6. Adoção Homoparental
A adoção por homossexual, como foi adiantado no início deste trabalho, já encontra guarita na jurisprudência brasileira. Exemplo disso foi o caso no qual o Ministério Público interpôs a Apelação Cível Nº 1998.001.14332, insurgindo-se contra a adoção de um menor, na época, com dez anos, por um professor que se declarara homossexual. Aquele, ao ser ouvido, demonstrou estar satisfeito no novo núcleo familiar, ao contrário do que ocorria enquanto morava com os pais biológicos, que o abandonaram. Ainda, segundo o adotado, era tratado pelo pai adotivo com decoro, respeito aos bons costumes e à moral. Por unanimidade, a decisão negou provimento ao recurso.
"Adoção cumulada com destituição do pátrio poder. Alegação de ser homossexual o adotante. Deferimento do pedido. Recurso do Ministério Público
1. Havendo os pareceres de apoio (psicológico e de estudos sociais), considerando que o adotado, agora com dez anos, sente agora orgulho de ter um pai e uma família, já que abandonado pelos genitores com um ano de idade, atende a adoção aos objetivos preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e desejados por toda a sociedade. 2. Sendo o adotante professor de ciências de colégios religiosos, cujos padrões de conduta são rigidamente observados, e inexistindo óbice outro, também é a adoção, a ele entregue, fator de formação moral, cultural e espiritual do adotado. 3. A afirmação de homossexualidade do adotante, preferência individual constitucionalmente garantida, não pode servir de empecilho à adoção de menor, se não demonstrada ou provada qualquer manifestação ofensiva ao decoro, e capaz de deformar o caráter do adotado, por mestre a cuja atuação é também entregue a formação moral e cultural de muitos outros jovens. Votação:Unânime Resultado: Apelo improvido TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Acórdão: Apelação Cível – Processo 1998.001.14332 Relator: Desembargador Jorge Magalhães Julgamento: 23.03.1999 – Nona Câmara Cível".
Isso é fato, visto que o artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que podem adotar os maiores de vinte e um anos (leia-se dezoito anos), independentemente de estado civil. Além disso, o Código Civil, no seu artigo 1.618, institui que "só pode se qualificar como adotante pessoa maior de dezoito anos". Logo, deduz-se que qualquer pessoa que preencha os requisitos impostos pelo ECA e pelo Código Civil pode adotar.
Assim, seria inconstitucional levar em conta a opção sexual do adotante como requisito abonador ou desabonador no processo de adoção. Trata-se de questão de foro íntimo e sua invasão iria de encontro ao direito à intimidade, previsto na Carta Magna (artigo 5º) como direito individual. Além disso, seria infligir o preceito constitucional que veda preconceitos "em razão de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (artigo 3º, IV, parte final, CF).
Contudo, a chamada "homoparentalidade", adoção por par homossexual, ainda não encontra guarita na jurisprudência mansa e pacífica. As opiniões acerca do tema divergem e há até movimentos religiosos imbuídos no sentido de proibi-las. É o preconceito enraizado na cultura brasileira, colocando a intimidade sexual do adotante acima dos seus valores morais, éticos e afetivos. Essa prática é vedada na Constituição Federal no seu art. 3º, inciso IV. Logo, não pode ser utilizada como paradigma na decisão que envolve a adoção por par homoafetivo.
Além do mais, é descabido o pensamento que (ainda!) têm algumas pessoas: criança criada em lar de homoafetivos tornar-se-á homossexual. Basta ler acerca de estudos científicos feitos com homossexuais e com heterossexuais, a exemplo da Harvard Law Review, que confirma que "a prole de homossexuais não está mais propensa a sentir desejo pelo mesmo sexo, com a natural convivência." (Harvard Law Review, apud SILVA JÚNIOR, 2008, p.143).
Segundo entendimento do Professor Enézio de Deus Silva Júnior (2008, p.143), os juízes podem encontrar fundamentação científica favorável à adoção por hono e bissexuais, além dos estudos feitos aqui no Brasil, também nos dados e conclusões apresentados pela Universidade de Harvard, em 1990.
Ainda de acordo com o Harvard Law Review apud Enésio de Deus, não procede o entendimento de que a violência sexual sofrida por crianças e adolescentes se faz mais presente em famílias homossexuais. Ao contrário, "95% dos casos de abusos provém de convivência com heterossexuais" (SILVA JÚNIOR, 2008, p. 143)
Conclui-se, pois, que o fato de alguns terem sido criados por casais ou por alguém que tenha preferência pelo mesmo sexo, não foi determinante para a opção sexual, tampouco colocou essas crianças e adolescentes numa situação de maior risco de sofrerem abuso sexual
A Professora Maria Berenice traz, no seu artigo [04], a possibilidade de analogia entre adoção entre casais [sic] homoafetivos e a união estável. Segundo ela, se o ordenamento jurídico brasileiro possibilita, além do casamento civil, a união estável, analogicamente, um par homoafetivo tem a mesma possibilidade de adotar uma criança que um casal heteroafetivo. Pelo entendimento dela:
"Negar a realidade, não reconhecer direitos só tem uma triste seqüela: os filhos são deixados a mercê da sorte, sem qualquer proteção jurídica. Livrar os pais da responsabilidade pela guarda, educação e sustento da criança é deixá-la em total desamparo. Há que reconhecer como atual e adequada a observação de Clovis Bevilaqua ao visualizar um misto de cinismo e de iniqüidade, chamando de absurda e injusta a regra do Código Civil de 1916 que negava reconhecimento aos filhos adulterinos e incestuosos." (DIAS, 2003, p. 269/275
7. O Registro do Adotado
A Lei 6.015 de 1973, Lei dos Registros Públicos, regula os registros de brasileiros. Nela, nenhuma exigência formal obsta que uma pessoa seja registrada com dois pais ou duas mães. Da mesma forma, o ECA apenas prevê no artigo 47 que:
"O vínculo de adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil, mediante mandado do qual não se fornecerá certidão.
§ 1º A inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome dos seus ascendentes"
Não há, portanto qualquer discriminação com relação à sexualidade biológica dos adotantes e, sendo adotada por par homoafetivo masculino ou feminino, a criança ou o adolescente terá seu registro civil elaborado de acordo com os requisitos habituais, já que não há qualquer vedação na legislação que impeça de constarem como pais ou mães duas pessoas do mesmo sexo. Esse entendimento ficou decidido inequivocamente pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no aresto transcrito abaixo na Apelação Cível n.o 70013801592.
Para evitar qualquer constrangimento sem, contudo, deixar de refletir a realidade familiar socioafetiva na qual os adotados estão inseridos, o juiz Marcos Danúbio Edon Franco determinou, na sentença, que o registro de nascimento das crianças adotadas por pessoa do mesmo sexo conste que são filhas de L.R.M. e Li.M.B.G., omitindo-lhes a condição de pai ou de mãe.
Vale registrar, que o recurso da apelação foi utilizado para recorrer da sentença prolatada pelo magistrado. Veja que, por unanimidade, foi mantida a decisão do magistrado Marcos Danilo Edon Franco:
"APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME." (APELAÇÃO CÍVEL SÉTIMA CÂMARA CÍVEL Nº 70013801592 COMARCA DE BAGÉ - DESA. MARIA BERENICE DIAS - Presidente - Apelação Cível nº 70013801592, Comarca de Bagé: "NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME." Julgador(a) de 1º Grau: MARCOS DANILO EDON FRANCO)
Na mesma linha, o Professor Enézio de Deus Silva Júnior entende que "a existência de um registro de nascimento, no qual constem os nomes de dois homens ou de duas mulheres pode se opor aos costumes, mas não ao ordenamento positivo pátrio."(SILVA JÚNIOR, 2008, p. 142)
Ratifica tal entendimento fatos jurídicos como o que ocorreu com Theodora Rafaela Carvalho da Gama, uma menina que, aos cinco anos de idade, no dia 17 de novembro de 2006, foi registrada no município e comarca de Catanduva, estado de São Paulo, pelos cabeleireiros Vasco Pedro da Gama, 35 anos, e Júnior de Carvalho, 43 anos.
Após um ano requerendo a adoção da menor, finalmente eles conseguiram que, numa decisão inédita da Justiça brasileira, constasse na Certidão de Nascimento os nomes dos dois pais, sendo que a palavra "pai" foi suprimida. Da mesma forma, os nomes dos avós foram colocados no referido documento sem a referência de "avós paternos" ou de "avós maternos". Apenas avós, apenas "filha de Vasco Pedro da Gama e de Júnior de Carvalho".
Não foi preciso mais que isso para que a menina que passara seus primeiros quatro anos de vida sem um lar, sem uma família, passasse a ter legalmente reconhecidos dois pais amorosos e dedicados.
8. Considerações Finais
Diante das evidentes modificações ocorridas na família brasileira em meio às efêmeras características do mundo globalizado, a pluralidade de núcleos familiares diversos dos que estão explícitos no ordenamento jurídico pátrio é um fato que o legislador não pode continuar ignorando.
Assim, não reconhecer as novas famílias formadas, é negar a proteção jurídica do Estado, o que vai de encontro à Constituição Federal de 1988, que trouxe como princípio basilar a dignidade da pessoa humana e que veda qualquer tipo de discriminação. Nesse contexto, as famílias formadas por duas pessoas do mesmo sexo, que constituem uma relação de convivência afetiva contínua, duradoura e notória, têm o direito à proteção legal dada à família formada pelo casamento civil, pela união estável ou, ainda, por um dos genitores e seus descendentes.
Dessa forma, analogicamente, pode-se atribuir à família homoafetiva o mesmo tratamento jurídico dado à união estável, com direitos e deveres idênticos a esta. No atual momento histórico-sócio-cultural, um dos direitos mais reclamados pelos homossesuais masculinos e femininos que convivem em núcleo familiar com seus pares é o direito à adoção.
Importante ressaltar que não se trata da adoção por uma pessoa, mas por duas pessoas do mesmo sexo que desejam adotar criança ou adolescente e, além disso, reúnem todos os requisitos legais necessários. Como comprovado no decorrer deste trabalho, nada justifica que esses pares homoafetivos sejam impedidos de exercer a maternidade ou a paternidade, contraindo todos os direitos e deveres provenientes da relação familiar com o filho afetivo.
Enquanto permanece o silêncio do legislador no que se refere a esse fato, a parte mais conservadora da sociedade ainda reage de forma preconceituosa, acreditando que, se criada por homossexual, a criança também terá desejo por pessoa do mesmo sexo. Pior ainda: há os que defendem que, num lar homoafetivo, o adotado será abusado sexualmente pelos pais ou pelas mães adotivas.
Contrariando esse entendimento, estudos científicos e relatórios feitos em todo o mundo revelam que esses paradigmas estão totalmente equivocados e que não procedem.
Felizmente, a jurisprudência pátria tem começado a se mostrar sensível à necessidade do reconhecimento do direito da adoção homoparental e, conforme exposto no corpo deste trabalho, já passa a conceder à família formada por pessoas do mesmo sexo o direito à adoção. Nesses casos, as crianças e adolescentes adotados saem da condição de órfãs e passam ao seio de famílias que as escolheram para amar e proteger, tomando para si os deveres que os pais biológicos, por algum motivo, recusaram ou não puderam honrar.
Por último, parece oportuno que fique registrado o entendimento de Rodrigo da Cunha Pereira, que afirma: "O pai é muito mais importante como função social do que como genitor" (1997, p.131). Esse conceito de paternidade e de maternidade socioafetiva, introduzido recentemente na legislação do Brasil, deixa claro que o amor, a solidariedade, o cuidado e o respeito com a prole são mais relevantes para o bom desenvolvimento da criança e do adolescente que o aspecto puramente biológico.
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Notas
- DIAS, Maria Berenice. Politicamente correto. Disponível em http://www.consciencia.net/2003/06/07/homoafeto.html. Acesso em 19 set. 2008.
- Segundo Aurélio Buarque de Holanda, casal é "par composto de macho e fêmea ou homem e mulher".
- CFEMEA - Centro feminista de Estudos e Acessória.Lei Maria da Penha: do papel para a vida.Comentários à Lei 11.340/2006 e sua inclusão no ciclo orçamentário. Disponível em <http://www.cfemea.org.br/pdf/leimariadapenhadopapelparaavida.pdf > Acesso 08 out. 2008.
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