Tradução de Júlio da Silveira Moreira, Advogado, Pós-graduando na Universidade Federal de Goiás (UFG), Vice-presidente da Associação Internacional dos Advogados do Povo (International Association of People´s Lawyers - IAPL), com sede em Ultrecht, Holanda.
No seu discurso em 30/06/2008, sobre o assunto de nosso Seminário nesta manhã, nosso palestrante principal, Ministro Reynato S. Puno [01], observou que "os pobres reclamam que o campo de operações de nosso sistema de justiça está inclinado contra eles". Ele atribuiu essa queixa a várias razões, uma das quais é que os juízes "decidem os casos sem considerar seu contexto social". Permitam-me adicionar minha parte a essa aguda observação, dizendo afirmativamente que essa queixa é verdadeira e inquestionavelmente embasada nos dados empíricos e na experiência. Isso é verdadeiro particularmente na luta dos filipinos pobres contra a injustiça econômica, social e cultural.
Meu tema nesse Seminário é definir a estrutura dessa luta pelas perspectivas e aspirações dos pobres oprimidos e explorados sob a ordem econômica, social e cultural dominante, ou, mais apropriadamente desordem, para tomar emprestada a terminologia dos analistas políticos. Para começar, eu gostaria de deixar claro, que como os outros conferencistas, eu estou agudamente de acordo com as limitações do poder de regulamentação da Suprema Corte para alargar o acesso dos pobres ao nosso sistema de justiça. Mas, ao mesmo tempo, penso que podemos agora concordar que nossas discussões e propostas não podem ser confinadas a assuntos procedimentais e remédios. E para alcançar o que eu considero como nosso objetivo mínimo de identificar as barreiras ao acesso dos pobres à justiça e suas causas e soluções, podemos estabelecer a boa distinção e juntar matérias procedimentais e substantivas. De fato, nossas teses deveriam fazer todos os três segmentos do governo sob o sistema tripartite trabalharem juntos para resolver esse problema fundamental de inadequado e, na maioria das vezes, ausente acesso dos pobres para reparar injustiças cometidas contra eles pelos ricos e poderosos.
Todos nós sabemos que vivemos e sofremos numa sociedade estratificada e sob um governo que é dominado por uma elite minúscula. Essa elite tem o monopólio do poder político e recursos econômicos com que usam e até mesmo abusam para inclinar as balanças da justiça a seu favor. Nós temos uma longa história de luta anti-colonial e neo-colonial contra a dominação estrangeira, particularmente contra os Estados Unidos, corporações transnacionais e instituições multilaterais cujos meios e mecanismos de controle estão se tornando cada vez mais sofisticados e efetivos.
Nós somos favorecidos por ricos recursos naturais, mas milhões de filipinos estão lançados na profunda e generalizada pobreza sob um sistema caracterizado por uma economia agrária e pré-industrial retrógrada, que serve aos estreitos interesses das elites estrangeiras e locais. Não nos tem sido permitido desenvolver como um povo e definir nosso próprio futuro. Uma impressionante maioria de nosso povo continua com seus direitos cassados e vitimizadas por abusos, opressão e exploração contra os direitos humanos. Nossas eleições são uma farsa em que ao povo é dada a ilusão de estar participando em um significativo processo. Na realidade, não lhe estão oferecendo escolhas reais em termos de adotar um programa de governo a favor da população pobre e dos filipinos, e de escolher líderes que irão representar seus interesses genuínos. Nosso eleitorado está sendo enganado, ensinado e induzido a vender seus votos, trapaceado, intimidado e algumas vezes assassinado. Temos elegido diferentes frações da elite filipina em alternância de poder em um círculo vicioso de auto-interesse, acomodação mútua, promoção pessoal e de lealdades políticas e construção de dinastias. O resultado é um governo perenemente incapaz de prover as mais básicas necessidades dos pobres em matéria de saúde, educação, previdência e obtenção dos meios de vida.
Eu me aventuro a vislumbrar que, em resumo, que este é o contexto social sugerido pelo Ministro Puno ao expor os problemas do judiciário e a variedade de razões pelas quais a justiça e a equidade para os pobres na verdade continuam sendo "um ideal distante da realidade das suas vidas diárias". Eu respeitosamente apresento o que os tribunais, aos advogados e responsáveis por políticas públicas deveriam ter como seu princípio guia o contexto social pré-estabelecido nos seguintes casos e conflitos envolvendo os pobres:
1. Os camponeses em sua luta por reforma agrária genuína e sua batalha legal contra a grilagem e os despejos em nome do desenvolvimento assim chamado por grileiros mascarados de proprietários empreendedores;
2. Os operários em sua luta por salários e condições de trabalho decentes e por organizar sindicatos e associações que os dê força e representem seus interesses genuínos;
3. Os pobres da cidade e ocupantes informais, tantas vezes chamados com desprezo de "invasores", na defesa de seu direito contra os despejos sumários e por adequados locais de realocação, moradia e sobrevivência;
4. Os trabalhadores migrantes, na defesa de seus direitos humanos sob a legislação nacional e internacional no país de destino e em sua luta contra a apatia e crueldade de seus próprios governos com os problemas dos migrantes e de seus familiares na terra natal;
5. As populações de pequenos pescadores em sua luta para defender suas bases de pesca contra as intromissões de magnatas da pesca locais e estrangeiros;
6. Os povos indígenas na defesa de seus domínios ancestrais contra grileiros e companhias mineradoras locais e estrangeiras;
7. Vítimas políticas de violações aos direitos humanos, civis e políticos, tais como assassinatos extra-judiciais, desaparecimentos involuntários, tortura, prisões ilegais e detenções arbitrárias cometidas pelo Estado por meio de suas forças policial, militar e paramilitar; e
8. O povo em geral em assuntos jurídicos como proteção ambiental e direitos dos consumidores.
Há quase uma unanimidade nas doenças que afligem nosso sistema judicial e os problemas dos pobres marginalizados em ter acesso a esse sistema para fortalecer ou defender seus direitos econômicos, sociais e culturais. Eu concordo plenamente com o Ministro Puno em que os seguintes são problemas aparentemente insuperáveis esperando por soluções imediatas a curto prazo: "falta de conhecimento sobre seus próprios direitos, falta de meios para lutar por seus direitos, custo exorbitante da justiça, representação legal ausente ou não efetiva, atrasos na distribuição da justiça, procedimentos legais complexos e incompreensíveis, leis anti-pobres, juízes que decidem casos sem considerar o contexto social, etc." Com o devido respeito, devo adicionar a esta lista três maiores fraquezas e vulnerabilidades que impregnam e continuam se deteriorando em nossos tribunais e entre os juízes hoje. São elas: (1) suborno e corrupção; (2) pressões indevidas, políticas e sob outras formas; e (3) nossa cultura de pakiki-sama e utang na loob [02].
Para ser justo, as vítimas dessas aflições judiciais são geralmente os pobres sem defesa – aqueles que pertencem a setores marginalizados que eu acabei de mencionar, que são forçados a ir ao tribunal ou para defender ou para afirmar seus direitos econômicos, sociais e culturais contra terríveis adversários que possuem meios ilimitados e o total respaldo do governo, incluindo os militares, polícia, agentes locais e exércitos privados.
Eu acredito que há duas formas de resolver as diversificadas barreiras que impedem o acesso dos pobres à justiça. Uma é considerar simples medidas e remédios que são plausíveis a curto prazo. Julgando pelas contribuições do primeiro seminário e este de agora, as propostas concretas foram amplas porque estão ancoradas na experiência real. A outra forma de resolver essas barreiras é examinar cientificamente as raízes que afligem não apenas o sistema de justiça mas, com maior importância, toda a sociedade filipina. Penso que ninguém irá discordar com a proposição de que nossos problemas nos segmentos judiciário, legislativo e executivo, e no restante de nossas instituições e processos, são inextricavelmente entrelaçados e irão desprezar soluções duradouras, a menos que nós desmanchemos a injusta ordem social e econômica dominante e estabeleçamos uma nação verdadeiramente livre, democrática e soberana. E esta é a razão porque, como parte conclusiva de minha breve apresentação, eu tenho apenas uma proposta concreta que não é apenas processual e substantiva, mas também fundamental e estrutural. Com a sua permissão, Honorável Ministro, colegas e amigos, sem soar sarcástico ou cético, porque eu vou até vocês com mãos limpas e absoluta sinceridade. Permitam-me propor neste seminário a adoção e promulgação, não apenas pela Suprema Corte, mas por nosso povo, do que eu chamo Writ de Andrés Bonifácio [03].
Notas
- Ministro da Suprema Corte das Filipinas.
- "Pakiki-sama" é o equivalente no português a "Maria vai com as outras"; concordar com uma opinião por razões de proximidade pessoal ou de amizade, ou temendo pressão social. "Utang na loob" quer dizer dívida de gratidão, o equivalente no português a "dever favores" (N.T).
- O autor faz um jogo com a palavra Writ, como remédio constitucional, recordando o papel do Writ de Habeas Corpus no contexto da Revolução Francesa e outros processos de revoluções burguesas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Andrés Bonifácio é um herói filipino que conduziu a luta anti-colonial contra os colonizadores espanhóis e pelos direitos fundamentais nos anos de 1880 (N.T.).