Resumo: Investiga-se a articulação entre o julgamento por causa madura (art. 1.013, § 3º, CPC/2015) e a vedação à decisão-surpresa (arts. 9º e 10), com atenção ao art. 933 (intimação prévia em segundo grau), à distribuição dinâmica do ônus da prova (art. 373, § 1º) e à censura jurisprudencial à “nulidade de algibeira”. Sustenta-se que a maturidade processual é técnica de eficiência condicionada: somente se legitima quando a suficiência instrutória se mantém sob a mesma régua probatória que orientou a origem e quando o fundamento determinante não é inédito ou, sendo novo, foi submetido a contraditório específico. Demonstra-se, ademais, que a dinamização do ônus é providência instrutória e repele deslocamentos tardios em acórdão. A “algibeira”, por seu turno, não convalida a falta de vista: exige ciência clara, oportunidade real e ausência de prejuízo.
Palavras-chave: causa madura; decisão-surpresa; art. 933 do CPC; contraditório substancial; distribuição dinâmica do ônus da prova; nulidade de algibeira.
Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução normativa e teleologia: do CPC/1973 ao CPC/2015. 3. Causa madura como técnica finalística de eficiência. 4. Vedação à decisão-surpresa e art. 933 do CPC: plano recursal. 5. Distribuição dinâmica do ônus da prova como providência instrutória. 6. Nulidade de algibeira: boa-fé, preclusão e limites. 7. Conciliação prática: eficiência sem súbita. 8. Conclusões. Referências.
1. Introdução
O CPC/2015 promoveu inflexão metodológica: deslocou o contraditório da formalidade para a influência efetiva sobre o conteúdo decisório, interditando a surpresa; simultaneamente, valorizou técnicas de eficiência, entre as quais a causa madura.
Não há antagonismo necessário entre tais diretrizes: a aceleração do julgamento é possível sem sacrificar participação, desde que se preservem as condições estruturais de legitimidade.
O ponto nevrálgico, contudo, é reconhecer que “maturidade” não se confunde com impaciência recursal: onde o encurtamento pressupõe reordenar a disciplina probatória ou introduzir fundamento inédito, o sistema impõe oitiva específica, notadamente pela via do art. 933.
É nesse entrecruzamento que vicejam equívocos práticos (redistribuições implícitas do ônus em segundo grau; fundamentos surpreendentes em acórdão) e mal-entendidos teóricos (confundir dinamização com regra de julgamento; invocar “algibeira” para blindar vícios de formação).
2. Evolução normativa e teleologia: do CPC/1973 ao CPC/2015
Sob o regime anterior, o encurtamento recursal era menos explícito e frequentemente se resolvia por construção pretoriana em torno da “teoria da causa madura” e do efeito devolutivo amplo.
O CPC/2015 positivou a técnica no art. 1.013, § 3º, condicionando-a a que o processo “esteja em condições de imediato julgamento”.
Essa expressão não é cláusula em branco: remete, teleologicamente, à suficiência do acervo e à estabilidade do debate; não autoriza que se resolva o mérito mediante reconfiguração extemporânea de cargas probatórias ou mediante fundamento inédito omitido até então.
Em paralelo, os arts. 9º e 10 densificam o contraditório, vedando pronunciamentos surpresa; e o art. 933, de feição eminentemente garantista, impõe intimação prévia no segundo grau quando o relator pretende decidir com base em questão não debatida. Assim se traçam as linhas de força: eficiência, sim; mas sem surpresa material ou estrutural.
3. A causa madura como técnica finalística de eficiência
A causa madura é instrumento vocacionado a realizar a duração razoável do processo, evitando retorno desnecessário à origem quando a causa já se oferece passível de decisão.
A legitimidade desse encurtamento, porém, exige dois pressupostos:
a) autossuficiência instrutória, examinada sob a mesma régua probatória (distribuição e standard) que orientou a instrução;
b) continuidade do contraditório, no sentido de que o fundamento determinante tenha sido previamente submetido ao debate.
A “maturidade” não é pretexto para “trocar a régua” no momento do julgamento. Em termos práticos, a Câmara somente “amadurece” o feito quando pode dizer, com segurança, que não faltam provas à luz da disciplina que vigorou e que nada essencial resta por ouvir das partes.
4. Vedação à decisão-surpresa e art. 933 do CPC: plano recursal
A proibição de decisão-surpresa, inscrita nos arts. 9º e 10, não se resume à bilateralidade formal.
Trata-se de exigir previsibilidade mínima quanto aos fundamentos do pronunciamento e quanto às balizas que estruturam a estratégia das partes.
Em segundo grau, o art. 933 serve de ponte entre tais garantias e a dinâmica recursal: percebe o relator que a solução há de apoiar-se em questão não debatida — de direito ou de fato — ou que a resolução demanda reordenar a disciplina probatória?
Então intima as partes, oportunizando manifestação específica e, quando cabível, eventual ajuste instrutório.
O dispositivo não esvazia a causa madura; ao contrário, dá-lhe base de legitimidade, transformando o possível vício de surpresa em regular ampliação do contraditório.
A doutrina tem distinguido, com acerto, a surpresa jurídica previsível — requalificação compatível com a causa de pedir e com fatos incontroversos — da surpresa imprevisível, que projeta nova carga probatória, altera expectativas legítimas ou introduz capítulos inéditos.
Apenas esta última reclama a providência do art. 933. Onde o fundamento é inerente ao debate travado, a maturidade pode operar sem nova vista.
5. Distribuição dinâmica do ônus da prova (art. 373, § 1º) como providência instrutória
A disciplina do ônus probatório é elemento estrutural do jogo de posições em juízo. O art. 373, § 1º, ao admitir a dinamização, não converte a carga em regra de julgamento; define, isto sim, uma ordem de instrução, a ser estabelecida em tempo de influir na atuação das partes.
Redistribuir o ônus na sentença — e, mais grave, no acórdão que invoca causa madura — traduz surpresa estrutural: a parte onerada não teve oportunidade de requerer e produzir a prova que agora lhe é cobrada.
Nossa prática forense revela dois vícios frequentes:
o tribunal, ao reputar “madura” a causa, exige prova que, segundo a régua de origem, incumbia à parte contrária;
o tribunal, sem dizer, rebaixa (ou eleva) o standard de suficiência probatória e julga com base em premissa distinta daquela que conduziu a instrução.
Em ambos os casos, a maturidade é aparente; o vício reside em ter-se alterado a métrica do julgamento após o encerramento da fase adequada, sem contraditório específico.
Nada impede, todavia, que a redistribuição ocorra em segundo grau, desde que tomada como providência instrutória: anuncia-se a intenção, abre-se vista, oportuniza-se requerimento de prova estritamente necessário e, conforme o regimento, saneia-se a marcha.
A causa madura, aqui, cede; a satisfação do contraditório prevalece, porque o ganho de tempo não compensa a perda de legitimidade.
6. Nulidade de algibeira: boa-fé, preclusão e limites
A chamada “nulidade de algibeira” é construção jurisprudencial de franca inspiração deontológica: o processo não pode ser palco para ardil.
O litigante que detecta um vício sanável e, dispondo de meio idôneo e de tempo hábil, silencia para invocá-lo apenas depois de apurar o resultado, incorre em comportamento contraditório.
A vedação homenageia a boa-fé objetiva e harmoniza-se com o clássico pas de nullité sans grief: sem prejuízo, não há nulidade.
Importa, porém, fixar limites claros. A algibeira não autoriza que se ignore o art. 10 ou o art. 933 do Código de Processo Civil.
Onde faltou vista ou não houve ciência clara do fundamento determinante, a inércia da parte não se confunde com ardil: faltou-lhe a condição para agir. O silêncio, então, não preclui; o vício é de formação.
De outra parte, havendo intimação inequívoca e oportunidade real de insurgência — por exemplo, decisão interlocutória que redistribui o ônus com prazo para requerimento de prova, ou despacho de relatoria que abre vista sobre questão nova —, o silêncio consumará preclusão e autorizará o repúdio à nulidade de ocasião.
É nesse equilíbrio que a algibeira cumpre função saneadora: não convalida a surpresa; sim impede que garantias sejam instrumentalizadas com propósito oportunístico.
A análise do prejuízo é corolário dessa arquitetura. Não basta proclamar o vício; cumpre indicar o que a parte deixou de fazer ou como sua estratégia foi afetada.
Tal exigência não fragiliza a vedação à surpresa; apenas evita que o processo se converta em caça a nulidades meramente formais.
7. Conciliação prática: eficiência sem súbita
O relacionamento entre causa madura e não-surpresa resolve-se por prudência jurisdicional e por fidelidade ao desenho normativo.
Se a questão é exclusivamente jurídica, previsível à luz da moldura fática e independente de maior instrução, nada obsta o julgamento imediato.
Mas, se, ao contrário, o fundamento emergente inova na qualificação jurídica de modo imprevisível, projeta nova carga probatória ou revela “caput” controverso não debatido, impõe-se a intimação prévia (art. 933), com eventual saneamento recursal.
Também não há incoerência em anular-se sentença que redistribuiu tardiamente o ônus e, após restaurado o contraditório e mantida a régua originária, julgar-se de pronto por já se achar suficiente o acervo probatório. O que se recusa é a precipitação; o que se protege é a previsibilidade dialógica.
Uma breve nota de prática forense ajuda a situar os contornos. Em apelações nas quais o tribunal afasta prescrição reconhecida na origem, a tentação de “avançar ao mérito” é compreensível.
Todavia, a legitimidade desse avanço depende da suficiência instrutória à luz da mesma disciplina probatória: se o desate do mérito exigirá “troca de régua” ou introduzirá fundamento novo, não há causa madura; há, sim, necessidade de vista e, se cabível, instrução mínima. Esse é o preço — justificável — de decidir bem.
8. Conclusões
A causa madura, tal como positivada pelo CPC/2015, não é salvo-conduto para atalhos indiscriminados; é técnica finalística de racionalização do itinerário decisório. Sua aplicação supõe autossuficiência do acervo probatório sob a mesma régua e continuidade do contraditório sobre o fundamento determinante.
A vedação à decisão-surpresa, densificada no plano recursal pelo art. 933, não diminui a eficiência; fornece-lhe lastro de legitimidade. A distribuição dinâmica do ônus, por sua vez, é providência instrutória e repele deslocamentos tardios em acórdão.
E a nulidade de algibeira, corretamente compreendida, não legitima vícios de formação; legitima, isto sim, a estabilização de atos quando haja ciência, oportunidade e ausência de prejuízo.
Com esse arranjo, preserva-se a celeridade sem abdicar do devido processo legal substancial. Decide-se rápido quando já se pode decidir bem; e, quando ainda não, decide-se com vista — porque precipitação não é sinônimo de eficiência.
Referências
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023:2018 — Informação e documentação — Referências — Elaboração. Rio de Janeiro: ABNT, 2018.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520:2002 — Informação e documentação — Citações em documentos — Apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2002.
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. v. 3: Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2024.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 19. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.
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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 66. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025.
STJ — Precedentes exemplificativos:
REsp 2.016.601/SP, Rel. Min. Regina Helena Costa, 1ª Turma, j. 29 nov. 2022, DJe 12 dez. 2022 — vedação à decisão-surpresa (art. 10 do CPC/2015).
REsp 1.845.754/ES, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. 24 ago. 2021, DJe 31 ago. 2021 — uso da causa madura condicionado à suficiência probatória.
EDcl no REsp 1.602.170/MT, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, j. 21 ago. 2018, DJe 28 ago. 2018 — rejeição à nulidade de algibeira; exigência de ciência e ausência de prejuízo.
Abstract: This article examines the interplay between the appellate “ripe case” technique (CPC art. 1.013 §3) and the ban on surprise decisions (arts. 9–10), with emphasis on art. 933 (prior notice in second instance), dynamic allocation of the burden of proof (art. 373 §1), and the jurisprudential rejection of the so-called “pocket nullity”. It argues that expedited adjudication is legitimate only when the evidentiary record remains sufficient under the same burden regime employed below and when the decisive ground is not new—or, if new, has been previously submitted to adversarial participation. Dynamic burden allocation is an instructional order and thus incompatible with abrupt shifts at the judgment stage. “Pocket nullity” does not validate lack of prior notice; it requires clear knowledge, a real opportunity to react, and no actual prejudice.
Keywords: ripe case; surprise decision; CPC art. 933; adversarial principle; dynamic burden of proof; pocket nullity.