Resumo: Este artigo examina a vulnerabilidade dos agentes públicos que atuam no enfrentamento ao crime organizado no Brasil, com ênfase no elevado índice de mortalidade e nos reflexos institucionais dessa violência. Analisa-se o impacto da Lei nº 15.134/2025, que agravou as penas para crimes cometidos contra autoridades, bem como do Projeto de Lei nº 4.176/2025 e da Lei Estadual nº 24.991/2024, de Minas Gerais, que buscam ampliar a proteção dos profissionais da segurança pública. Apesar dos avanços normativos, constata-se que tais medidas não produzem resultados efetivos, pois a violência contra esses agentes permanece alarmante. Defende-se a necessidade de políticas públicas integradas que assegurem proteção física e psicológica, acompanhamento contínuo e condições adequadas de trabalho, a fim de preservar a vida, a dignidade e a autonomia institucional daqueles que garantem a ordem e a justiça.
Palavras-chave: Proteção de agentes públicos; crime organizado; Lei nº 15.134/2025; vulnerabilidade institucional; políticas públicas de segurança.
1. DO ELEVADO GRAU DE EXPOSIÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS QUE ATUAM NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO
Na quinta-feira, 29 de outubro de 2025, os agentes que atuaram na Operação Contenção, realizada no Rio de Janeiro, foram homenageados com promoção póstuma. Os nomes deles são: Marcus Vinícius Cardoso de Carvalho (51 anos, Polícia Civil), Rodrigo Velloso Cabral (34 anos, Polícia Civil), Heber Carvalho da Fonseca (39 anos, sargento do Batalhão de Operações Policiais Especiais – BOPE) e Cleiton Serafim Gonçalves (42 anos, sargento do BOPE1.
No que pese a valorosa homenagem realizada aos agentes de segurança pública, essa ocorrência reflete uma realidade que assola o país: o elevado índice de mortalidade de policiais militares em operações de combate às organizações criminosas2.
Com efeito, os agentes públicos que atuam no combate ao crime organizado acabam por estar expostos a um maior risco de retaliação, o que, a priori, autoriza o Estado a adotar providências excepcionais para o enfrentamento dessa forma de criminalidade3.
De fato, a própria atividade de polícia ostensiva desenvolvida pelos agentes da Polícia Militar implica uma exposição ainda maior do que a enfrentada por outros servidores da segurança pública. É um risco inerente a essa função.
Todavia, não se pode olvidar que os elevados índices de mortalidade policial no Brasil refletem uma preocupante realidade estrutural. A maior parte dos agentes que perdem a vida em serviço o fazem durante operações de enfrentamento ao crime organizado, sobretudo em regiões dominadas por facções armadas4.
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o país registra, ano após ano, uma das maiores taxas de mortes de policiais em todo o mundo, evidenciando o alto grau de exposição desses profissionais a situações de extremo risco. Essa conjuntura demonstra a urgência de políticas públicas voltadas à proteção dos agentes de segurança e ao fortalecimento das estratégias de inteligência no combate à criminalidade organizada5.
Ninguém escapa. Até mesmo operadores do direito que atuam na linha de frente do combate ao crime organizado se tornam alvos das organizações criminosas, que veem nessas figuras uma ameaça direta à sua estrutura e às suas atividades ilícitas.
Nesse sentido, Lincoln Gakiya, promotor de Justiça que investiga o Primeiro Comando da Capital (PCC) há 20 anos, em uma de suas entrevistas consignou:
Em 2019, após as remoções, virou uma questão de honra para o PCC [me matar]. Eu deveria ser morto para que outros promotores, juízes ou policiais não tivessem a mesma atitude que eu. É um decreto de morte que não tem volta.6
Na mesma linha, a Operação RECON, deflagrada em 24 de outubro de 2025, representou uma das maiores ações integradas entre as forças de segurança e o Ministério Público no enfrentamento à criminalidade organizada. A operação teve como escopo desarticular uma célula criminosa ligada a facções que planejavam atentados contra promotores, juízes e policiais na região de Presidente Prudente (SP). Foram cumpridos 25 mandados de busca e apreensão em diversas cidades do interior paulista, como Álvares Machado, Martinópolis, Pirapozinho e Presidente Venceslau7.
Nessa toada, a ação mencionada alhures, conduzida pela Polícia Civil em parceria com o GAECO e a Polícia Penal, traz à baila o elevado grau de vulnerabilidade a que se encontram sujeitos os agentes públicos responsáveis pela segurança e pela repressão às organizações criminosas. A operação evidencia o risco inerente à atuação estatal no enfrentamento ao crime organizado e revela a alta periculosidade dessas organizações.
Consigne-se, por fim, que, a violência dirigida contra autoridades públicas que atuam no combate à criminalidade organizada não se configura como uma anomalia isolada do contexto brasileiro, mas antes como um fenômeno recorrente, que desafia a soberania estatal e a própria efetividade do Estado Democrático de Direito8.
Diante do quadro delineado, impõe-se a análise dos instrumentos normativos de proteção das autoridades públicas que atuam no combate ao crime organizado.
2. DA PROTEÇÃO NORMATIVA DAS AUTORIDADES PÚBLICAS
Ab initio, cumpre salientar que a Lei nº 15.134, de 6 de maio de 2025, constitui um importante marco normativo no fortalecimento da tutela penal das autoridades que integram o sistema de justiça brasileiro.
O diploma legal alterou o Decreto-Lei nº 2.848/1940 (Código Penal) para qualificar como homicídio qualificado o crime cometido contra membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Advocacia Pública ou oficiais de justiça, quando no exercício da função ou em decorrência dela, bem como contra seus cônjuges, companheiros ou parentes até o terceiro grau9.
A mesma norma também introduziu uma causa especial de aumento de pena, de um terço a dois terços, para o crime de lesão corporal dolosa praticada nas mesmas circunstâncias, ou seja, quando a vítima for uma dessas autoridades ou seus familiares, em razão do exercício da função10. Outrossim, incluiu no rol dos crimes hediondos as lesões corporais gravíssimas, as lesões seguidas de morte e o homicídio praticados contra essas autoridades11.
Nessa senda, a legislação referenciada alhures modificou a Lei nº 12.694/2012, para prever medidas especiais de proteção aos membros do sistema de justiça, como a possibilidade de escolta, uso de coletes balísticos, veículos blindados, trabalho remoto, e remoção provisória em casos de risco decorrente do exercício da função12.
Em âmbito estadual, por seu turno, a Lei nº 24.991, de 20 de setembro de 2024, do Estado de Minas Gerais, alcunhada como “Lei Sargento Roger Dias” criou um banco de dados voltado ao registro de informações sobre indiciados, acusados ou condenados por crimes praticados contra agentes de segurança pública e membros do Poder Judiciário ou do Ministério Público estadual, quando no exercício da função ou em razão dela13.
Sob a mesma ótica, o Projeto de Lei nº 4.176/2025, aprovado pela Câmara dos Deputados em 21 de outubro de 2025, prevê aumento das penas para homicídios e lesões corporais praticados contra agentes da segurança pública ou seus familiares, eleva a pena do homicídio de doze a trinta anos para vinte a quarenta anos de reclusão, além de agravar as punições para lesões corporais14.
Com efeito, a justificativa do projeto supracitado, de autoria do Deputado Coronel Ulysses, fundamenta-se na crescente vulnerabilidade dos profissionais de segurança pública no Brasil, cuja atividade envolve risco constante, tanto em serviço quanto fora dele. Os dados apresentados na proposição evidenciam um aumento expressivo na mortalidade de policiais civis e militares, com 173 assassinatos em 2022 — a maioria ocorrida durante o período de folga —, além de demonstrar que a taxa brasileira de homicídios de agentes de segurança supera, em larga escala, a verificada em países como Argentina, Estados Unidos e Reino Unido15.
Na mesma toada, a experiência colombiana ilustra a necessidade de reforço penal e institucional na proteção de agentes públicos que atuam no enfrentamento ao crime organizado. Diante do histórico de ameaças e ataques sistemáticos a juízes, promotores e policiais — especialmente durante o auge da influência de grupos armados e do narcotráfico —, o Estado colombiano adotou medidas específicas voltadas à preservação da integridade desses profissionais. Entre as principais, destaca-se a Ley nº 504 de 1999 , que introduziu a possibilidade de sigilo da identidade de promotores e magistrados quando demonstrado risco à sua vida ou segurança, sobretudo em investigações de delitos graves16.
Do exposto, infere-se que tanto a experiência pátria quanto a internacional reconhecem a gravidade das condutas perpetradas contra aqueles que, no exercício de funções públicas, se dedicam ao enfrentamento do crime organizado. Passa-se, pois, à análise da insuficiência das medidas normativas atualmente existentes para a tutela efetiva desses agentes.
3. DA INSUFICIÊNCIA DOS INSTRUMENTOS NORMATIVOS DE PROTEÇÃO ÀS AUTORIDADES QUE ATUAM NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO
Saliente-se, de início, que a experiência prática evidencia uma ululante ineficiência dos mecanismos de proteção destinados às autoridades públicas que atuam no combate à criminalidade organizada17. Na verdade, o que se percebe é que os protetores se encontram desprotegidos.
A criminalidade organizada, por sua própria natureza, possui estrutura complexa, capilaridade territorial e alto poder econômico, o que a torna apta a corromper, coagir ou eliminar aqueles que se colocam em seu caminho. Nessa senda, juízes, promotores, defensores públicos, policiais e demais servidores do sistema de justiça figuram como alvos preferenciais, justamente por representarem a linha de frente do Estado no enfrentamento dessas estruturas ilícitas. A falta de proteção efetiva a esses profissionais não constitui mero problema administrativo, mas uma questão de segurança nacional e de salvaguarda das instituições republicanas18.
Calha ressaltar que os dispositivos legais existentes, embora relevantes em termos simbólicos, mostram-se insuficientes na prática. A ampliação das penas e a criação de qualificadoras, como se observa em leis recentes, possuem efeito meramente repressivo, sem oferecer respostas concretas à prevenção e à mitigação dos riscos enfrentados pelos agentes públicos. O ordenamento jurídico brasileiro carece de instrumentos que garantam proteção integral, tanto física quanto psicológica, aos operadores do sistema de justiça em contextos de ameaça oriundos de organizações criminosas19
Outro ponto crítico reside na ausência de uma política nacional unificada de proteção a agentes públicos ameaçados. A falta de um marco regulatório próprio, voltado exclusivamente à proteção dessas autoridades, perpetua a vulnerabilidade e a sensação de abandono institucional20.
É oportuno destacar que a fragilidade das medidas protetivas gera não apenas o risco direto à vida das autoridades, mas também repercussões sistêmicas sobre o funcionamento do Estado. O medo, a intimidação e o isolamento institucional reduzem a autonomia e a eficácia das ações judiciais e investigativas, o que favorece a impunidade e a expansão das redes criminosas21.
Com efeito, a vulnerabilidade das autoridades encarregadas de aplicar a lei e de promover a justiça transcende a esfera individual e alcança toda a coletividade. Quando magistrados, promotores e agentes de segurança são silenciados ou constrangidos em razão de ameaças e represálias, o poder coercitivo do Estado se enfraquece, o que abre espaço para a consolidação de territórios dominados pelo crime organizado. Esse enfraquecimento institucional compromete a confiança social nas instituições democráticas, fomenta a descrença na efetividade da justiça e, em última instância, põe em risco a própria ordem pública, uma vez que a impunidade passa a ser percebida como regra e não exceção22.
Deve-se considerar, ainda, que em muitos casos as ameaças persistem mesmo após o término do vínculo funcional ou a conclusão dos processos criminais. A ausência de mecanismos específicos de proteção revela-se especialmente grave quando se trata do enfrentamento de facções dotadas de ampla estrutura e longa memória organizacional, capazes de manter retaliações prolongadas contra aqueles que as combateram23. Esse vácuo normativo evidencia que a proteção deve ser compreendida como um dever contínuo do Estado, e não como uma prerrogativa temporária.
Ademais, é imperioso reconhecer que a mera previsão legal não é suficiente para assegurar a efetividade da proteção. O Estado deve adotar políticas públicas integradas, que contemplem recursos materiais treinamento continuado e acompanhamento psicológico dos agentes expostos a alto risco24. A negligência nesse campo revela não apenas ineficiência administrativa. Cuida-se do descumprimento do dever constitucional de garantir a segurança e a dignidade de seus servidores.
Por conseguinte, a insuficiência dos instrumentos normativos brasileiros reflete uma falha estrutural mais ampla, que se estende ao plano institucional e cultural. A cultura de improviso e a naturalização da violência contra autoridades públicas contribuem para perpetuar o ciclo de vulnerabilidade e impunidade. Romper com esse paradigma requer vontade política, planejamento estratégico e fortalecimento das instâncias de coordenação federativa.
CONCLUSÕES
O cenário de violência direcionada contra autoridades públicas que enfrentam o crime organizado reflete um dos aspectos mais alarmantes da crise de segurança no Brasil. A morte de policiais, promotores, juízes e servidores do sistema de justiça revela a vulnerabilidade daqueles que representam o braço visível do Estado diante das organizações criminosas. Esse quadro alimenta uma perigosa sensação de impunidade e transmite à sociedade a ideia de que o poder público não consegue proteger sequer aqueles que o defendem.
O enfraquecimento das instituições democráticas é uma consequência direta desse fenômeno. Quando agentes públicos perdem a vida no cumprimento do dever, a mensagem que se propaga é a de que a violência pode subjugar o Estado. O medo e o isolamento institucional reduzem a eficácia das ações repressivas e corroem a confiança social nas estruturas de justiça e segurança.
A promulgação da Lei nº 15.134, de 6 de maio de 2025, buscou responder a essa realidade com o endurecimento penal. O diploma legal qualificou o homicídio praticado contra membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Advocacia Pública e de oficiais de justiça, bem como ampliou as penas de lesões corporais dolosas nessas mesmas condições. A inclusão dessas condutas no rol dos crimes hediondos simbolizou o reconhecimento da gravidade desses ataques.
Contudo, a experiência prática mostra que o aumento das penas não produziu a redução esperada dos índices de letalidade entre agentes públicos. A repressão penal isolada não basta quando o inimigo opera por meio de estruturas sofisticadas, com poder econômico e capacidade de articulação territorial. O que se observa é a permanência de um quadro de violência sistêmica e a continuidade das ameaças mesmo fora do exercício funcional.
O Projeto de Lei nº 4.176/2025, aprovado pela Câmara dos Deputados, reforça a tentativa legislativa de elevar a punição aos crimes cometidos contra autoridades e seus familiares. A proposta prevê penas mais severas para homicídios e lesões corporais, com o objetivo de inibir ataques e reforçar a resposta estatal. Ainda assim, a simples majoração de penas não tem sido suficiente para modificar a realidade de risco constante enfrentada por quem atua na repressão ao crime organizado.
No plano estadual, a Lei nº 24.991, de 20 de setembro de 2024, conhecida como “Lei Sargento Roger Dias”, instituiu um banco de dados voltado ao registro de informações sobre crimes praticados contra agentes públicos. A medida visa aprimorar a inteligência policial e permitir maior monitoramento das ameaças. Trata-se de um avanço importante, mas restrito à coleta de informações, sem oferecer proteção concreta e imediata às vítimas potenciais.
O conjunto dessas normas demonstra uma tentativa de resposta jurídica a um problema de natureza estrutural e complexa. A legislação penal tem valor simbólico, mas sua eficácia depende da implementação de políticas públicas integradas e contínuas. A ausência de programas permanentes de segurança institucional, de relocação estratégica e de acompanhamento familiar torna as medidas legais insuficientes para garantir a integridade física e psicológica das autoridades ameaçadas.
O Estado deve reconhecer que a proteção de seus agentes não constitui privilégio funcional, mas dever constitucional. O descumprimento desse dever compromete não apenas a segurança individual, mas também a credibilidade e a estabilidade das instituições republicanas. A negligência estatal nesse campo revela falhas de planejamento, ausência de coordenação federativa e falta de prioridade política.
A formulação de uma política nacional específica para a proteção de agentes públicos expostos a risco elevado é indispensável. Tal política deve envolver forças de segurança, Ministério Público, Poder Judiciário e Defensorias, sob uma lógica de atuação integrada. A articulação entre esses órgãos permitiria a criação de protocolos de avaliação de risco, definição de medidas preventivas e aplicação uniforme de mecanismos de proteção em todo o território nacional.
Além disso, é imprescindível investir na saúde mental desses profissionais. O constante estado de alerta e a exposição à violência geram danos psicológicos severos, que repercutem sobre o desempenho funcional e a vida pessoal. Programas de acompanhamento psicológico, apoio terapêutico e assistência familiar devem compor a estrutura mínima de qualquer política de proteção voltada aos servidores do sistema de justiça e segurança pública.
A proteção física também requer atenção permanente. O fornecimento de coletes balísticos, veículos blindados, escolta especializada e sistemas de vigilância são medidas que reduzem o risco imediato e reafirmam o compromisso estatal com a preservação da vida. Essas ações concretas representam o verdadeiro conteúdo do dever de proteção.
Conclui-se, portanto, que a defesa das autoridades públicas no combate ao crime organizado não se resume à punição do agressor, mas envolve a adoção de um conjunto articulado de medidas preventivas e de amparo institucional. O fortalecimento da segurança e da dignidade desses agentes é condição essencial para a efetividade do Estado Democrático de Direito. Somente quando o Estado proteger aqueles que o protegem será possível afirmar que a justiça e a ordem prevalecem sobre o medo e a violência.