de Goldschmidt, apresentada em sua monografia de 1925, representa um marco na ciência processual. O autor alemão negou a existência de direitos e obrigações processuais na acepção clássica, afirmando que o processo constitui uma complexa situação jurídica na qual as partes estão sujeitas a ônus e dispõem de chances de obter um resultado favorável. Em suas palavras, o processo não é uma garantia de justiça, mas um “jogo” com regras claras, cujo resultado final permanece incerto e imprevisível.

Essa concepção se contrapõe diretamente à teoria de Bülow, que via o processo como uma relação jurídica triangular entre o juiz, o autor e o réu. A crítica de Goldschmidt reside justamente na desconstrução do mito da simetria e da segurança. No processo, o acusado não tem um “direito” de ser absolvido, mas o ônus de se defender e de produzir provas que o favoreçam, criando assim uma chance de convencer o julgador.

A influência dessa visão na doutrina brasileira é inegável, sendo destacada por autores como Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr., que defendem sua aplicabilidade para desmascarar a falsa ideia de igualdade processual. O Código de Processo Penal (CPP) brasileiro, embora historicamente influenciado por uma visão positivista, é objeto de reinterpretação à luz da Constituição de 1988, que reforça a natureza democrática e garantista do processo. A jurisprudência, por sua vez, corrobora a importância do ônus da prova e da imparcialidade judicial. Decisões do Superior Tribunal de Justiça, como o REsp 1.839.294/MG, que tratou da cadeia de custódia e da nulidade de provas, demonstram a preocupação do Judiciário com a legalidade dos atos e com a correta distribuição dos ônus probatórios, ecoando a lógica de Goldschmidt.


3. A Instrumentalidade Garantista de Aury Lopes Jr.: O Processo como Limite ao Poder Punitivo

Para Aury Lopes Jr., o processo penal não pode ser visto como mero instrumento para a aplicação da pena. Influenciado pelo Garantismo Penal de Ferrajoli, o autor defende uma instrumentalidade garantista na qual o processo serve para limitar o poder punitivo do Estado e assegurar direitos e liberdades individuais. É o processo, e não a pena, que legitima a intervenção estatal na esfera de direitos do indivíduo.

Essa visão se fundamenta em princípios constitucionais inscritos no artigo 5º da Constituição Federal, tais como a presunção de inocência (inciso LVII), o devido processo legal (inciso LIV), o contraditório e a ampla defesa (inciso LV) e a vedação de provas ilícitas (inciso LVI). A instrumentalidade do processo, nessa concepção, é dupla: positiva (repúdio aos exageros formalistas) e negativa (limitação do poder punitivo).

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A teoria de Goldschmidt contribui para essa visão ao evidenciar que o processo é um espaço de incerteza. A missão do juiz, portanto, não é meramente aplicar a lei, mas garantir que o “jogo” seja justo. O magistrado atua como garantidor dos direitos fundamentais, superando o modelo positivista de sua atuação e evitando que o processo se torne um meio de perseguição estatal. Essa perspectiva é reforçada pela incorporação de tratados internacionais, como o Pacto de San José da Costa Rica, que, com status supralegal (conforme jurisprudência do STF no RE 466.343), estabelece um patamar mínimo de direitos humanos acima do próprio Código de Processo Penal.


4. A Crítica à "Justiça Negociada" no Brasil: um jogo de desequilíbrio e a violação de garantias

Apesar dos avanços teóricos do garantismo, o Brasil tem testemunhado a crescente expansão da justiça penal negociada, impulsionada por leis como a nº 9.099/1995 (Juizados Especiais) e, mais recentemente, pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), que introduziu o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) no artigo 28-A do CPP.

Aury Lopes Jr. e outros doutrinadores, como Gustavo Badaró, criticam duramente essa tendência, argumentando que ela viola princípios fundamentais do processo penal. A negociação, ao exigir a confissão como contrapartida para o benefício, transforma a acusação em instrumento de pressão, ferindo a presunção de inocência, o contraditório e o princípio da não autoincriminação.

A lógica de Goldschmidt é central para essa crítica. Se o processo é uma “situação jurídica” marcada por ônus e chances, a justiça negociada cria um desequilíbrio insuportável. O réu, em vez de ter o ônus de se defender para obter uma chance de absolvição, é forçado a aceitar um acordo — ainda que desfavorável — para escapar da incerteza e da potencial sanção mais grave de um processo tradicional. A “negociação” não ocorre entre partes iguais, mas entre o indivíduo e o Estado, que detém um poder punitivo ampliado. A jurisprudência, embora ainda em formação, já reflete a preocupação com práticas coercitivas, como demonstra a Súmula Vinculante 11 do STF, que visa evitar abusos de poder na condução de suspeitos e investigados.

A crítica à justiça negociada também se estende ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, previsto no artigo 24 do CPP, que é mitigado em favor da discricionariedade do Ministério Público na proposição de acordos. Isso remete a um modelo inquisitorial, no qual a imparcialidade do acusador é comprometida em prol da eficiência punitiva.


5. Conclusão

A concepção de Goldschmidt sobre o processo como situação jurídica revela-se adequada para a compreensão do processo penal contemporâneo. Ao romper com o mito da certeza e da segurança da “relação jurídica”, Goldschmidt forneceu bases teóricas para uma visão que compreende a atividade processual como um “jogo” de ônus e chances, regido por estratégias e imprevisibilidade.

Essa perspectiva, aprimorada pelo Garantismo Penal de Ferrajoli e pela instrumentalidade garantista de Aury Lopes Jr., reforça que o processo penal deve constituiu limite ao poder punitivo do Estado e guardião dos direitos e garantias individuais.

A expansão da justiça negociada no Brasil representa sério retrocesso a esses ideais. Ao subverter garantias constitucionais em nome da celeridade e da eficiência, os mecanismos negociais transformam o processo penal em instrumento de barganha, desequilíbrio e coação, destoando do espírito do Estado Democrático de Direito. Diante disso, é urgente que o Brasil harmonize suas normas processuais penais com a Constituição Federal e com os tratados internacionais de direitos humanos, garantindo que o processo seja, de fato, um jogo justo, e não mera negociação desigual.


Referências

LOPES JR, Aury. A Instrumentalidade Garantista do Processo Penal. Disponível em: https://www.academia.edu/7839156/A_INSTRUMENTALIDADE_GARANTISTA_DO_PROCESSO_PENAL. Acesso em: 15/08/2019.

LOPES JÚNIOR, Aury Celso Lima Lopes Junior. SILVA, Pablo Rodrigo Aflen da. A Incompreendida Concepção de Processo como "Situação Jurídica". Revista de Derecho Penal y Criminologia. 2012. Ano II. 4. 26. p.

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

KHALE JR., Salah H. A Busca pela Verdade no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2012.

BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, Constituição e Garantias Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Luara Cristina Santos. A "situação jurídica" de Goldschmidt e a crítica à instrumentalidade penal no Brasil.: Um olhar para o garantismo e a justiça negociada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8191, 4 dez. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115905. Acesso em: 5 dez. 2025.

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