Introdução
O ano de 2024 configurou-se como um ponto de inflexão crítico para a política ambiental brasileira, marcado por incêndios florestais de proporções catastróficas, especialmente no Pantanal e na Amazônia. A crise revelou-se como um evento de falha sistêmica, impulsionado por fatores climáticos, hidrológicos e de uso do solo, expondo de forma inequívoca a inadequação de um modelo de combate ao fogo essencialmente reativo e proibicionista. Diante desse cenário, o Estado brasileiro promoveu uma reestruturação profunda e multifacetada de sua governança do fogo.
Essa transformação materializou-se na criação de uma nova arquitetura legal e institucional entre 2024 e 2025. O eixo central dessa mudança foi a promulgação da Lei nº 14.944/2024, que instituiu a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (PNMIF). A norma representou uma mudança paradigmática ao reconhecer e regulamentar o uso controlado e prescrito do fogo como instrumento legítimo de prevenção, deslocando-o da lógica da proibição absoluta para a da gestão do risco ambiental.
Paralelamente à adoção dessa estratégia técnica, o Estado adotou um endurecimento sancionatório sem precedentes, estruturando uma resposta de tolerância zero aos crimes ambientais. Esse movimento foi articulado por meio de três eixos complementares. O primeiro consistiu na edição do Decreto nº 12.189/2024, que elevou exponencialmente o valor das multas aplicáveis a incêndios dolosos — fixadas em R$ 10.000,00 por hectare — e ampliou significativamente o poder de embargo de áreas. O segundo eixo foi inaugurado por decisão histórica do Supremo Tribunal Federal, que passou a admitir a desapropriação de imóveis rurais nos casos de crimes ambientais dolosos comprovados, vinculando de forma direta a preservação ambiental ao cumprimento da função social da propriedade. O terceiro eixo foi operacionalizado pela Advocacia-Geral da União, que desencadeou uma ofensiva para a cobrança de multas de elevado valor, utilizando o bloqueio de bens e o acesso ao crédito público como instrumentos de compliance forçado.
O primeiro ano de implementação da nova política, em 2025, concentrou-se na estruturação da governança e na regulamentação das obrigações diretas impostas aos proprietários rurais. Esse processo ocorreu, sobretudo, por meio da atuação do Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo (COMIF) e da edição da Resolução nº 3/2025, que passou a atribuir responsabilidade legal direta aos proprietários pela adoção de medidas preventivas, como a abertura de aceiros e a manutenção de equipes treinadas.
Os resultados iniciais mostraram-se estatisticamente relevantes. Em agosto de 2025, o Brasil registrou uma redução aproximada de 73% nos focos de queimadas em comparação com o mesmo mês do ano anterior. Apesar desse desempenho expressivo, a consolidação da nova arquitetura institucional depende da superação de desafios estruturais persistentes, notadamente a burocracia na implementação em nível estadual, a transição de um modelo de financiamento emergencial — sustentado por créditos extraordinários — para um orçamento regular e previsível, bem como a efetiva integração da sociedade civil e do setor privado na construção de uma nova cultura de manejo do fogo.
1. O Ponto de Inflexão: A Crise Climática e de Queimadas de 2024
A transformação da política de gestão do fogo no Brasil não pode ser compreendida sem a análise da crise que a catalisou. O ano de 2024 não foi um período de incêndios sazonais normais, mas um evento de colapso ambiental, recordes de queimadas já no primeiro semestre do ano, que funcionou como catalisador político e social para uma reforma legislativa e judicial de caráter emergencial.
No Pantanal, bioma caracterizado por áreas úmidas, a severa estiagem elevou significativamente o risco de incêndios descontrolados. Até 20 de outubro de 2024, a área queimada ultrapassou 2,5 milhões de hectares. Nos primeiros onze meses do ano, o aumento de focos no bioma foi de 139% em comparação com o mesmo período de 2023.
Na Amazônia, apenas no mês de agosto de 2024, cerca de 2,5 milhões de hectares foram atingidos pelo fogo. No acumulado até novembro, o número de focos apresentou aumento de 43,7% em relação ao ano anterior. Considerados em conjunto, Amazônia e Cerrado concentraram 86% de toda a área queimada no país em 2024.
A crise decorreu da interação entre fatores climáticos, hidrológicos e antrópicos, cuja combinação produziu um cenário de elevada vulnerabilidade ambiental.
No plano climático, o aquecimento global alterou o regime de chuvas, intensificando períodos de seca. Esse cenário foi agravado por fenômenos de grande escala, como o El Niño e o aquecimento anômalo do Oceano Atlântico, que contribuíram para a formação de condições favoráveis à propagação de incêndios de comportamento extremo.
No plano hidrológico, especialmente no Pantanal, a dinâmica do fogo foi influenciada não apenas pela escassez de chuvas, mas também pela gestão hídrica. A construção de múltiplas barragens nos rios que abastecem a bacia pantaneira alterou o pulso natural de inundação, resultando no ressecamento de áreas que historicamente funcionavam como barreiras naturais ao avanço do fogo.
Somaram-se a esses fatores os elementos antropogênicos associados às mudanças no uso do solo. A expansão do agronegócio e da pecuária aumentou a pressão sobre os biomas, promovendo a conversão de vegetação nativa em pastagens ou áreas de cultivo. Esse processo altera a inflamabilidade da paisagem e, frequentemente, mantém o fogo como método de “limpeza”, ampliando o risco de incêndios descontrolados.
Os impactos extrapolaram a dimensão ambiental. A destruição da biodiversidade e dos habitats foi acompanhada por uma crise de saúde pública, decorrente da dispersão de fumaça tóxica a longas distâncias, com aumento de problemas respiratórios e cardiovasculares. No plano econômico, os incêndios provocaram prejuízos logísticos, com interrupção de voos e fechamento de rodovias, além de perdas diretas para o agronegócio, em razão da destruição de plantações e pastagens.
A crise provou que a política de fogo é, intrinsecamente, uma política de gestão territorial integrada, pois o combate exclusivamente repressivo mostrou-se incapaz de responder à complexidade do problema. Assim, a emergência ambiental forneceu a justificativa de interesse público para a adoção de medidas rigorosas que, em contextos de normalidade política, dificilmente seriam implementadas.
2. A Resposta Legislativa: A Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (PNMIF)
A Lei nº 14.944, de 31 de julho de 2024, representou a mais significativa mudança na política ambiental brasileira em décadas, ao formalizar a transição de uma lógica de proibição total e combate reativo para uma abordagem de gerenciamento de risco e manejo integrado do fogo.
O modelo anterior, centrado predominantemente na repressão e no combate aos incêndios, mostrou-se insuficiente diante de um problema cujas causas estruturais — climáticas, hidrológicas e relacionadas ao uso do solo — extrapolam a capacidade de resposta meramente reativa do Estado.
A nova norma não se limitou à atualização de procedimentos, mas redefiniu os fundamentos da atuação estatal, reconhecendo a complexidade do fenômeno e a necessidade de integrar prevenção, mitigação de impactos e planejamento territorial.
Os objetivos centrais da lei organizam-se em três eixos: prevenir a ocorrência de incêndios florestais, reduzir os impactos dos incêndios e promover o uso controlado e prescrito do fogo. Este último elemento representa a principal inflexão conceitual introduzida pela política.
Ao reconhecer o uso controlado do fogo como instrumento legítimo de prevenção, a lei desloca o fogo da condição de prática intrinsecamente ilícita para a de atividade de risco passível de regulamentação e controle. A PNMIF incorpora o entendimento de que, em determinados biomas brasileiros, como o Cerrado, o fogo constitui elemento ecológico natural, e que a queima prescrita pode reduzir o acúmulo de biomassa e, consequentemente, a intensidade de incêndios de grandes proporções.
Essa abordagem já encontrava respaldo em experiências práticas. Relatos de campo indicavam que, em unidades de conservação onde o uso controlado do fogo passou a ser autorizado para atividades agropecuárias, os incêndios ilegais foram significativamente reduzidos. A PNMIF consolida essa prática ao incorporá-la formalmente ao ordenamento jurídico federal.
A Lei nº 14.944/2024 foi concebida para integrar-se de forma transversal ao sistema jurídico ambiental existente. A política não opera de maneira isolada, mas dialoga diretamente com marcos normativos estruturantes, ao promover alterações expressas no Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), na Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998) e na lei que define as competências do Ibama (Lei nº 7.735/1989).
Com isso, a PNMIF passa a influenciar instrumentos centrais do compliance ambiental, como os processos de licenciamento, os Planos de Recuperação de Áreas Degradadas (PRADs) e a própria responsabilização administrativa e penal por crimes ambientais. A política de manejo integrado do fogo torna-se, assim, elemento indissociável da governança ambiental como um todo.
Para viabilizar a implementação da nova política, a lei instituiu o Sistema Nacional de Manejo Integrado do Fogo, cuja instância central é o Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo. Sob a liderança do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, o comitê exerce função deliberativa e coordenadora, sendo responsável por traduzir os comandos legais em regulamentos e planos operacionais.
Essa estrutura de governança foi desenhada para articular a atuação dos diferentes níveis federativos e permitir a operacionalização da política em escala nacional, conforme detalhado nos capítulos subsequentes.
3. O Endurecimento do Regime Sancionatório: Uma Resposta Multifacetada
Paralelamente à instituição da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, o Estado brasileiro promoveu um endurecimento significativo do regime sancionatório ambiental. O reconhecimento de que parcela expressiva dos incêndios está associada a práticas criminosas, como grilagem de terras e desmatamento ilegal, levou à adoção de uma resposta multifacetada, combinando instrumentos do Executivo e do Judiciário.
Essa estratégia buscou atingir não apenas o ato ilícito em si, mas também os ativos e os incentivos econômicos envolvidos, estruturando uma resposta que atua simultaneamente sobre o custo do crime e sobre o benefício dele decorrente.
No auge da crise, foi editado o Decreto nº 12.189/2024, que alterou o Decreto nº 6.514/2008, responsável por disciplinar as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente. O objetivo central foi tornar economicamente proibitiva a prática de incêndios florestais.
O decreto manteve a multa de R$ 3.000,00 por hectare para a queimada não autorizada, prevista no art. 58. Contudo, instituiu um novo tipo infracional, o art. 58-A, que fixou multa de R$ 10.000,00 por hectare para quem provocar incêndio em floresta ou em qualquer forma de vegetação nativa. A distinção entre queimada e incêndio — entendido como fogo fora de controle — e o aumento expressivo do valor da penalidade visaram coibir condutas dolosas responsáveis por grandes desastres ambientais.
Além disso, o decreto ampliou o poder de polícia dos órgãos ambientais ao autorizar o embargo de obras ou atividades mesmo fora de áreas de preservação permanente ou de reserva legal, sempre que constatado desmatamento ou queima não autorizada de vegetação nativa. O embargo passou a cumprir a função de cessar o dano, impedir a obtenção de lucro com a infração e assegurar a recuperação da área degradada.
Para garantir a efetividade da medida, o decreto estabeleceu que o descumprimento do embargo pode gerar multas que alcançam o valor de até R$ 10.000.000,00.
Enquanto o Executivo elevava o custo econômico do crime ambiental, o Judiciário passou a incidir sobre o principal ativo envolvido: a terra. Em abril de 2025, no âmbito de ações que tratam do cumprimento de metas de combate ao desmatamento, o Supremo Tribunal Federal proferiu decisão autorizando a desapropriação de imóveis rurais nos casos de crimes ambientais dolosos comprovados.
A decisão permitiu que a União e os estados promovessem a desapropriação por interesse social de propriedades rurais em que se constate a responsabilidade do proprietário por incêndios dolosos ou desmatamento ilegal. A fundamentação apoiou-se na interpretação do princípio constitucional da função social da propriedade.
Tradicionalmente associado à produtividade da terra no contexto da reforma agrária, o conceito de função social passou a ser reinterpretado à luz da preservação ambiental. A decisão estabeleceu que o descumprimento do dever de preservação ambiental configura violação à função social, legitimando a perda da propriedade. Assim, a preservação ambiental foi alçada à condição de requisito essencial do direito de propriedade rural.
Além da possibilidade de desapropriação, a decisão autorizou o bloqueio do pagamento de indenizações a responsáveis por crimes ambientais dolosos. Com isso, o infrator passou a enfrentar não apenas multas elevadas, mas também o risco concreto de perda do imóvel utilizado para a prática ilícita.
Num movimento de pinça, o Decreto nº 12.189/2024 compromete a viabilidade econômica da infração, enquanto a decisão do STF elimina o benefício patrimonial.
Tabela 2: Matriz da Nova Arquitetura Jurídica e Sancionatória (2024–2025)
Instrumento Legal |
Poder |
Ação Principal |
Implicação-Chave (A "Medida Rigorosa") |
Lei nº 14.944/2024 |
Legislativo |
Institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (PNMIF). |
Estabelece o "Manejo Integrado" e o "uso prescrito do fogo" como política oficial. |
Decreto nº 12.189/2024 |
Executivo |
Altera o Decreto de Infrações Ambientais (nº 6.514/2008). |
Eleva a multa para R$ 10.000,00/ha por incêndio doloso (Art. 58-A); expande o poder de embargo. |
Decisão STF (ADPF 760, etc.) |
Judiciário |
Interpreta a Constituição Federal (Função Social da Propriedade). |
Autoriza a desapropriação de imóveis rurais com crimes ambientais dolosos comprovados. |
Ações da AGU (Pronaclima) |
Executivo (Advocacia) |
Ações de Execução Fiscal e Ações Civis Públicas. |
Cobrança de multas milionárias (ex: R$ 725M) e bloqueio de acesso a crédito público para infratores. |
Resolução COMIF nº 3/2025 |
Executivo (Regulatório) |
Regulamenta a PNMIF (Art. 2º). |
Impõe obrigações preventivas diretas (aceiros, equipes, planos) a todos os imóveis rurais. |
4. A Estruturação da Implementação: Balanço do Primeiro Ano (2025)
Com a PNMIF em vigor e o regime sancionatório endurecido, o ano de 2025 concentrou-se na construção da governança, na regulamentação das obrigações impostas ao setor privado e na correção de gargalos operacionais históricos. O foco deslocou-se da resposta emergencial para a operacionalização do novo arcabouço legal.
Esse período foi marcado pela criação de instâncias de coordenação, pela edição de normas infralegais e pelo enfrentamento de limitações administrativas que comprometiam a execução da política de manejo integrado do fogo.
A implementação da PNMIF é coordenada pelo COMIF, sob liderança do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, com participação interministerial e da sociedade civil. No primeiro ano de funcionamento, o comitê concentrou esforços na estruturação de sua atuação.
Foram instituídos cinco grupos de trabalho e criada a Câmara Técnica de Articulação Interfederativa, com o objetivo de coordenar a implementação da política entre União, estados e municípios. A prioridade inicial foi a produção de normas e diretrizes capazes de traduzir os comandos legais da PNMIF em instrumentos operacionais.
Nesse contexto, destaca-se a edição de resolução publicada em março de 2025, que definiu as diretrizes para a elaboração dos Planos de Manejo Integrado do Fogo (PMIFs). Esses planos passaram a constituir os documentos centrais de planejamento territorial, orientando a realização de queimas prescritas e a adoção de medidas preventivas de forma organizada e tecnicamente orientada.
A norma de maior impacto direto sobre os proprietários rurais foi a Resolução COMIF nº 3, de 6 de agosto de 2025. O ato estabeleceu parâmetros mínimos aplicáveis em todo o território nacional para a implementação de medidas preventivas contra incêndios florestais em imóveis rurais.
A resolução atribuiu responsabilidade legal direta ao proprietário, transferindo para a esfera privada a obrigação de adotar medidas de prevenção. Entre as exigências previstas, destacam-se a proibição do uso do fogo sem autorização formal, a confecção de aceiros, a submissão da queima prescrita ou controlada à orientação técnica e à autorização do órgão ambiental, bem como a manutenção de quantidade mínima de equipamentos e de pessoal treinado para ações preventivas.
Com essa regulamentação, a omissão na adoção das medidas previstas passou a agravar significativamente a responsabilidade do proprietário nos âmbitos civil, administrativo e penal. A ausência de comprovação das ações preventivas deixou de caracterizar mera falha operacional, passando a configurar descumprimento de norma regulatória específica.
Reconhecendo os custos associados à implementação das exigências, a resolução previu a possibilidade de compartilhamento de equipamentos e equipes entre imóveis rurais vizinhos, associações, cooperativas e sindicatos de produtores. Essa previsão buscou viabilizar economicamente o cumprimento das obrigações, especialmente por pequenos e médios produtores, ao mesmo tempo em que fortaleceu arranjos de governança local.
Um dos principais gargalos históricos da política de combate a incêndios no Brasil residia na legislação de contratação temporária de brigadistas. A Lei nº 8.745/1993 impunha um interstício que obrigava a dispensa de brigadistas experientes ao final de cada temporada, resultando em perda recorrente de conhecimento técnico acumulado.
A implementação da PNMIF, ao exigir mão de obra qualificada não apenas para o combate, mas também para o manejo técnico do fogo, tornou indispensável a superação desse entrave. Em resposta, a legislação reduziu o interstício para a recontratação de brigadistas, permitindo a manutenção de equipes especializadas no Ibama e no ICMBio.
Essa alteração legislativa foi complementada por uma decisão do STF que flexibilizou normas para a contratação emergencial de brigadistas diante da emergência climática. A conjugação dessas medidas corrigiu um obstáculo estrutural relevante, viabilizando a execução efetiva da nova política de manejo integrado do fogo.