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Jogos do poder: Alvará Régio do Estanco das Cartas de Jogar (1808) e suas consequências no Brasil

21/10/2025 às 08:58

Resumo:


  • O Alvará Régio de 1808 instituiu um monopólio estatal sobre a fabricação e venda de cartas de jogar no Brasil, visando aumentar a arrecadação de impostos.

  • Essa medida resultou em consequências negativas, como a baixa qualidade dos produtos, o surgimento de um mercado paralelo e a resistência popular às medidas governamentais.

  • A proposta atual de aumento da tributação na indústria de jogos levanta preocupações semelhantes às do passado, como o incentivo à informalidade e a queda na qualidade dos produtos, podendo afetar a arrecadação e a confiança dos consumidores.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O monopólio das cartas de jogar de 1808 gerou mercado paralelo e insatisfação. A nova tributação dos jogos repetirá o erro histórico do controle excessivo?

Resumo: Este artigo analisa o Alvará Régio do Estanco das Cartas de Jogar, assinado em 28 de maio de 1808, que instituiu um monopólio estatal sobre a fabricação e venda de cartas de jogar no Brasil. Discutimos suas implicações econômicas e sociais, destacando as consequências negativas, como a baixa qualidade dos produtos, o surgimento de um mercado paralelo e a resistência popular às medidas do governo. Além disso, traçamos um paralelo com a atual proposta de aumento da tributação da indústria de jogos, refletindo sobre os impactos negativos e a importância de aprendermos com a história. Este artigo busca contribuir para a compreensão crítica da história econômica brasileira, destacando a relevância de decisões governamentais e suas repercussões. É essencial que a análise histórica não apenas revele os erros do passado, mas também forneça um contexto para decisões futuras, promovendo um diálogo contínuo sobre o papel do Estado na economia.


Em um momento histórico de grande transformação, com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, o governo buscou formas de aumentar a arrecadação em meio a uma crise fiscal, em que o Príncipe Regente D. João VI, assinou um marco na história econômica do Brasil Colonial, o Alvará Régio de 28 de maio de 18081, in verbis:

ALVARÁ DE 28 DE MAIO DE 1808

Manda pôr em estanco as cartas de jogar.

Eu o Principe Regente faço saber aos que este Alvará com força de lei virem, que tendo consideração ao quanto convém nas actuaes circunstancias augmentar as Rendas Reaes, para com ellas acudir ás urgentes necessidades do Estado; e convido tambem lançar mão de meios ja conhecidos, e de impostos cuja cobrança e arrecadação tem mostrado a experiencia não ser difficultosa ou pesada, antes pelo contrario facil e suave aos meus fieis vassallos: e que de ficarem por Estanco as cartas de jogar resulta interesse à minha Fazenda, tendo este methodo a vantagem de fazer entrar nos meus reaes cofres a porção dada pelo contractador sem os desperdicios das Administrações: sou servido determinar que as cartas de jogar fiquem nesse Estado e nos meus Dominios Ultramarinos por Estanco; e que só o contractador a quem eu houver de arrendar este contracto, possa fabrical-as, ou vendel-as, ou as pessoas que tenham delle faculdadade para o fazer; e que se proceda á competente arrematação, mandando-se affixar editaes nesta Capital para concorrerem as pessoas que quizerem lançar, arrematando-se a quem offerecer maior quantia e mais razoadas condições.

E este se cumprirá, como nelle se contém. Pelo que mando á Mesa do Desembargo do Paço, e da Consciencia e ordem; Presidente do Real Erario; Regedor da Casa da Supplicação do Brazil; Governador da Relação da Bahia; Governadores e Capitães Generaes, e mais Governadores do Brazil, e dos meus Dominios Ultramarinos; e a todos os Ministros de Justiça e mais pessoas, a quem pertencer o conhecimento e execução deste Alvará, que o cumpram e guardem e façam cumprir e guardar tão inteiramente, como nelle se contém, não obstante quaesquer Leis, Alvarás, Regimentos, e Decretos, ou Ordens em contrario; por que todos e todas hei por bem por derogadas, para este effeito sómente, como se delles fizesse expressa e individual menção, ficando aliás sempre em seu vigor. E este valerá como carta passada pela Chancellaria, ainda que por ella não ha de passar, e que o seu effeito haja de durar mais de um anno, sem embargo da ordenação em contrario: registando-se em todos os logares da ordenação em contrario: registando-se em todos os logares, onde se costumam registar semelhantes Alvarás. Dado no Palacio do Rio de Janeiro em 28 de 1808.

PRINCIPE com guarda.

D. Fernando José de Portugal.

Alvará por que Vossa Alteza Real ha por bem ordenar que se ponham por Estanco as cartas de jogar no Estado do Brazil, e Dominios Ultramarinos, na fórma acima declarada.

Para Vossa Alteza real ver.

João Alvares de Miranda varejão o fez.

Coleção de Leis do Império do Brasil - 1808, Página 45 Vol. 1. (Publicação Original)

A criação de um monopólio sobre as cartas de jogar não apenas refletiu a necessidade de controle econômico, mas também teve repercussões sociais que ecoam até os dias atuais.

A chegada da Corte ao Brasil, em 22 de janeiro de 1808, foi um evento sem precedentes que demandou soluções inovadoras para a gestão fiscal. Um dos marcos dessa nova era foi a abertura dos portos brasileiros ao comércio com nações amigas, anunciada em 28 de janeiro de 1808. Além disso, a criação da Imprensa Régia, por meio de um decreto assinado em 13 de maio de 1808, estabeleceu uma tipografia para a impressão de livros, jornais e outros documentos, representando um avanço significativo na comunicação no Brasil.

A presença da Corte também impulsionou o desenvolvimento cultural do país, levando à fundação de academias, teatros e escolas. Essa efervescência cultural promoveu a arte, a literatura e o desenvolvimento urbano e social, transformando o Brasil em um centro de inovação e criatividade.

Nesse contexto, o Alvará do Estanco das Cartas de Jogar surgiu como uma resposta imediata à necessidade de aumentar a arrecadação de impostos. Ao impor um controle rigoroso sobre a produção e venda de cartas, o governo português buscava assegurar receitas que sustentassem a nova administração imperial. No entanto, essa medida não esteve isenta de controvérsias, gerando descontentamento entre os consumidores e questionamentos sobre a eficácia do monopólio estabelecido.

O Alvará Régio estabeleceu que apenas um contractador autorizado poderia fabricar e vender cartas de jogar, eliminando a concorrência e restringindo a liberdade de mercado.

Embora essa medida garantisse um fluxo de receita para a Coroa, resultou em uma série de consequências negativas. O contractador, sem a pressão da concorrência, não tinha incentivos para melhorar a qualidade das cartas, resultando em produtos inferiores que não atendiam às expectativas dos consumidores.

O monopólio estatal permitiu que o governo fixasse preços elevados para as cartas de jogar, tornando-as inacessíveis para muitas famílias. O aumento dos preços não apenas gerou um mercado paralelo, onde cartas de qualidade inferior eram produzidas clandestinamente, mas também desafiou a autoridade do Estado.

Esse mercado cinza prejudicou a arrecadação de impostos, já que produtos ilegais não contribuíam para a receita pública. Além disso, a produção clandestina de cartas expôs os consumidores a produtos de baixa qualidade e a possíveis fraudes.

A falta de regulamentação e controle sobre os produtos ilegais gerou desconfiança entre os jogadores, levando-os a optar por alternativas não oficiais, muitas vezes sem garantia de qualidade.

Dessa forma, o impacto da tributação elevada sobre as cartas de jogar foi profundo, especialmente para as classes menos favorecidas e o aumento do custo de um produto de lazer, que antes era acessível, tornou-se um fardo financeiro.

As cartas de jogar, que antes eram uma forma comum de entretenimento, passaram a ser vistas como um luxo, resultando em tensões sociais, pois as comunidades mais pobres sentiram a perda de um direito ao lazer.

O descontentamento popular com o monopólio estatal se manifestou em práticas de contrabando e resistência ao controle governamental. A insatisfação com a qualidade das cartas e a limitação de opções levou muitos a buscar alternativas no mercado paralelo, desafiando a legitimidade do monopólio e, por extensão, da autoridade da Coroa.

Atualmente, o Brasil, mesmo tendo recentemente regulamentado as apostas de quota fixa e cassinos online, por meio da Lei 13.756/20182, alterada pela Lei 14.790/20233, que fixou a tributação em 12%, do produto da arrecadação após a dedução do pagamento da premiação e do respectivo imposto de renda incidente, agora, com o arquivamento da MP do IOF4, que propunha o aumento para 18%, o governo insiste protocolando novo PL com a proposta de enfrenta uma nova proposta de aumento da tributação na indústria de jogos, que passaria de 12% para 24%5.

Essa proposta legislativa visa aumentar a arrecadação em um cenário econômico desafiador, mas levanta preocupações semelhantes às do passado.

Assim como o Alvará Régio de 1808, essa proposta também geraria um efeito adverso, criando um mercado paralelo e incentivando a informalidade.

O aumento da carga tributária estimula os apostadores a buscar alternativas não regulamentadas, colocando em risco tanto a arrecadação quanto a proteção dos consumidores.

Os impactos negativos dessa nova proposta legislativa são significativos e podem se manifestar de diversas maneiras, tais como:

  1. Aumento da informalidade: A elevação da carga tributária incentiva apostadores e operadores a migrar para o mercado cinza, onde a falta de regulamentação resulta em perda de controle por parte do governo.

  2. Queda na qualidade dos produtos: Com o aumento da concorrência pelos operadores ilegais, decorrente do aumento dos custos operacionais, a qualidade das ofertas de jogos legalizados pode ser prejudicada, afetando diretamente os consumidores.

  3. Insegurança Jurídica: O aumento da carga tributária pode provocar insatisfação e resistência por parte dos investidores, resultando na erosão da confiança nas instituições. Essa desconfiança é especialmente preocupante em relação aos investimentos internacionais, que são sensíveis a mudanças na legislação tributária.

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A incerteza quanto à estabilidade do ambiente fiscal pode desestimular investidores estrangeiros, comprometendo a atração de capital necessário para o desenvolvimento econômico. Além disso, essa insegurança pode impactar negativamente a geração de empregos e renda, uma vez que menos investimentos resultam em menos oportunidades de trabalho e crescimento sustentável.

A história nos ensina que o controle excessivo e a tributação elevada podem ter consequências adversas, como o surgimento de mercados paralelos e a insatisfação popular. Além disso, tais medidas podem levar à desestabilização da economia, uma vez que o aumento da carga tributária pode desencorajar o empreendedorismo e a inovação.

Quando todos percebem que o retorno sobre os impostos pagos não se traduz em melhorias nos serviços públicos ou na infraestrutura, a confiança nas instituições se deteriora. Isso resulta em um ciclo vicioso de evasão fiscal e informalidade.

Consequentemente, a falta de regulamentação e supervisão adequadas expõe os consumidores a riscos, como fraudes e práticas desleais, além de prejudicar a arrecadação pública, afetando diretamente o financiamento de serviços essenciais. Portanto, é crucial encontrar um equilíbrio que promova a arrecadação fiscal sem comprometer a confiança e a participação dos cidadãos na economia formal.

Ao refletirmos sobre o Alvará Régio do Estanco das Cartas de Jogar e a proposta atual de aumento da tributação, é essencial que aprendamos com os erros do passado.

Convidamos o leitor a refletir sobre a importância de um equilíbrio entre controle estatal e liberdade econômica. O diálogo aberto sobre políticas fiscais e regulamentações deve considerar não apenas a arrecadação, mas também as implicações sociais e econômicas dessas decisões.

Em conclusão, a falta de regulamentação e supervisão adequadas não apenas expõe os consumidores a riscos, como fraudes e práticas desleais, mas também compromete a arrecadação pública, afetando diretamente o financiamento de serviços essenciais. Portanto, é imprescindível buscar um equilíbrio que possibilite uma arrecadação fiscal eficiente, sem sacrificar a confiança da população nas instituições e a participação dos cidadãos na economia formal.

Somente por meio de uma abordagem equilibrada e transparente será possível garantir um ambiente econômico saudável e sustentável. As lições da história nos mostram a importância de decisões fundamentadas que promovam a justiça social e a estabilidade econômica.


Notas

  1. BRASIL. Alvará Régio de 28 de maio de 1808. Manda pôr em estanco as cartas de jogar. Coleção de Leis do Império do Brasil, 1808. p. 45. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/alvara/anterioresa1824/alvara-40175-28-maio-1808-572143-publicacaooriginal-95265-pe.html. Acesso em: 17 out. 2025.

  2. BRASIL. Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018. Dispõe sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e sobre a destinação do produto da arrecadação das loterias. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13756.htm . Acesso em: 17 out. 2025.

  3. BRASIL. Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023. Dispõe sobre a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa; altera as Leis nºs 5.768, de 20 de dezembro de 1971, e 13.756, de 12 de dezembro de 2018, e a Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14790.htm. Acesso em: 17 out. 2025.

  4. BRASIL. Medida Provisória nº 1.303, de 11 de junho de 2025. Dispõe sobre a tributação de aplicações financeiras e ativos virtuais no País e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/mpv/mpv1303.htm. Acesso em: 17 out. 2025

  5. BRASIL. Projeto de Lei nº 5076, de 2025. Autoria: Lindberg Farias. Altera a Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, que dispõe sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=3019259&filename=PL%205076/2025. Acesso em: 17 out. 2025

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Sobre o autor
Paulo Horn

Sócio fundador do Paulo Horn Advocacia. Presidente da Comissão Especial de Jogos Lotéricos da OAB/RJ, Membro da Comissão de Direito dos Jogos da OAB/DF e das comissões de Jogos, Apostas e Jogo Responsável da OAB/SP e Especial de Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento, Conselho Federal da OAB Mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Membro da Associação Brasileira de Direito Político e Eleitoral - ABRADEP Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/RJ e do IAB. Exerceu os cargos de diretor administrativo e financeiro, diretor jurídico e vice-presidente da Loteria do Estado do Rio de Janeiro - Loterj.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HORN, Paulo. Jogos do poder: Alvará Régio do Estanco das Cartas de Jogar (1808) e suas consequências no Brasil . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8147, 21 out. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/116004. Acesso em: 5 dez. 2025.

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