Resumo: Por meio de uma revisão bibliográfica explorou-se os fundamentos da desapropriação, dando-se um tratamento enciclopédico às modalidades, aos vícios, críticas possíveis ao regime indenizatório, e, por fim, tocando os mecanismos de controle da desapropriação. Propuseram-se algumas possibilidades, como a indenização por dano moral na desapropriação indireta e algumas críticas ao regime indenizatório da desapropriação.
Palavras-chave: Desapropriação. Modalidades de desapropriação. Desapropriação indireta. Regime indenizatório. Ação direta. Tredestinação ilícita.
Sumário: Introdução. 1. Visão panorâmica da desapropriação. 1.1. Conceito, natureza jurídica e pressupostos fundamentais. 2. Modalidades da desapropriação. 3. Processo expropriatório. 3.1. A fase declaratória (administrativa). 3.2. A fase executória (administrativa ou judicial). 4. Legitimidade passiva e ativa na desapropriação: quem é que pode ser expropriado e quem é que pode expropriar. 5.Objeto da desapropriação: o que é que pode ser desapropriado. 6. O regime indenizatório. 7. Desapropriação Indireta. 7.1. Prescrição da ação de indenização contra a desapropriação indireta. 7.2. Pagamento na ação de indenização por desapropriação indireta. 7.3. Tredestinação e retrocessão. 8. Efeitos da Desapropriação. 9. Possibilidades de Controle. Conclusão. Referências.
Introdução
A desapropriação é o instrumento mais radical de intervenção estatal na propriedade, compondo o ponto de contato mais íntimo do conflito entre a autonomia individual e o interesse social e coletivo. Munido do poder de império, o Estado possui a capacidade de intervir na propriedade privada, com o objetivo de atender à necessidade pública, à utilidade pública e ao interesse social. Uma dessas formas retira a propriedade do particular e a coloca no patrimônio estatal: é a desapropriação. Sua natureza radical e o elevado risco de violação a direito fundamental a torna – para o Direito Administrativo – o que a pena é, para o Direito Penal. Isto só já justificaria um estudo detido desse regramento. Contudo, a efetividade e a integralidade da reparação na desapropriação constituem desafio prático e teórico desse regime a suscitar a atenção dos operadores do direito e até dos simples proprietários. Neste contexto de tensões e riscos, a presente monografia se propõe a fornecer um panorama da desapropriação, explorando seus fundamentos essenciais, as modalidades e os vícios que podem macular o procedimento. O trabalho analisa criticamente o regime indenizatório — especialmente a aplicação morosa dos precatórios na desapropriação indireta — e discute a plausibilidade de se reconhecer a indenização por dano moral nos casos de esbulho administrativo, além de detalhar os mecanismos de controle judicial deste ato administrativo.
1. Visão panorâmica da desapropriação
O Estado possui alguns poderes-deveres que lhe impõem, ao mesmo tempo que lhe conferem uma capacidade, de intervir na autonomia individual. É o caso do poder de polícia e do poder de império: enquanto fornecem-lhe o poder de intervir em direitos individuais como a liberdade negocial e a propriedade privada, o obrigam a pacificar o corpo social e a intervir para atender a necessidade pública, a utilidade pública e o interesse social. Esses poderes são mediados por determinadas técnicas ou instrumentos legais que configuram formas diferentes de intervenção do Estado. Nesse sentido lição de Marcelo Pichioli Da Silveira:
“A prerrogativa do Estado de manipular o funcionamento do domínio alheio, então, descamba para um poder de polícia baseado em dois pontos: 1.º) a necessidade de cumprir as regras da função social da propriedade (arts. 5.º, inciso XXIII, e 170, inciso III, ambos da Constituição da República); e 2.º) satisfazer o interesse público ou, que seja, o interesse da coletividade. Daí o velho HELY LOPES MEIRELLES escrever: “limitações urbanísticas são preceitos de ordem pública. Derivam do poder de polícia, que é inerente e indissociável da Administração Pública”. (2025) – ênfase do autor.
O estudo desses instrumentos é titulado como intervenção do Estado na Propriedade na maioria dos cursos e manuais de direito administrativo e compreende: servidão administrativa; requisição; ocupação temporária; limitação administrativa; tombamento. e, por fim, a DESAPROPRIAÇÃO. Enquanto as demais hipóteses são meramente restritivas da propriedade individual, esta última é supressiva, expropriatória: naquelas diminui-se uma função ou utilidade da propriedade e nesta última perde-se a propriedade.
De novo, o professor Pichioli:
“O altiplano da matéria reside no que já foi dito: o Estado pode e deve intervir (maior nível de abstração), tendo, para tanto, o dito poder de polícia (nível um pouco mais concreto, mas ainda muito abstrato). Descendo, pois, ao chão da facticidade jurídico-administrativa, encontramos duas grandes classes de intervenções estatais no domínio. São elas:
a) intervenções restritivas ou brandas : o Estado impõe restrições e condiciona a propriedade sem que o particular se veja efetivamente tolhido de seu direito fundamental. Como indica a própria nomenclatura, trata-se de uma intervenção branda, pois, substancialmente, o direito é preservado, ainda que sem sua plenitude. Aristotelicamente falando: afetam-se alguns aspectos só acidentais do ente, sem desfazê-lo. Aqui entram, segundo a maioria, os seguintes fatos jurídicos:
a.1) a servidão;
a.2) a requisição;
a.3) a ocupação temporária;
a.4) as limitações administrativas; e
a.5) o tombamento.
b) intervenções supressivas ou drásticas : mais densas são as intervenções supressivas, como sugere, aliás, a nomenclatura da classe. Aqui o Estado efetivamente retira o domínio do titular originário, transferindo-o para seu próprio patrimônio. O habitat natural da intervenção supressiva, decerto, é a desapropriação, não sem razão o conjunto de atos administrativos mais complexos dentro deste nosso recorte.” (no mesmo lugar) – ênfase do autor.
Trata-se, naturalmente, de instituto muito sensível porque o risco de violação a direito fundamental é bastante elevado, de modo que a desapropriação está para o Direito Administrativo como a pena está para o Direito Penal. A desapropriação é um procedimento excepcional por meio do qual o Poder Público, de forma compulsória, transforma um bem particular em um bem público. Essa medida drástica só é permitida por razões de interesse coletivo e exige, como regra, o pagamento de uma indenização 1 prévia, 2 justa e 3 em dinheiro ao antigo proprietário.
Representa uma forma originária de aquisição da propriedade. Isso significa que, quando o Estado adquire o bem, ele o recebe livre de quaisquer ônus, dívidas ou relações jurídicas anteriores. Para ilustrar, imagine que uma casa de praia foi hipotecada pelo seu dono para garantir um empréstimo. Se o Estado desapropriar essa casa, ela passará para o domínio público sem a hipoteca. O credor da hipoteca não poderá mais cobrar a dívida sobre o imóvel, mas terá o direito de receber o valor que lhe era devido a partir da indenização paga pelo Estado ao antigo proprietário. O mesmo princípio se aplica a outros vínculos, como contratos de aluguel, que são automaticamente desfeitos.
O poder do Estado de desapropriar um bem se apoia em fundamentos políticos robustos. O principal deles é o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, que estabelece que as necessidades da coletividade prevalecem sobre os interesses individuais. Além disso, a desapropriação se justifica pela necessidade de que toda propriedade cumpra sua função social, ou seja, que seja utilizada de forma a beneficiar a sociedade. Isso se encontra amparo na Constituição Federal (art. 5º, XXIV) que estabelece três fundamentos normativos, aptos a justificar uma desapropriação: NECESSIDADE PÚBLICA, a UTILIDADE PÚBLICA e o INTERESSE SOCIAL.
A NECESSIDADE PÚBLICA envolve circunstâncias emergenciais, onde a transferência da propriedade da coisa é urgente e absolutamente necessária para a resolução do problema.
Na UTILIDADE PÚBLICA temos circunstância onde a transferência do bem é conveniente ou meramente útil para o interesse público. Este último engloba a necessidade pública, no entender de José dos Santos Carvalho Filho1.
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Por fim, a desapropriação movida pelo INTERESSE SOCIAL é aquela em que a transferência da propriedade se destina a redução da desigualdade, e justifica as desapropriações ordinárias e extraordinárias: aquelas para promover melhor aproveitamento da coisa e estas para forçar o cumprimento da função social da propriedade, como punição ao proprietário.
Quanto ao procedimento desapropriatório, ele se efetiva através de uma sequência de atos, dividida em duas fases: uma fase declaratória: de natureza administrativa, nela o poder expropriante declara seu interesse na desapropriação de determinado bem e outra executória: que pode ser administrativa (se houver acordo entre as partes) ou judicial – se a demanda for submetida ao Judiciário (ALEXANDRE, 2018, Cap. 16, item 16.10).
Como instrumento legal é evidente que pode haver circunstâncias onde o procedimento legalmente previsto para a desapropriação seja desobedecido – com consequente violação ao direito fundamental à propriedade – resultando na chamada desapropriação indireta, que equivale a um esbulho possessório. Esse instituto será oportunamente detalhado.
A desapropriação não se confunde com nenhuma das formas de intervenção restritiva da propriedade, seja a LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA – que estabelece meras restrições gerais, abstratas e gratuitas impostas à propriedade, decorrentes do poder de polícia do Estado (e.g., códigos de obras, zoneamento urbano), seja a SERVIDÃO ADMINISTRATIVA – um direito real de natureza pública que sujeita um bem particular a suportar uma utilidade pública específica, como a passagem de linhas de transmissão de energia ou tubulações, ou ainda a OCUPAÇÃO TEMPORÁRIA – um uso provisório e transitório de imóveis particulares pelo Poder Público, geralmente para apoiar a execução de obras ou a prestação de serviços públicos essenciais (e.g., instalação de canteiros de obras ou depósitos de materiais).
Diferentemente de todas essas espécies restritivas, a desapropriação estabelece uma extinção especificamente dirigida ao patrimônio de certos e determinados sujeitos passivos, tem caráter totalizante, não abrangendo fração da propriedade expropriada, e é de caráter definitivo, não transitório – o que deriva do próprio instituto da propriedade privada, então adquirido originariamente pelo sujeito ativo da desapropriação.
1.1. Conceito, natureza jurídica e pressupostos fundamentais
Thiago Marrara traz interessante abordagem para a conceituação da desapropriação em seu manual de direito administrativo. De início sua conceituação não se destaca particularmente das demais, mas analisa a desapropriação de dois pontos de vista: o do expropriante e o do expropriado. Para o expropriado, a desapropriação;
“ocasiona a ‘intervenção supressiva’ do direito de propriedade. Ao decretá-la, o Estado afasta o caráter perpétuo da propriedade sobre um determinado bem, daí porque a desapropriação não configura mera restrição. Ela consiste em medida de extinção de direito que impacta o patrimônio de pessoas físicas, de pessoas jurídicas de direito privado ou de pessoas jurídicas de direito público.” (2024, Cap. 15, item 15.1)
Por outro lado, para o expropriante, ela representa forma de aquisição da propriedade, não sendo particularmente determinante a destinação do bem para a caracterização do instituto;
“Da perspectiva do expropriante, a desapropriação configura meio de ‘aquisição originária’ de propriedade. A aquisição é originária, não derivada, uma vez que aniquila todos os vínculos jurídicos anteriores sobre o bem, seja por parte do proprietário, seja por parte de terceiros. Por conseguinte, usufrutos, direitos de superfície, cláusulas de inalienabilidade e quaisquer outros eventuais vínculos sobre o bem desaparecem a partir do momento em que ele se descola do proprietário originário. Apesar disso, o bem expropriado não se destina necessariamente ao patrimônio da entidade expropriante. Há desapropriações que agregam um bem ao patrimônio do ente que as executa e outras que implicam a transferência do bem a terceiro, inclusive um particular” (no mesmo lugar).
Como assinala, a desapropriação não é o procedimento cujo ato final resulta na inversão da propriedade do patrimônio particular (em geral) para o público. A desapropriação é o ato – e poderíamos acrescentar, o efeito – final de um procedimento de direito público que resulta em um bem expropriado legitimamente.
De acordo com Rafael Carvalho Rezende Oliveira, a desapropriação é ato unilateral do Estado, caracterizando prerrogativa única, compulsório, fundamentado no interesse público (sob pena de caracterizar-se a tredestinação – o que removeria a legitimidade do ato tornaria a intervenção antijurídica) e condicionado a indenização. A exceção ficaria por conta das espécies sancionatórias de desapropriação – d. urbanística (art. 182, § 4.º, III, da CF) e a d. rural (art. 184. da CF) – que demandam um requisito adicional: o descumprimento da função social da propriedade e não são condicionadas a indenização prévia e em dinheiro. Na d. urbanística o pagamento é feito em títulos da dívida pública, resgatáveis em até dez anos (não é prévio nem em dinheiro), na d. rural o pagamento é feito em títulos da dívida agrária, resgatáveis em até vinte anos (não é prévio nem em dinheiro). Especificamente as benfeitorias úteis e necessárias em imóvel rural desapropriado nessa modalidade são indenizadas previamente e em dinheiro. Na desapropriação confiscatória, hipótese punitiva de desapropriação fundada no tráfico de substâncias que causem dependência ou no trabalho escravo praticados pelo proprietário original, não há qualquer indenização ao proprietário (2022, Cap. 21, item 21.1.).
2. Modalidades da desapropriação
A desapropriação apresenta diversas modalidades, classificadas conforme o fundamento legal (causa) e o regime indenizatório aplicado (consequência), podem ser ordinária, por interesse social, sancionatória urbana, sancionatória para fins de reforma agrária e sancionatória confiscatória.
DESAPROPRIAÇÃO ORDINÁRIA. Esta é a modalidade mais comum e tradicional, é aquela fundada em utilidade pública ou necessidade pública, conforme previsto no Decreto-Lei 3.365/1941. Relembrando que a necessidade pública surge em situações emergenciais ou de urgência, exigindo atuação estatal imediata (e.g., calamidades, segurança pública) e a utilidade pública abrange a maioria dos casos, voltada para a execução de obras, serviços ou destinação específica do bem, visando o benefício público (e.g., construção de estradas, escolas, hospitais). Nesta modalidade, a indenização deve ser prévia, justa e paga em dinheiro.
DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL. É regulamentada pela Lei 4.132/1962, esta tem como finalidade promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem-estar social. Pode ser de três tipos diferentes, a saber: “interesse social propriamente dito” pautada na Lei 4.132/1962, com indenização prévia, justa e em dinheiro. Pode ser “interesse social para fins de reforma agrária” e ocorre quando o imóvel rural não cumpre sua função social (art. 184, CF) e, ainda, “interesse social urbanística”, aquela vinculada ao cumprimento da função social da propriedade urbana, conforme o Estatuto da Cidade.
DESAPROPRIAÇÃO URBANÍSTICA SANCIONATÓRIA (art. 182, § 4º, III, CF/88). É imposta pelo Município ao proprietário de imóvel urbano (solo não edificado, subutilizado ou não utilizado) que não cumpriu as obrigações de parcelamento, edificação ou utilização, após ter sido submetido às sanções progressivas do Estatuto da Cidade (o IPTU progressivo). Tem um regime indenizatório diferenciado: o pagamento é feito em títulos da dívida pública, resgatáveis em até dez anos, a partir do segundo ano de sua emissão.
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DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA SANCIONATÓRIA (ART. 184, CF/88). Esta é uma competência exclusiva da União e se aplica ao imóvel rural que comprovadamente não cumpre sua função social. A competência para a declaração expropriatória é da Presidência da República (via decreto) ou do próprio INCRA. Seu regime indenizatório também é diferenciado: o pagamento é realizado em títulos da dívida agrária, com prazo de resgate de até vinte anos. Contudo, as benfeitorias úteis e necessárias no imóvel devem ser indenizadas em dinheiro.
A diferença no regime indenizatório nessas duas hipóteses é estratégica. Em certa medida, essas modalidades de desapropriação têm alguma face punitiva, ainda que de natureza puramente patrimonial. O fato de o Estado utilizar títulos (TDAs ou TDPs) ao invés de dinheiro nestas modalidades sancionatórias transforma a desapropriação em uma sanção patrimonial, porque a menor liquidez e o prazo de resgate dos títulos resultam em uma desvalorização do crédito para o expropriado – basta perguntar-se: como proprietários, preferiríamos este mesmo dinheiro agora ou no futuro? Sem alteração do valor – e não a há – a resposta seria sempre agora. Esta consequência funciona como um forte desincentivo ao descumprimento da função social, reforçando o objetivo de política pública, embora gere debates sobre se a indenização, diferida no tempo e em valor, pode ser considerada plenamente "justa".
DESAPROPRIAÇÃO CONFISCATÓRIA (ART. 243, CF/88). Esta é a modalidade punitiva mais severa. Aplica-se a propriedades rurais ou urbanas onde são encontradas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou onde ocorre exploração de trabalho escravo. A característica essencial do confisco é a ausência total de indenização. Após o trânsito em julgado da sentença, o bem é incorporado ao patrimônio da União. Contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que a expropriação deve ser evitada se for provada a inocência do proprietário em relação às atividades ilícitas, protegendo o direito de propriedade contra o confisco arbitrário. Atenção ao que foi dito: o ônus da prova é do proprietário ou interessado (herdeiros, e.g.), e não da Administração Pública: se ele demonstrar não ter incorrido em culpa in eligendo (culpa na má escolha de alguém para tomar conta da propriedade, por exemplo) ou in vigilando (culpa em descuidar da vigilância e fiscalização necessárias da sua propriedade, por exemplo), pode livrar-se da desapropriação confiscatória (RE 635336/PE, Rel. Min. Gilmar Mendes). Note-se que ainda que as práticas ilícitas vislumbradas nessa modalidade ocorram em apenas uma parcela da propriedade, há entendimento do STF para o efeito de que a desapropriação afeta a propriedade por inteiro (RE 543974, Rel. Min. Eros Grau).