Resumo: O presente artigo analisa a decisão unânime da 7ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho que afastou a incidência das multas previstas nos artigos 467 e 477 da CLT, em situação que envolvia distrato consensual celebrado entre atleta profissional e clube de futebol, contendo cláusula penal própria para o inadimplemento. O acórdão, proferido no Processo TST-Ag-AIRR-10880-57.2018.5.03.0181, evidencia a prevalência da autonomia privada na esfera do contrato especial de trabalho desportivo, à luz das especificidades da Lei Pelé, e reafirma a vedação ao bis in idem quando o fato gerador está disciplinado pelas partes. A análise propõe leitura sistemática do julgado e de seus fundamentos, destacando sua repercussão na teoria contratual e na aplicação subsidiária da CLT no âmbito do Direito Desportivo.
Palavras-chave: contrato especial de trabalho desportivo; distrato; cláusula penal; Lei Pelé; bis in idem; CLT.
1. Introdução
A rescisão do contrato especial de trabalho desportivo tem sido objeto de intensa reflexão doutrinária e jurisprudencial, sobretudo quanto à tensão entre a autonomia da vontade das partes e o caráter tuitivo do Direito do Trabalho. A recente decisão da 7ª Turma do TST, no caso envolvendo o atleta Rafael Marques Mariano e o Cruzeiro Esporte Clube1, introduz importante diretriz hermenêutica: havendo distrato consensual que estabelece penalidade específica para a mora, não se aplicam, cumulativamente, as multas previstas nos arts. 467 e 477 da CLT.
O presente estudo examina os fatos, as teses jurídicas discutidas e o raciocínio adotado pelo Tribunal, articulando-os com os princípios da especialidade normativa, da autonomia contratual e da vedação ao bis in idem.
2. O distrato consensual e a não incidência dos arts. 467 e 477 da CLT ao caso
O atleta, contratado por prazo determinado e remunerado em R$ 300.000,00 mensais, foi desligado sem justa causa cerca de sete meses antes do termo final contratual. Para formalizar a rescisão, as partes firmaram instrumento de distrato consensual, mediante o qual estipularam pagamento de R$ 1.289.275,57 em oito parcelas.
A cláusula central do pacto consistia na previsão de multa específica: o atraso superior a 30 dias em qualquer parcela acarretaria a obrigação do clube de pagar o montante equivalente a um salário mensal integral (R$ 300.000,00), substituindo o valor originalmente devido (aproximadamente R$ 161.000,00).
Tal cláusula se caracterizaria como cláusula penal. Para Sérgio Pinto Martins, a cláusula penal representa uma obrigação acessória, dependente da obrigação principal, mas que serve de reforço para esta última e representa uma estimação das perdas e danos decorrentes do inadimplemento contratual, sendo que qualquer espécie de obrigação pode receber o reforço de uma cláusula penal (MARTINS, 2026, p. 141)2.
O atraso na 4ª parcela ensejou a aplicação da penalidade contratual, reconhecida pelo Tribunal Regional. Contudo, o atleta também pleiteou a aplicação concomitante das multas dos arts. 467. e 477 da CLT, tese rejeitada tanto no segundo grau quanto no TST.
Ocorre que a multa do art. 477, § 8º, da CLT, pune o desrespeito ao prazo legal de 10 dias para pagamento das verbas rescisórias após o fim do contrato (art. 477, § 6º). No entanto, neste caso, o contrato foi extinto via distrato com parcelamento autorizado, sendo que o atraso não foi no prazo geral de pagamento da rescisão, mas sim no pagamento da 4ª parcela do acordo. O Tribunal Regional, cuja decisão foi mantida, explicou que o distrato para pagamento parcelado não se enquadrava na hipótese padrão de atraso do acerto rescisório prevista na CLT, devendo incidir apenas a multa contratual pactuada para essa situação específica.
O Tribunal também afastou a incidência da multa do art. 467. da CLT, destinada às verbas rescisórias incontroversas não pagas na primeira audiência, por entender tratar-se do caso de obrigação decorrente de distrato, cujo inadimplemento estava submetido a disciplina contratual de natureza distinta, sendo que a dívida não se enquadrava no conceito estrito de verba rescisória legalmente devido na audiência inaugural, o que inviabiliza a incidência do dispositivo.
3. A controvérsia jurídica: acumulação de penalidades e o Princípio do Non Bis in Idem
O cerne do recurso consistia na alegação de que as multas pleiteadas possuiriam naturezas distintas e, por isso, poderiam ser cumuladas com a penalidade contratual. O TST, porém, refutou a proposição.
Para o relator, Ministro Evandro Pereira Valadão Lopes, com voto convergente do Ministro Alexandre Agra Belmonte, a duplicidade punitiva fundada no mesmo fato gerador (o atraso no pagamento) configuraria ofensa ao princípio do non bis in idem, além de violar a lógica proibitiva do enriquecimento sem causa. Assim, prevaleceram os efeitos jurídicos da cláusula penal expressamente pactuada — mais onerosa e específica que as multas legais.
O chamado bis in idem seria a “dualidade, repetição, realização de dois atos a propósito da mesma coisa.” (MAGALHÃES; MALTA, 1990)3. Nesta senda, o princípio do non bis in idem protegeria o indivíduo da dupla punição pelo mesmo fato.
Ari Pedro Lorenzetti explica que o reconhecimento do direito a determinadas verbas remuneratórias, via de regra, acarreta reflexos sobre o valor de outras parcelas decorrentes do contrato de trabalho ou de sua extinção. Diante disso, faz-se necessário definir os limites de tais reflexos, a fim de evitar que se forme um ciclo vicioso ou o bis in idem (LORENZETTI, 2012)4.
4. A especialidade do contrato desportivo
A fundamentação do acórdão ressalta a incidência subsidiária da CLT ao contrato especial de trabalho desportivo, subordinada ao que dispõe a Lei Pelé (Lei nº 9.615/98). Ao admitir, de modo legítimo, a celebração de distrato e a estipulação de penalidades específicas, a Lei Pelé autoriza que as partes construam regime próprio para a extinção do vínculo.
Além disso, o Tribunal observou que o atleta, ao aderir ao distrato, renunciou a parte do valor que receberia pela Cláusula Compensatória Desportiva, optando por solução negocial que lhe conferia liquidez imediata e, simultaneamente, garantia por meio de cláusula penal rigorosa. Este contexto reforça a conclusão de que as partes instituíram deliberadamente sistema especial de regulação do inadimplemento, excluindo a incidência cumulativa das multas trabalhistas.
Segundo Domingos Zainaghi, a cláusula compensatória desportiva, bem como a indenizatória desportiva, é sucessora da polêmica cláusula penal, tendo como principal objetivo proibir que um atleta, durante a vigência de seu contrato, mude para outro time sem que o clube com o qual detém vínculo seja ressarcido pelos investimentos realizados (ZAINAGHI, 2018, p. 58).5
O ministro Cláudio Brandão destaca que, entre os benefícios mais notáveis na nova Lei Geral do Esporte (LGE), está a universalização das cláusulas indenizatória e compensatória. No caso do contrato especial de trabalho esportivo, há previsão no art. 85, I e II, da Lei n° 14.597/2023 (que, nesse aspecto, reproduz quase que integralmente o art. 28, I e II, da Lei n° 9.615/1998) dessas duas modalidades: a) “cláusula indenizatória esportiva”, devida exclusivamente ao clube, para os casos de transferência do atleta para outra organização, nacional ou estrangeira, durante a vigência do contrato especial de trabalho esportivo, ou retorno do atleta às atividades profissionais em outra organização esportiva, no prazo de até 30 (trinta) meses (inciso I); b) “cláusula compensatória esportiva”, devida pela organização que promova prática esportiva ao atleta, nas hipóteses de rescisão decorrente do inadimplemento salarial ou do contrato de direito de imagem a ele vinculado, de responsabilidade da organização esportiva empregadora, a rescisão indireta, nas demais hipóteses previstas na legislação trabalhista e a dispensa imotivada do atleta (inciso II) (in BELMONTE (org.) et al, 2024)6.
5. Os limites da supletividade da CLT diante da legislação desportiva
A decisão da 7ª Turma representa movimento de harmonização entre: (i) o caráter especial do contrato desportivo; (ii) a autonomia privada qualificada pela legislação desportiva; e (iii) a necessidade de evitar punições múltiplas decorrentes do mesmo fato.
Destarte, a prevalência do pactuado não enfraquece a tutela trabalhista; antes, reafirma o papel da legislação desportiva como microssistema jurídico dotado de especificidades estruturantes. A solução do TST impede que a normatividade geral da CLT seja aplicada de forma mecânica, deslocada do contexto contratual construído pelas partes.
6. Conclusão
O acórdão em análise constitui importante precedente sobre a eficácia do distrato no contrato especial de trabalho desportivo e sobre os limites da incidência supletiva da CLT. A decisão prestigia a racionalidade contratual, a especialidade normativa da Lei Pelé e o princípio da vedação ao bis in idem, consolidando a compreensão de que a regra contratual especial deve prevalecer sobre a regra geral trabalhista quando ambas disciplinam o mesmo evento danoso.
Referências
BELMONTE, Maria Cristina Capanema Thomaz; BELMONTE, Pedro Ivo Leão Ribeiro Agra; LUNDGREN, Pedro Capanema (Orgs.). Dano extrapatrimonial e outros estudos. 1. ed. Brasília, DF: Editora Venturoli, 2024.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (7ª Turma). Acórdão no Processo TST-Ag-AIRR-10880-57.2018.5.03.0181. Relator: Ministro Evandro Pereira Valadão Lopes. Julgado em 28 out. 2025. Publicado em 28 nov. 2025. Disponível em: https://jurisprudencia-backend2.tst.jus.br/rest/documentos/3528d79a039f1c0e7481691b7673acb9. Acesso em 2 dez. 2025.
MAGALHÃES, Humberto Piragibe; MALTA, Christovão Piragibe Tostes. Dicionário jurídico. 7. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1990.
MARTINS, Sergio Pinto. Direitos trabalhistas do atleta profissional de futebol. 3. ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2026.
LORENZETTI, Ari Pedro. A natureza das parcelas reflexas, bis in idem e a OJ 394 do TST/SDI-I. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região, Goiânia, ano 15, p. 31-39, 2012. Disponível em: https://revista.trt18.jus.br/index.php/revista/article/view/142. Acesso em 2 dez. 2025.
ZAINAGHI, Domingos. Os Atletas profissionais de futebol no direito do trabalho, 2ªed, São Paulo, LTr, 2018.
Notas
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (7ª Turma). Acórdão no Processo TST-Ag-AIRR-10880-57.2018.5.03.0181. Relator: Ministro Evandro Pereira Valadão Lopes. Julgado em 28 out. 2025. Publicado em 28 nov. 2025. Disponível em: https://jurisprudencia-backend2.tst.jus.br/rest/documentos/3528d79a039f1c0e7481691b7673acb9.
MARTINS, Sergio Pinto. Direitos trabalhistas do atleta profissional de futebol. 3. ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2026, p. 141.
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MAGALHÃES, Humberto Piragibe; MALTA, Christovão Piragibe Tostes. Dicionário jurídico. 7. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1990.
LORENZETTI, Ari Pedro. A natureza das parcelas reflexas, bis in idem e a OJ 394 do TST/SDI-I. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região, Goiânia, ano 15, p. 31-39, 2012. Disponível em: https://revista.trt18.jus.br/index.php/revista/article/view/142. Acesso em 2 dez. 2025.
ZAINAGHI, Domingos. Os Atletas profissionais de futebol no direito do trabalho, 2ªed, São Paulo, LTr, 2018, p. 58.
BRANDÃO, Cláudio. A controvérsia em torno da cláusula penal unilateral no pré-contrato especial de trabalho esportivo. In: BELMONTE, Maria Cristina Capanema Thomaz; BELMONTE, Pedro Ivo Leão Ribeiro Agra; LUNDGREN, Pedro Capanema (Orgs.). Dano extrapatrimonial e outros estudos. 1. ed. Brasília, DF: Editora Venturoli, 2024. p. 19-40.