Artigo Destaque dos editores

O controle de constitucionalidade do direito estadual e municipal na Constituição Federal

Exibindo página 1 de 5
01/08/2000 às 00:00
Leia nesta página:

Sumário: 1. Considerações Preliminares. 2. O Controle de Constitucionalidade da Lei Estadual e Municipal no Âmbito do Estado-Membro e a Jurisdição Constitucional Federal. 2.1. Necessidade de Autorização Constitucional. 2.2. Coexistência de Jurisdições Constitucionais Estaduais e Federal. 2.3. Concorrência de Parâmetros de Controle. 3. Parâmetro de Controle Estadual e Questão Federal. 3.1. Considerações Preliminares. 3.2. Parâmetro de Controle Estadual e Questão Constitucional Federal. 3.3. Recurso Extraordinário e Norma de Reprodução Obrigatória. 4. Ação Declaratória de Constitucionalidade no Âmbito Estadual. 5. O Controle da Omissão Legislativa no Plano Estadual. 6. O Controle de Constitucionalidade no Âmbito do Distrito Federal. 6.1. Considerações Preliminares. 6.2. A Possibilidade de Instituição de Ação Direta no Âmbito do Distrito Federal. 7. Eficácia Erga Omnes das Decisões Proferidas em Sede de Controle Abstrato no Âmbito Estadual. 7.1. Considerações Preliminares. 7.2. Processo Objetivo e Eficácia erga omnes. 8. Incidente de Inconstitucionalidade e Controle Direto do Direito Municipal perante o Supremo Tribunal Federal.


1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

O texto constitucional de 1988 contemplou expressamente a questão relativa ao controle abstrato de normas da lei estadual e municipal em face da Constituição, consagrando no art. 125, § 2º que compete "ao Estado a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da constituição estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão".

Todas as Constituições estaduais, sem exceção, disciplinaram o instituto, com maior ou menor legitimação.

Algumas unidades federadas não se limitaram, porém, a consagrar o controle abstrato de normas dos atos normativos estaduais e municipais em face da Constituição estadual, instituindo, igualmente, a ação direta por omissão.

A ausência de menção expressa ao Distrito Federal, no art. 125, § 2º, tem dado ensejo a certa insegurança jurídica quanto ao controle de constitucionalidade do direito distrital em face da Lei Orgânica.

A instituição da ação declaratória de constitucionalidade no plano federal (Emenda nº 3/1993) introduz a indagação sobre a possibilidade de adoção desse novo instrumento no âmbito estadual.

Há outras questões não menos importantes.

Indaga-se, v.g., sobre os efeitos das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça com base em normas constitucionais estaduais cuja reprodução é expressamente exigida ou determinada pelo constituinte federal. Pergunta-se sobre o cabimento do recurso extraordinário contra decisão proferida pelo Tribunal estadual em sede de ação direta.


          2. O Controle de Constitucionalidade da Lei Estadual e Municipal no âmbito do Estado-membro e a Jurisdição Constitucional Federal

          2.1 Necessidade de autorização constitucional

A controvérsia sobre a admissibilidade do controle de constitucionalidade da lei municipal suscita, como ressaltado, inevitável indagação quanto à possibilidade de criação, na esfera estadual, de uma autêntica jurisdição constitucional (Landesverfassungsgerichtsbarkeit).

Não é preciso dizer que, no estado federativo, a criação de órgãos destinados a exercer a jurisdição constitucional não se há de fundar, exclusivamente, na eventual existência de paradigma no âmbito do Poder Central. Cuidando de uma tarefa peculiar, faz-se mister que o constituinte reconheça aos entes federados o poder para instituir órgãos de defesa da Constituição. É o que ensina, com precisão, Ernst Friesenhahn, na seguinte passagem:

"Constitui tarefa da jurisdição constitucional garantir, nos diferentes processos, uma defesa institucional autônoma da Constituição. A jurisdição constitucional distingue-se de outros tipos de jurisdição mediante uma peculiar relação com o texto constitucional. E, por isso, ocupa lugar de destaque na organização estatal concebida pela Constituição. Os Tribunais constitucionais são considerados entre os chamados ´órgãos constitucionais´(Verfassungsorgane).

No estado federal, somente pode existir jurisdição constitucional no âmbito do Estado-membro se a Constituição Federal assegura às unidades federadas não só a liberdade para criar, por sua própria deliberação, constituições autônomas, mas também o poder para regular, especificamente, a defesa judicial de sua Constituição".

A lição do emérito jurista explicita, com clareza, a problemática da jurisdição constitucional, no âmbito da unidade federada. A invocação do paradigma federal não se afigura suficiente para legitimar a criação de Cortes Constitucionais, nos limites do Estado-Membro. Não basta, igualmente, a outorga do poder constituinte decorrente. Faz-se mister que se reconheça o poder de disciplinar a defesa judicial de sua Lei Maior.

A Constituição alemã contempla, expressamente, a possibilidade de se instituir a jurisdição constitucional no plano estadual, como se depreende da leitura do preceituado nos arts. 93, par. 1º, nº 4 e 4b, 99, e 100, § 1º. E o Bundesverfassungsgericht, em uma de suas primeiras decisões, afirmou a compatibilidade da jurisdição constitucional estadual com os princípios insculpidos na Lei Fundamental:

"Em um Estado marcadamente federativo, como a República Federal da Alemanha, os planos constitucionais da União e dos Estados estão, fundamentalmente, situados um ao lado do outro. A Lei Fundamental contém poucas disposições que devem ser incorporadas pelas Cartas estaduais. No mais, podem os Estados emprestar a conformação desejada ao seu Direito Constitucional e, com isso, à sua jurisdição constitucional".

Efetivamente, todos os Länder da antiga República Federal da Alemanha, com exceção de Schleswig-Holstein, instituíram a jurisdição constitucional de forma diferenciada.

          2.2 Coexistência de jurisdições constitucionais estaduais e federal

A amplitude da jurisdição constitucional no Estado federal suscita inúmeras questões. A inexistência de regras de colisão – como é o caso da Alemanha e do Brasil – enseja insegurança, em determinadas situações, quanto à competência da jurisdição estadual ou federal.

Como os atos do poder estadual estão submetidos às jurisdições constitucionais estaduais e federal, torna-se evidente, em certos casos, a concorrência de competências, afigurando-se possível submeter uma questão tanto à Corte estadual quanto ao Bundesverfassungsgericht, nos casos de dupla ofensa.

Todavia, como enunciado, os parâmetros para o exercício do controle de constitucionalidade pelo Bundesverfassungsgericht hão de ser, fundamentalmente, a Constituição e as leis federais. Da mesma forma, parâmetro para o controle de constitucionalidade exercido por um Landesverfassungsgericht é a Constituição estadual, e não a Lei Fundamental ou as leis federais.

Situação semelhante verifica-se ente nós. O parâmetro de controle do juízo abstrato perante o Supremo Tribunal Federal haverá de ser apenas a Constituição Federal. Já o parâmetro de controle abstrato de normas perante o Tribunal de Justiça estadual será apenas e tão-somente a Constituição estadual.

Tais afirmações não logram afastar toda a problemática que envolve o tema. Observe-se que a Lei Fundamental outorga uma ampla competência à União (arts. 73, 74, 74a, 75, 104a, 105 e 107). Algumas disposições contidas na Lei Fundamental, como as que disciplinam os direitos fundamentais, integram, obrigatoriamente, o direito estadual.

Não obstante a existência de esferas normativas diferenciadas, afigura-se legítima a conclusão de Pestalozza, segundo a qual a existência das jurisdições estaduais e federal outorga ao lesado uma dupla proteção, seja quando o ato se afigure incompatível com disposições federais e estaduais materialmente diversas, seja quando malfira preceitos concordantes da Constituição Federal ou da Carta estadual.

Ademais, a ampla autonomia de que gozam os Estados-Membros em alguns modelos federativos milita em favor da concorrência de jurisdições constitucionais.

Portanto, uma mesma lei estadual pode ser compatível com a Lei Maior e incompatível com a Carta estadual. Daí abster-se o Bundesverfassungsgericht de se pronunciar sobre a validade da lei estadual, limitando-se a declarar a sua compatibilidade com a Lei Fundamental ou com o direito federal. E, às objeções quanto à inexistência de objeto no controle de constitucionalidade em face da Lei Fundamental, no caso de inconstitucionalidade diante da Carta estadual, responde Friesenhahn, com proficiência:

"Tal restrição não leva em conta que, no Direito Constitucional, há que se distinguir o juízo sobre a validade da competência para apreciar essa validade ou declarar a invalidade" (Dieser Einwand übersieht, dass im Verfassungsrecht zu unterscheiden ist, ob materiell eine Norm ungültig ist und wer befugt ist, die Gültigkeit zu prüfen und die Ungültigkeit geltend zu machen).

Não se deve olvidar, outrossim, que pronunciamento genérico de Corte estadual quanto à inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal, em face do Texto Magno, pareceria totalmente incompatível com o exercício do controle concentrado de constitucionalidade pela Corte Constitucional Federal.

Esta questão foi suscitada, entre nós, pelo eminente Ministro Moreira Alves, no RE 92.169-SP (Rel. Min. Cunha Peixoto), ressaltando que:

"(...) se fosse possível aos Tribunais de Justiça dos Estados o julgamento de representações dessa natureza, com relação a leis municipais em conflito com a Constituição Federal, poderia ocorrer a seguinte situação esdrúxula. É da índole dessa representação – e isso hoje é matéria pacífica nesta Corte – que ela, transitando em julgado, tem eficácia erga omnes, independentemente da participação do Senado Federal, o que só se exige para a declaração incidenter tantum. O que implica dizer que se transitasse em julgado a decisão nela proferida por Tribunal de Justiça, esta Corte Suprema estaria vinculada à declaração de inconstitucionalidade de Tribunal que lhe é inferior; mesmo nos casos concretos futuros que lhe chegassem por via de recurso extraordinário. O absurdo da conseqüência, que é da índole do instrumento, demonstra o absurdo da premissa".

Também o Ministro Leitão de Abreu dela se ocupou, como se vê na seguinte passagem de seu voto:

"Gostaria de deduzir, com o desenvolvimento que o alto relevo dessa questão constitucional comportaria, as razões que, a meu sentir, militariam a favor da tese perfilhada pelo acórdão recorrido, se superáveis, em relação ao presente caso, todos os óbices que se levantam acerca do cabimento da representação proposta perante o Tribunal local, para a declaração de inconstitucionalidade da lei municipal, de que na hipótese se trata, por incompatibilidade com a Constituição Federal. Não achei meios jurídicos, todavia, que me habilitassem a vencer o obstáculo, levantado pelo Ministro Moreira Alves, no que diz respeito à situação que se criaria no caso de se declarar, pelo Tribunal de Justiça, inconstitucionalidade de lei municipal, por denotar conflito com a Carta Federal, sem que dessa decisão se manifeste recurso extraordinário. Transitada em julgado decisão dessa natureza, ficaria, na verdade, o Supremo Tribunal vinculado à declaração de inconstitucionalidade pronunciada pelo Tribunal de Justiça e, por via de conseqüência, impossibilitado de julgar casos concretos futuros que, em recursos extraordinários, se trouxessem à sua apreciação. Como essa conseqüência, que seria inelutável, se me afigura, também, inadmissível, não há senão concluir, a meu ver malgrado a elegante construção jurídica do Tribunal paulista, pela inconstitucionalidade das expressões ´inconstitucionalidade´ do artigo 54, I, e, da Constituição do Estado de São Paulo. Conhecendo, pois, do recurso, lhe dou provimento para que a inconstitucionalidade assim fique pronunciada".

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

As considerações então expendidas faziam referência à instituição de mecanismo de controle de constitucionalidade, no âmbito da unidade federada, tendo em vista as especificidades do Direito Constitucional positivo brasileiro. Todavia, parece lícito enfatizar que a possibilidade de coexistência entre jurisdições constitucionais federal e estadual pressupõe, em uma estrutura federativa, expressa previsão constitucional e uma definição dos "parâmetros de controle" (Kontrollmassstäbe). Dessarte, mesmo quando as disposições dos textos constitucionais federal e estadual tiverem idêntico conteúdo, há de se admitir a autonomia dos pronunciamentos jurisdicionais da Corte Federal ou de tribunal estadual.

O Bundesverfassungsgericht firmou entendimento no sentido de que a adoção pela Constituição estadual de normas com o conteúdo idêntico a preceitos constitucionais federais dilarga a dúplice garantia jurisdicional, permitindo que os recursos constitucionais e o controle de normas possam ser instaurados perante o Tribunal Constitucional estadual, nos termos da Constituição estadual, ou perante a Corte Constitucional federal, tendo como parâmetro a Lei Fundamental.

Em caso de dissídio jurisprudencial específico entre o Bundesverfassungsgericht e um Landesverfassungsgericht, há de prevalecer a orientação consolidada pelo órgão federal.

Embora na Alemanha se consagre o princípio de que Bundesrecht bricht Landesrecht (o direito federal rompe o direito estadual) (LF, art. 31) e a Lei Fundamental outorgue ampla competência legislativa à União, não há dúvida de que o texto da Lei Fundamental – muito menos analítico do que as Constituições brasileiras em geral, especialmente a de 1988 – deixa ainda significativo espaço para o constituinte estadual, sobretudo no que concerne à organização político-administrativa e à política educacional.

O próprio princípio de homogeneidade (Homogenitätsgebot), previsto no art. 28 da Lei Fundamental, é suficientemente impreciso para permitir aos Estados-membros alguma liberdade na concretização dos postulados da república, democracia, e estado de direito social.

Por outro lado, a própria Corte Constitucional firmou orientação no sentido de que disposições constitucionais estaduais de conteúdo idêntico às do direito constitucional federal não são atingidas pela cláusula do art. 31. Argumenta-se que o princípio do Bundersrecht bricht Landesrecht disciplina a colisão (entre normas contraditórias), não sendo aplicável, por isso, às situações jurídicas análogas ou semelhantes instituídas pelos Estados. Assim, muitos Estados-membros reproduzem ou até mesmo ampliam o catálogo de direitos fundamentais previstos na Lei Fundamental.

Sob o império da Constituição de 1988, suscitou-se, entre nós, questão relativa à competência de Tribunal estadual para conhecer de ação direta de inconstitucionalidade, formulada contra lei municipal em face de parâmetro constitucional estadual, que, na sua essência, reproduzia disposição constitucional federal. Cuidava-se de controvérsia sobre a legitimidade do IPTU instituído por lei municipal de São Paulo- Capital (Lei municipal nº 11.152, de 30.12.91). Concedida a liminar pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, opôs a Prefeitura Municipal de São Paulo reclamação perante o Supremo Tribunal Federal, sustentando, fundamentalmente, que, embora fundada em inobservância de preceitos constitucionais estaduais, a ação direta acabava por submeter à apreciação do Tribunal de Justiça do Estado o contraste entre a lei municipal e normas da Constituição Federal (Reclamação 383, Relator: Ministro Moreira Alves)

Anteriormente, julgando a Reclamação 370, afirmara o Supremo Tribunal Federal que faleceria aos Tribunais de Justiça estaduais competência para conhecer de representação de inconstitucionalidade de lei estadual ou municipal em face de parâmetro – formalmente – estaduais, mas substancialmente integrantes da ordem constitucional federal. Considerou-se então que a reprodução na Constituição estadual de normas constitucionais obrigatórias em todos os níveis da federação "em termos estritamente jurídicos" seria "ociosa". Asseverou-se que o texto local de reprodução formal ou material, "não obstante a forma de proposição normativa do seu enunciado, vale por simples explicitação da absorção compulsória do preceito federal, essa, a norma verdadeira, que extrai força de sua recepção pelo ordenamento local, exclusivamente, da supremacia hierárquica absoluta da Constituição Federal".

A tese concernente à ociosidade da reprodução de normas constitucionais federais obrigatórias no texto constitucional estadual esbarra já nos chamados princípios sensíveis, que impõem, inequivocamente, aos Estados-membros a rigorosa observância daqueles estatuto mínimo (CF, art. 34, VII). Nenhuma dúvida subsiste de que a simples omissão da Constituição estadual, quanto à inadequada positivação de um desses postulados, no texto magno estadual, já configuraria ofensa suscetível de provocar a instauração da representação interventiva.

Não é menos certo, por outro lado, que o Estado-membro está obrigado a observar outras disposições constitucionais federais, de modo que, adotada a orientação esposada inicialmente pelo Supremo Tribunal Federal, ficaria o direito constitucional estadual – substancial – reduzido, talvez, ao preâmbulo e às cláusulas derrogatórias. Até porque, pelo modelo analítico de Constituição adotado entre nós, nem mesmo o direito tributário estadual pode ser considerado, segundo uma orientação ortodoxa, um direito substancialmente estadual, uma vez que, além dos princípios gerais, aplicáveis à União, aos Estados e Municípios (arts. 145-149), das limitações aos poder de tributar (arts. 150-152), contempla o texto constitucional federal, em seções autônomas os impostos dos Estados e do Distrito Federal (Seção IV - art. 155) e os impostos municipais (Seção V - art. 156). Como se vê, é por demais estreito o espaço efetivamente vago deixado ao alvedrio do constituinte estadual.

São elucidativas, a propósito, as seguintes passagens do voto do Ministro Moreira Alves:

          "É petição de princípio dizer-se que as normas das Constituições estaduais que reproduzem, formal ou materialmente, princípios constitucionais federais obrigatórios para todos os níveis de governo na federação são inócuas, e, por isso mesmo, não são normas jurídicas estaduais, até por não serem jurídicas, já que jurídicas, e por isso eficazes, são as normas da Constituição Federal reproduzidas, razão por que não se pode julgar, com base nelas, no âmbito estadual, ação direta de inconstitucionalidade, inclusive, por identidade de razão, que tenha finalidade interventiva." (...)

"Essas observações todas servem para mostrar, pela inadmissibilidade das conseqüências da tese que se examina, que não é exato pretender-se que as normas constitucionais estaduais que reproduzem as normas centrais da Constituição Federal (e o mesmo ocorre com as leis federais ou até estaduais que fazem a mesma reprodução) sejam inócuas e, por isso, não possam ser consideradas normas jurídicas. Essas normas são normas jurídicas, e têm eficácia no seu âmbito de atuação, até para permitir a utilização dos meios processuais de tutela desse âmbito (como o recurso especial, no tocante ao artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, e as ações diretas de inconstitucionalidade em face da Constituição Estadual). Elas não são normas secundárias que correm necessariamente a sorte das normas primárias, como sucede com o regulamento, que caduca quando a lei regulamentada é revogada. Em se tratando de norma ordinária de reprodução ou de norma constitucional estadual da mesma natureza, por terem eficácia no seu âmbito de atuação, se a norma constitucional federal reproduzida for revogada, elas, por terem eficácia no seu âmbito de atuação, persistem como normas jurídicas que nunca deixaram de ser. Os princípios reproduzidos, que, enquanto vigentes, se impunham obrigatoriamente por força apenas da Constituição Federal, quando revogados, permanecem, no âmbito de aplicação das leis ordinárias federais ou constitucionais estaduais, graças à eficácia delas resultante."

A prevalecer tal orientação advogada na Reclamação 370, restaria completamente esvaziada a cláusula contida no art. 125, § 2º, da Constituição, uma vez que, antes de qualquer decisão, deveria o Tribunal de Justiça verificar, como questão preliminar, se a norma constitucional estadual não era mera reprodução do direito constitucional federal.

De resto, não estaria afastada a possibilidade de que, em qualquer hipótese, fosse chamado o Supremo Tribunal Federal, em reclamação, para dirimir controvérsia sobre o caráter federal ou estadual do parâmetro de controle.

A propósito, observou o Ministro Moreira Alves:

"(....) em nosso sistema jurídico de controle constitucional, a ação direta de inconstitucionalidade tem como causa petendi, não a inconstitucionalidade em face dos dispositivos invocados na inicial como violados, mas a inconstitucionalidade em face de qualquer dispositivo do parâmetro adotado (a Constituição Federal ou a Constituição Estadual). Por isso é que não há necessidade, para a declaração de inconstitucionalidade do ato normativo impugnado, que se forme maioria absoluta quanto ao dispositivo constitucional que leve cada juiz da Corte a declarar a inconstitucionalidade do ato. Ora, para se concluir, em reclamação, que a inconstitucionalidade argüida em face da Constituição Estadual seria uma argüição só admissível em face de princípio de reprodução estadual que, em verdade, seria princípio constitucional federal, mister se faria que se examinasse a argüição formulada perante o Tribunal local não apenas – como o parecer da Procuradoria-Geral da República fez no caso presente, no que foi acompanhado pelo eminente Ministro Velloso no voto que proferiu – em face dos preceitos constitucionais indicados na inicial, mas também, de todos os da Constituição Estadual. E mais, julgada procedente a reclamação, estar-se-ia reconhecendo que a lei municipal ou estadual impugnada não feriria nenhum preceito constitucional estritamente estadual, o que impossibilitaria nova argüição de inconstitucionalidade em face de qualquer desses preceitos, se, na conversão feita por meio da reclamação, a ação direta estadual em face da Constituição Federal fosse julgada improcedente, por não violação de qualquer preceito constitucional federal que não apenas os invocados na inicial. E como, com essa transformação, o Supremo Tribunal Federal não estaria sujeito ao exame da inconstitucionalidade da lei estadual ou municipal em face dos preceitos constitucionais invocados na inicial perante o Tribunal de Justiça, e tidos, na reclamação, como preceitos verdadeiramente federais, mudar-se-ia a causa petendi da ação: de inconstitucionalidade em face da Constituição Estadual para inconstitucionalidade em face da Constituição Federal, sem limitação, evidentemente, aos preceitos invocados na inicial".

Não se deve olvidar que o chamado poder constituinte decorrente do Estado-membro é, por sua natureza, um poder constituinte limitado, ou, como ensina, Anna Cândida da Cunha Ferraz, é um poder que "nasce, vive e atua com fundamento na Constituição Federal que lhe dá supedâneo; é um poder, portanto sujeito a limites jurídicos, impostos pela Constituição Maior". Essas limitações são de duas ordens: as Constituições estaduais não podem contrariar a Constituição Federal (limitação negativa); as Constituições estaduais devem concretizar no âmbito territorial de sua vigência os preceitos, o espírito e os fins da Constituição Federal (limitação positiva).

A idéia de limitação material (positiva ou negativa) do poder constituinte decorrente remonta, no Direito Constitucional brasileiro, à Constituição de 1891, que, no art. 63, previa que cada Estado seria regido "pela Constituição e pelas leis" que adotasse, "respeitados os princípios constitucionais da União". Embora o texto não explicitasse quais eram esses princípios, havia um certo consenso na doutrina sobre o conteúdo dessa cláusula. As controvérsias político-constitucionais instauradas levaram o constituinte derivado, na Reforma de 1926, a elencar, expressamente, esses princípios. Essa tendência foi preservada pelas Constituições que a sucederam.

A doutrina brasileira tem-se esforçado para classificar esses princípios constitucionais federais que integram, obrigatoriamente, o direito constitucional estadual. Na conhecida classificação de José Afonso da Silva esses postulados podem ser denominados princípios constitucionais sensíveis, extensíveis e estabelecidos. Os princípios constitucionais sensíveis são aqueles cuja observância é obrigatória sob pena de intervenção federal (CF 1988, art. 34, VII). Os princípios constitucionais extensíveis consistem nas regras de organização que a Constituição estendeu aos Estados-membros. Os princípios constitucionais estabelecidos seriam aqueles princípios que limitam a autonomia organizatória do Estado (v.g., CF 1988, art. 37).

A Constituição de 1988 foi moderada na fixação dos chamados princípios sensíveis.

Nos termos do art. 34, VII, devem ser observados pelo Estado-membro, sob pena de intervenção: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública direta e indireta.

O texto constitucional contém, todavia, uma pletora de disposições que afetam a organização da unidade federada, como um todo. Pretender que a reprodução dessas normas federais no texto constitucional estadual implica na sua descaracterização como parâmetro de controle estadual revela-se assaz perigoso para a própria segurança jurídica. Até porque haveria imensa dificuldade de se identificar, com precisão, uma norma ontologicamente estadual. Não é preciso dizer que adoção do critério proposto na Reclamação 370 importaria, na sua essência, no completo esvaziamento da jurisdição constitucional estadual.

Portanto, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Reclamação 383 veio restabelecer a melhor doutrina, assentando que, posta a questão da constitucionalidade da lei municipal (ou da lei estadual) em face da Constituição estadual, tem-se uma questão constitucional estadual.

Vê-se que, dado o caráter vinculativo e a índole genérica inerentes ao modelo concentrado de controle de constitucionalidade, a possibilidade de coexistência entre jurisdições constitucionais federal e estadual, em uma ordem federativa, exige, igualmente, a definição de "parâmetros de controle" (Kontrollmassstäbe) autônomos e diferenciados.

          2.3 Concorrência de Parâmetros de Controle

Convém alertar que a competência concorrente de Tribunais constitucionais estaduais e federal envolve algumas cautelas.

Evidentemente, a sentença de rejeição de inconstitucionalidade proferida por uma Corte não afeta o outro processo, pendente perante outro tribunal, que há de decidir com fundamento em parâmetro de controle autônomo.

Todavia, declarada a inconstitucionalidade de direito local em face da Constituição estadual, com efeito erga omnes, há de se reconhecer a insubsistência de qualquer processo eventualmente ajuizado perante o Supremo Tribunal Federal que tenha por objeto a mesma disposição.

Da mesma forma, a declaração de inconstitucionalidade da lei estadual em face da Constituição Federal torna insubsistente (gegenstandslos) ou sem objeto eventual argüição, pertinente à mesma norma, requerida perante Corte estadual.

Ao contrário, a suspensão cautelar da eficácia de uma norma no juízo abstrato, perante o Tribunal de Justiça ou perante o Supremo Tribunal Federal, não torna inadmissível a instauração de processo de controle abstrato em relação ao mesmo objeto, nem afeta o desenvolvimento válido de processo já instaurado perante outra Corte.

Problemática há de se revelar a questão referente aos processos instaurados simultaneamente perante Tribunal de Justiça estadual e perante o Supremo Tribunal Federal no caso de ações diretas contra determinado ato normativo estadual em face parâmetros estadual e federal de conteúdo idêntico. Se a Corte federal afirmar a constitucionalidade do ato impugnado em face do parâmetro federal, poderá o Tribunal estadual considerá-lo inconstitucional em face de parâmetro estadual de conteúdo idêntico?

Essa questão dificilmente pode ser solvida com recurso às conseqüências da coisa julgada e da eficácia erga omnes, uma vez que esses institutos, aplicáveis ao juízo abstrato de normas, garantem a eficácia do julgado enquanto tal, isto é, com base no parâmetro constitucional utilizado. Pretensão no sentido de se outorgar eficácia transcendente à decisão equivaleria a atribuir força de interpretação autêntica à decisão do Tribunal federal.

No plano dogmático, pode-se reconhecer essa conseqüência se se admitir que as decisões do Supremo Tribunal Federal são dotadas de efeito vinculante (Bindungswirkung), que se não limita à parte dispositiva, mas se estende aos fundamentos determinantes da decisão.

Assim, pelo menos no que se refere às ações direta de inconstitucionalidade julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, poder-se-ia cogitar de um efeito transcendente se a questão estadual versasse também sobre a norma de reprodução obrigatória pelo Estado-membro.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Gilmar Mendes

Ministro do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça. Professor adjunto da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Gilmar. O controle de constitucionalidade do direito estadual e municipal na Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/122. Acesso em: 3 mai. 2024.

Mais informações

Texto publicado originalmente na Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto, edição de julho de 1999.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos