Resumo: O artigo examina a publicidade de jogos e apostas online promovida por influenciadores digitais, à luz do Código de Defesa do Consumidor (CDC). A pesquisa demonstra que o ambiente das redes sociais consolidou-se como espaço estratégico de persuasão, no qual a fronteira entre conteúdo pessoal e comercial é intencionalmente difusa. Analisa-se como os influenciadores, ao associarem o jogo a ideias de sucesso e liberdade financeira, exercem poder de convencimento que ultrapassa o limite da racionalidade, capturando psicologicamente os consumidores. Discute-se o enquadramento jurídico dessas práticas, a responsabilidade das plataformas digitais e a aplicação dos princípios da identificação e da veracidade da publicidade. Conclui-se que a omissão da natureza comercial dessas mensagens viola a transparência informacional e compromete a autonomia da vontade do consumidor, impondo a necessidade de uma regulação mais efetiva e de políticas de prevenção ao estímulo ao jogo compulsivo.
Palavras-chave: Influenciadores digitais; Publicidade; Jogos e apostas; Consumidor; Código de Defesa do Consumidor.
1. DA PUBLICIDADE DE JOGOS E APOSTAS REALIZADA PELOS INFLUENCIADORES DIGITAIS NAS REDES SOCIAIS
Conforme analisa Brunner (2015), ao interpretar a filosofia de Arthur Schopenhauer em seu ensaio Sobre a liberdade da vontade (Über die Freiheit des menschlichen Willens, 1839), o pensador expõe de forma magistral a supremacia da vontade sobre a razão. Em suas reflexões, Schopenhauer concebe a vontade como uma força cega e impetuosa, responsável por impulsionar a ação humana, enquanto o intelecto — embora dotado de visão — carece de força própria e se limita a acompanhar e tentar orientar essa energia interior. O autor compara essa relação à de um cego robusto que carrega nos ombros um paralítico que enxerga, imagem que sintetiza a subordinação da razão à vontade. Com efeito, ainda que a razão possa indicar caminhos, é a vontade quem, de fato, conduz o agir humano, o que revela o caráter irracional que governa o comportamento1. Tal perspectiva filosófica encontra eco na análise do papel desempenhado pelos influenciadores digitais, uma vez que a vontade do público — moldada por elementos emocionais, simbólicos e pelo dinamismo visual das redes — frequentemente se sobrepõe à reflexão racional.
Nessa trilha, verifica-se um aumento contínuo do acesso à internet e da penetração das redes sociais. Observa-se, também, um expressivo crescimento da atuação de influenciadores digitais no Brasil. Segundo relatório Digital 2025: Brazil (DataReportal), há cerca de 144 milhões de usuários ativos em redes sociais no país em janeiro de 2025, o que corresponde a cerca de 67,8% da população2. Ademais, o mesmo relatório indica que o Instagram contava com 141 milhões de utentes no início de 2025, o que representa um alcance publicitário equivalente a 66,2 % da população total3. Desse modo, evidencia-se não apenas o crescimento do público conectado, mas também o papel central do Instagram como plataforma de influência digital, uma vez que marcas e criadores de conteúdo têm um alcance massivo e direto sobre o público4.
Na mesma toada, o poder de influência dos criadores de conteúdo no ambiente digital revela-se um dos fenômenos mais marcantes do marketing contemporâneo. Como demonstra o estudo de Jacomé (2018), os influenciadores digitais exercem impacto direto sobre o comportamento e as decisões de compra dos usuários das redes sociais, especialmente no Instagram. A autora identifica que grande parte das usuárias entrevistadas modifica sua percepção sobre produtos e marcas a partir das recomendações de influenciadores, o que confirma sua capacidade de moldar padrões de consumo. Essa relação de confiança simbólica entre público e influenciador confere legitimidade à mensagem publicitária e reduz a distância tradicional entre consumidor e marca, o que transforma o ato de consumo em uma experiência social e identitária5.
Com efeito, o que se verifica é que a publicidade contemporânea nas redes sociais passou a operar sob uma lógica relacional, marcada pela aproximação entre o influenciador digital e o usuário. O processo de persuasão inicia-se com a construção de uma identidade autêntica e próxima do público, criando laços de confiança e simpatia que antecedem qualquer menção comercial direta. O influenciador, ao compartilhar aspectos pessoais de sua rotina e opiniões aparentemente espontâneas, conquista a credibilidade necessária para legitimar futuras recomendações de produtos. Somente em momento posterior — muitas vezes de forma sutil ou tardia — o utente descobre tratar-se de uma ação publicitária, revelação que ocorre de modo extemporâneo e coloca em evidência o desafio da transparência na publicidade digital6.
Calha ressaltar que o usuário exposto à publicidade veiculada por influenciadores digitais passa a ser conduzido por mecanismos sutis de persuasão que operam sob a aparência de espontaneidade. As recomendações de produtos, travestidas de opiniões pessoais e experiências autênticas, produzem um efeito psicológico capaz de alterar o padrão de consumo sem que o indivíduo perceba a interferência externa. O utente acredita agir por vontade própria, quando, em realidade, suas escolhas são direcionadas por estratégias comunicacionais cuidadosamente planejadas para despertar desejos e induzir comportamentos de compra. Essa ilusão de autonomia reforça o caráter assimétrico da relação de consumo, em que a liberdade decisória do consumidor é, muitas vezes, apenas aparente7.
A partir desse contexto de influência simbólica e persuasão emocional, observa-se a expansão da atuação dos influenciadores digitais no campo das publicidades de jogos e apostas online, setor que tem crescido de modo exponencial após a regulamentação parcial das apostas esportivas no Brasil, especialmente com a promulgação da Lei nº 14.790/2023, que, dentre outras providências, dispõe sobre a publicidade e proteção do consumidor8.
O fenômeno referenciado evidencia uma nova fronteira da comunicação mercadológica, na qual o discurso publicitário se combina a elementos de entretenimento e estilo de vida, que se traduz em uma narrativa de prazer, conquista e oportunidade financeira. Ao promoverem jogos e apostas, os influenciadores associam o ato de jogar a experiências positivas, frequentemente vinculadas a ideias de sucesso, liberdade e realização pessoal — estratégias retóricas que ampliam o apelo emocional e reduzem a percepção de risco9.
Na mesma linha, o CONAR — Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária — tem assumido papel ativo no enfrentamento dos desafios específicos gerados pela publicidade de apostas veiculada por influenciadores digitais. Conforme declarou seu presidente, Sérgio Pompílio, durante a CPI das Bets, esse tipo de publicidade em redes sociais representa “o maior desafio para a atuação do CONAR”10.
Diante desse contexto, impõe-se a necessidade de uma análise acerca da publicidade realizada por influenciadores digitais à luz do Código de Defesa do Consumidor. Tal reflexão mostra-se essencial para compreender de que modo essas práticas comunicacionais se harmonizam — ou colidem — com os direitos básicos do consumidor.
2. DA REGULAÇÃO DA PUBLICIDADE DE JOGOS E APOSTAS
De acordo com o magistério de Gabriel de Castro Borges Reis, entende-se por publicidade toda informação ou comunicação, veiculada por qualquer meio, com o fim direto ou indireto de promover a aquisição de produtos ou serviços pelo consumidor. A publicidade deve ser mensurável e vinculada à oferta11.
Por sua vez, Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpção Neves diferenciam publicidade de propaganda. Obtemperar que a publicidade possui natureza essencialmente comercial, voltada à promoção de produtos ou serviços e à indução do consumidor à compra, e por conseguinte, sempre envolve finalidade lucrativa e identificação do patrocinador. Enquanto a propaganda tem caráter ideológico, político, religioso ou social, e não busca o lucro, mas a difusão de ideias ou valores. Assim, enquanto a publicidade visa o consumo, a propaganda busca a formação de convicções12.
Com efeito, nota-se que a atuação dos influenciadores digitais se insere no campo da publicidade.. Isso porque, ao promoverem produtos, serviços ou marcas em seus perfis, os influenciadores visam, direta ou indiretamente, à indução do consumo e à obtenção de lucro, ainda que o caráter comercial da mensagem somente seja revelado ao final da divulgação, após já ter ocorrido a captura psíquica dos usuários das redes sociais. A divulgação realizada por esses agentes têm natureza mercadológica e persuasiva, destina-se à valorização de bens e marcas no mercado13.
Nessa trilha, o codex consumerista contempla diversos dispositivos destinados à regulação da publicidade e da informação nas relações de consumo. O art. 30. inaugura o tratamento normativo do tema ao dispor que toda informação ou publicidade suficientemente precisa obriga o fornecedor que a veicular e integrará o contrato que vier a ser celebrado14. Trata-se da consagração do princípio da vinculação da publicidade, segundo o qual, conforme lições de Tartuce e Assumpção Neves, o conteúdo da oferta prevalece sobre o das cláusulas contratuais — como se o contrato fosse “rasgado” e substituído pelo teor da informação prestada ao consumidor no momento da oferta15.
Na sequência, o art. 31. reforça o dever de veracidade e clareza das informações prestadas ao consumidor, exige-se que sejam corretas, ostensivas e em língua portuguesa16. José Geraldo Brito Filomeno pontua que o dispositivo tem por finalidade assegurar a transparência e a completude das informações sobre produtos e serviços, o que dados relativos às suas características, qualidade, composição, preço, prazos de validade e riscos à saúde e segurança. De tal modo que a inobservância desses deveres informacionais não apenas vulnera o princípio da transparência, mas também pode implicar na aplicação do art. 46. do CDC, que torna ineficazes as disposições contratuais que não forem redigidas de modo claro e compreensível. Ademais, o descumprimento do art. 31. pode ensejar sanções civis e penais17.
Na mesma toada, a Seção III do Capítulo V do Código de Defesa do Consumidor — que compreende os arts. 36. usque 38 — dedica-se à regulação da publicidade e estabelece um verdadeiro microssistema principiológico voltado à preservação da boa-fé e da lealdade nas relações de consumo. De acordo com Tartuce e Assumpção Neves, a disciplina consumerista da publicidade assenta-se em diversos princípios, dentre os quais se destacam o da identificação, que veda a publicidade clandestina ou subliminar; o da vinculação contratual, decorrente do art. 30; o da veracidade, que proíbe a publicidade enganosa; o da não abusividade, que repele mensagens ofensivas, discriminatórias ou que explorem a vulnerabilidade do consumidor; o da inversão do ônus da prova, previsto no art. 38; e o da transparência, que exige lealdade e fundamentação ética das mensagens veiculadas. De modo articulado, o art. 36. impõe que toda publicidade seja facilmente identificável; o art. 37. veda expressamente a publicidade enganosa e abusiva; e o art. 38. transfere ao anunciante o encargo de comprovar a veracidade do conteúdo informativo18.
De outro vértice, o Código de Defesa do Consumidor estabelece vedação expressa a qualquer forma de publicidade abusiva ou enganosa. Considera-se abusiva aquela que incita valores contrários aos princípios éticos e sociais da coletividade ou que seja apta a induzir o consumidor a comportamentos prejudiciais ou perigosos à sua saúde ou segurança. Já a enganosa é toda modalidade de comunicação publicitária que, no todo ou em parte, seja falsa, ou que, por qualquer meio, inclusive pela omissão de informações relevantes, possa induzir o consumidor a erro quanto às características, qualidade, quantidade, origem, preço ou quaisquer outros atributos do produto ou serviço ofertado19.
No que tange à publicidade subliminar, é a mensagem publicitária que age abaixo do limiar da percepção consciente, busca influenciar o comportamento do consumidor sem que ele perceba a natureza persuasiva do estímulo. No direito brasileiro, prevalece o entendimento de que ela se choca frontalmente com o princípio da identificação, e por conseguinte, pode ser considerada ação lesiva passível de reparação, por atentar contra a autonomia decisória do consumidor e gerar danos morais coletivos20.
Na mesma perspectiva, a doutrina de Cláudia Lima Marques, Antônio Herman Benjamin e Bruno Miragem é categórica ao reconhecer a ilicitude da publicidade subliminar. Os autores explicam que o dever de identificação da mensagem publicitária não se restringe à forma, mas constitui uma garantia essencial da liberdade de escolha do consumidor, o que impede a utilização de técnicas psicológicas ou estímulos inconscientes que interfiram em sua autodeterminação21.
A publicidade subliminar, por atingir o inconsciente e operar à margem da consciência crítica, suprime o consentimento informado do consumidor, o que a torna incompatível com a boa-fé objetiva e a transparência que regem o mercado de consumo. Assim, ao manipular desejos e decisões sem o reconhecimento de sua natureza persuasiva, essa prática viola o núcleo ético do codex consumerista e se enquadra entre as condutas ilícitas vedadas pelo ordenamento jurídico brasileiro22.
Com efeito, verifica-se que a Corte Bandeirante endossa o posicionamento de que qualquer modalidade de publicidade ilícita configura violação aos direitos da personalidade do consumidor e, por conseguinte, enseja o dever de indenizar (grifos meus):
APELAÇÃO. SEGURO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA CUMULADA COM ANULAÇÃO DE DÉBITO E REPARAÇÃO DE DANOS. DESCONTOS AUTOMÁTICOS DE VALORES EM CONTA-CORRENTE REFERENTE A SEGURO NÃO CONTRATADO. SERVIÇO DE TELEMARKETING ABUSIVO E PUBLICIDADE SUBLIMINAR QUE GEROU À CONSUMIDORA CLARO ENGANO SOBRE O PRODUTO. DANO MORAL TIPIFICADO. FIXAÇÃO DE INDENIZAÇÃO EM R$ 5.000,00. RECURSO PROVIDO EM PARTE. Os fatos discutidos na presente ação revelaram que a autora teve descontos não autorizados em sua conta-corrente por contrato de seguro após contato feito por preposta das rés, cuja divulgação do produto e serviços não tinham clareza por informação equivocada, além de conceituar respostas fornecidas pela autora como se tivesse compreendido e aceitado a contratação. Diante evidente da falha na prestação do serivço, a autora experimentou frustração, constrangimento elevado e preocupação máxima na tentativa de impedir que a situação se perpetuasse, mas prevaleceu o descaso desbordando para real dor moral indenizável, sanada apenas com a intervenção do Poder Judiciário. Estes elementos ensejam o reconhecimento do dano moral, cuja fixação deve ser de R$ 5.000,00.
(TJSP; Apelação Cível 1001650-27.2022.8.26.0218; Relator (a): Adilson de Araujo; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Guararapes - 1ª Vara; Data do Julgamento: 18/07/2023; Data de Registro: 18/07/2023)23.
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – Ação declaratória de inexistência de débito cumulada com reparação por danos materiais e morais – Contrato de 'figuração' – Relação de consumo – Vulnerabilidade – Abordagem do consumidor para atualização dos dados da empresa na lista telefônica – Indução a erro – Contrato firmado por quem não tem poderes de representação – Impossibilidade de aplicação da teoria da aparência - Direito básico do consumidor de ser informado adequadamente sobre os produtos e serviços oferecidos pelo fornecedor, bem como de ser protegido contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços – Inexistência de informação clara a respeito dos limites da contratação realizada – Repetição dos valores pagos - Danos morais excepcionalmente caracterizados – Valor mantido. Apelação não provida.
(TJSP; Apelação Cível 1001499-40.2025.8.26.0482; Relator (a): Sá Moreira de Oliveira; Órgão Julgador: 33ª Câmara de Direito Privado; Foro de Presidente Prudente - 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 01/10/2025; Data de Registro: 01/10/2025)24.
À luz desses parâmetros normativos, a publicidade de jogos e apostas online emerge como um novo desafio regulatório e ético, na medida em que conjuga elementos de entretenimento, promessa de recompensa financeira e técnicas de persuasão emocional típicas do marketing digital. A legislação brasileira, ao autorizar e regulamentar a exploração das apostas de quota fixa — por meio da Lei nº 14.790/2023 —, passou a exigir especial cautela na veiculação de campanhas publicitárias voltadas a esse setor.
Em tempo, a Lei nº 14.790/2023, ao disciplinar a publicidade das apostas, impõe que toda comunicação comercial observe princípios de responsabilidade social, clareza e identificação, veda práticas que possam induzir o público, em especial menores de idade, ao jogo compulsivo ou à falsa percepção de ganhos fáceis25.
Para além das disposições legais, o Anexo X do Código de Autorregulamentação do CONAR estabelece regras específicas para comunicação publicitária de apostas, prevê que conteúdos patrocinados por influenciadores devem ser claramente identificados como tais, veda promessas de ganhos fáceis e determina restrição à exibição para menores de 18 anos, além de exigir alertas como “18+” ou “jogue com responsabilidade”26.
Por conseguinte, conclui-se que o conteúdo informativo veiculado por influenciadores digitais se enquadra, a priori, como publicidade e, por consequência, submete-se à regulação referenciada, composta pelo codex consumerista e pelas diretrizes de autorregulamentação publicitária. Desse modo, resta analisar os direitos dos usuários de redes sociais frente a essa modalidade de publicidade, especialmente quando associada à divulgação de jogos e apostas online.