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O controle de constitucionalidade do direito estadual e municipal na Constituição Federal

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01/08/2000 às 00:00
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3. PARÂMETRO DE CONTROLE ESTADUAL E QUESTÃO FEDERAL

          3.1. Considerações Preliminares

Tal como já afirmado, a amplitude da jurisdição constitucional no Estado federal suscita inúmeras questões. A inexistência de regras de colisão – como é o caso da Alemanha e do Brasil – enseja insegurança, em determinadas situações, quanto à competência da jurisdição estadual ou federal. Como os atos do poder estadual estão submetidos às jurisdições constitucionais estaduais e federal, torna-se evidente, em certos casos, a concorrência de competências, afigurando-se possível submeter uma questão tanto à Corte estadual quanto ao Bundesverfassungsgericht, nos casos de dupla ofensa.

          3.2. Parâmetro de controle estadual e questão constitucional federal

Essas colocações não devem levar à idéia de que o controle de constitucionalidade da lei estadual ou municipal em face da Constituição estadual não se mostra apto a suscitar questão federal que deva, eventualmente, ser dirimida pelo Supremo Tribunal Federal.

Pode ocorrer que o Tribunal estadual considere inconstitucional o próprio parâmetro de controle estadual, por ofensivo à Constituição Federal. No sistema concentrado clássico, o Tribunal submeteria a questão, no âmbito do controle concreto de normas, ao Tribunal Constitucional Federal.

Todavia, como haverá de proceder, entre nós, o Tribunal de Justiça que identificar a inconstitucionalidade do próprio parâmetro de controle estadual?

Nada obsta a que o Tribunal de Justiça competente para conhecer da ação direta de inconstitucionalidade em face da Constituição estadual suscite ex-officio a questão constitucional – inconstitucionalidade do parâmetro estadual em face da Constituição Federal –, declarando, incidentalmente, a inconstitucionalidade da norma constitucional estadual em face da Constituição Federal e extinguindo, por conseguinte, o processo, ante a impossibilidade jurídica do pedido (declaração de inconstitucionalidade face a parâmetro constitucional estadual violador da Constituição Federal).

Portanto, da decisão que reconhecesse ou não a inconstitucionalidade do parâmetro de controle estadual seria admissível recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, que tanto poderia reconhecer a legitimidade da decisão, confirmando a declaração de inconstitucionalidade, como revê-la, para admitir a constitucionalidade de norma estadual, o que implicaria a necessidade de o Tribunal de Justiça prosseguir no julgamento da ação direta proposta.

Isto já demonstra que não se pode cogitar de uma separação absoluta entre as jurisdições constitucionais estaduais e federal.

          3.3. Recurso extraordinário e norma de reprodução obrigatória

Mais séria e complexa revela-se a indagação sobre o cabimento de recurso extraordinário na hipótese de o Tribunal de Justiça, em ação direta de inconstitucionalidade, adotar interpretação de norma estadual de reprodução obrigatória, que, por qualquer razão, se revele incompatível com a Constituição Federal.

Ora, se existem princípios de reprodução obrigatória pelo Estado-membro, não só a sua positivação no âmbito do ordenamento jurídico estadual, como também a sua aplicação por parte da administração ou do Judiciário estadual pode-se revelar inadequada, desajustada ou incompatível com a ordem constitucional federal.

Nesse caso, não há como deixar de reconhecer a possibilidade de que se submeta a controvérsia constitucional estadual ao Supremo Tribunal Federal, mediante recurso extraordinário.

Essa questão foi elucidada pelo Ministro Moreira Alves, na Reclamação 383, como se pode ler na seguinte passagem de seu voto:

"Isso implica dizer que as normas que a Constituição Federal, explícita ou implicitamente, impõe à observância do Estado devem ser transplantadas (normas de reprodução) para as Constituições estaduais, ao passo que as outras podem, ou não, ser copiadas (normas de imitação) por estas. E é óbvio que esse transplante não se faria necessário se essas normas de reprodução fossem inócuas, por não serem sequer jurídicas. São elas eficazes também no ordenamento jurídico estadual, permitindo, obviamente, que aí atuem como normas estaduais, nos limites da competência dos Estados de aplicá-las e fazê-las respeitar.

A essa eficácia, que tradicionalmente é reconhecida no direito brasileiro - jamais se negou, no âmbito do recurso extraordinário, que questão discutida em face de norma constitucional de reprodução obrigatória pelos Estados (e várias das normas gerais de direito tributário o são) era exclusivamente estadual -, a essa eficácia, repito, a única objeção que se lhe pretende opor como intransponível é a de que o Supremo Tribunal Federal, assim, poderá perder sua posição de guardião da Constituição. E isso porque, nesse caso, as decisões em ação direta estadual, por se tratar de processo objetivo, ou não admitiriam sequer recurso extraordinário, ou, se admitido este, a declaração de inconstitucionalidade da norma local, no âmbito do Estado-membro, impediria que esta Corte a reexaminasse, em controle difuso, em face da Constituição Federal.

Essa única objeção que se apresenta como se fosse ela intransponível para não se admitir o controle de constitucionalidade das leis estaduais e municipais, pelos Tribunais de Justiça, em face das Constituições estaduais na sua globalidade - que é o parâmetro de confronto adotado pela Constituição Federal -, também se aplica, em seus exatos termos, à orientação da inadmissibilidade dessas ações diretas de inconstitucionalidade estaduais com relação às normas de reprodução. Com efeito, ainda que se considere, adotando essa tese, que essas ações diretas estaduais não são admissíveis, se elas forem ajuizadas - como o têm sido inúmeras vezes, segundo noticiam as informações nestes autos -, e se o Tribunal de Justiça as julgar, sem que se proponha reclamação, essa decisão será insusceptível de ataque, e a lei municipal ou estadual declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça sairá, irremediavelmente, do mundo jurídico. Também, portanto, com tal orientação ficará arranhado o papel do Supremo Federal como guardião da Constituição Federal.

Assim, se o único inconveniente de uma tese é também inconveniente da outra, que, além dele apresenta vários outros - como demonstrei - pelas conseqüências inadmissíveis que provoca, parece insustentável restringir a autonomia constitucional dos Estados, que a Constituição não restringe, e, com base no inconveniente comum, sustentar que correta é a orientação que, além dele - que é o único da outra -, apresenta outros diversos".

Em seguida, concluiu o eminente Ministro, com proverbial precisão:

          "Ocorre, porém, que não é certo afirmar-se que, em ação direta de inconstitucionalidade estadual, por ser processo objetivo, dada a natureza de seu objeto, não é admissível recurso extraordinário.

Tanto na ação direta de inconstitucionalidade em face da Constituição federal perante o Supremo Tribunal Federal quanto na ação direta de inconstitucionalidade em face da Constituição estadual perante Tribunal de Justiça, pode surgir a questão - que é sempre federal - de a norma constitucional federal ou estadual, que levará à declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada, ser inconstitucional. Com efeito, em ação direta proposta perante esta Corte em face da Constituição Federal, não poderá ela declarar incidentemente que a emenda constitucional que introduziu na Constituição Federal o preceito que é incompatível com o ato normativo atacado é que é inconstitucional, por defeito formal no processo legislativo observado, ou por violação da cláusula pétrea? É claro que poderá, pois seria inadmissível que o Supremo Tribunal Federal, para impor a observância da Constituição, não pudesse declarar inconstitucional o que realmente o seria (o princípio nela introduzido inconstitucionalmente), e tivesse de ter como inconstitucional a norma infraconstitucional que, em verdade, não infringiu a Constituição.

Ora, se essa questão raramente surgirá em ação direta de inconstitucionalidade em face da Constituição Federal perante esta Corte dada a limitação dessas causas de inconstitucionalidade, o mesmo não se poderá dizer com relação às ações diretas de inconstitucionalidade em face das Constituições estaduais. Haja vista a freqüência com que esta Corte tem declarado inconstitucionais normas constitucionais estaduais. E, se levantada questão dessa natureza no âmbito das ações diretas de inconstitucionalidade estaduais, não terá ela de ser julgada pelo Tribunal local, com recurso extraordinário a esta Corte, com base, conforme o caso, nas letras "a" ou "c" do inciso III do artigo 102 da Constituição Federal? É evidente que sim, pois a ação direta de inconstitucionalidade não é incompatível com recurso - no âmbito desta Corte, os embargos infringentes sempre foram admitidos -, e não há como sustentar-se que as lides objetivas não sejam causas para efeito de recurso extraordinário, que visa a preservar a observância da Constituição Federal.

Assim sendo, nas ações diretas de inconstitucionalidade estaduais, em que lei municipal ou estadual seja considerada inconstitucional em face de preceito da Constituição estadual que reproduza preceito central da Constituição federal, nada impede que nessa ação se impugne, como inconstitucional, a interpretação que se dê ao preceito de reprodução existente na Constituição do Estado por ser ela violadora da norma reproduzida, que não pode ser desrespeitada, na federação, pelos diversos níveis de governo. E a questão virá a esta Corte, como, aliás, tem vindo, nos vários recursos extraordinários interpostos em ações diretas de inconstitucionalidade de leis locais em face da Constituição Federal ajuizadas nas Cortes locais, a questão da impossibilidade jurídica dessas argüições (RREE 91740, 93088 e 92169, que foram todos conhecidos e providos)".

Não há dúvida, pois, de que será cabível o recurso extraordinário contra a decisão do Tribunal de Justiça que, sob pretexto de aplicar o direito constitucional estadual, deixar de aplicar devidamente a norma de reprodução obrigatória por parte do Estado-membro.

É interessante notar que a decisão proferida em sede de recurso extraordinário no Supremo Tribunal que implique o reconhecimento da procedência ou da improcedência da ação direta proposta no âmbito estadual será igualmente dotada de eficácia erga omnes, o que ressalta uma outra peculiaridade dessa situação de inevitável convivência entre os sistemas difuso e concentrado de controle de constitucionalidade no direito brasileiro.

E se não houver a interposição do recurso extraordinário? A decisão transitará em julgado para o Supremo Tribunal Federal?

Duas são as situações possíveis:

          (a) o Tribunal afirmará a improcedência da argüição de inconstitucionalidade, declarando, com eficácia erga omnes, que a lei estadual ou municipal é compatível com a Constituição estadual.

(b) o Tribunal afirmará a procedência da argüição, reconhecendo a inconstitucionalidade da lei estadual ou municipal, com eficácia geral.

Na primeira hipótese, não há que se cogitar de eficácia de decisão em relação ao Supremo Tribunal Federal, podendo vir a conhecer da questão no processo de controle difuso ou direto de constitucionalidade. No caso de declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo estadual ou municipal, com trânsito em julgado, não haverá objeto para a argüição de inconstitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

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É o que também sustenta o Ministro Moreira Alves, na seguinte passagem do voto proferido na Reclamação 383, verbis:

"Pode ocorrer, no entanto, que não haja a interposição do recurso extraordinário. E o mesmo problema sucederá - como já acentuei - se, adotada a orientação contrária, não for proposta reclamação para a verificação da ocorrência, ou não, de inconstitucionalidade só declarável em face de texto de reprodução, certo como é que não cabe reclamação, para a preservação de competência, que tenha de desconstituir acórdão transitado em julgado. Ainda recentemente esta Corte reafirmou esse entendimento, ao não conhecer, por unanimidade de votos, em 28 de maio próximo passado, a reclamação 365, de que fui relator. Nesse julgamento se decidiu que reclamação destinada à preservação de competência do S.T.F. só é cabível se a decisão objeto dela ainda não transitou em julgado, pois reclamação não é sucedâneo de ação rescisória.

Ora, na hipótese de não interposição de recurso extraordinário (ou de não oferecimento de reclamação com acima observei), se a decisão do Tribunal de Justiça, na ação direta, for pela sua improcedência - o que vale dizer que a lei municipal ou estadual foi tida como constitucional -, embora tenha ela também eficácia erga omnes, essa eficácia se restringe ao âmbito da Constituição estadual, ou seja, a lei então impugnada, aí, não poderá mais ter sua constitucionalidade discutida em face da Constituição estadual, o que não implicará que não possa ter sua inconstitucionalidade declarada, em controle difuso ou em controle concentrado (perante esta Corte, se se tratar de lei estadual), em face da Constituição federal, inclusive com base nos mesmos princípios que serviram para a reprodução. E isso se explica, não só porque a causa petendi (inconstitucionalidade em face da Constituição federal, e não da Constituição estadual) é outra, como também por ter a decisão desta Corte eficácia erga omnes nacional, impondo-se, portanto, aos Estados.

Se, porém, a decisão do Tribunal de Justiça, na ação direta, for pela procedência - o que implica a declaração de nulidade da norma municipal ou estadual impugnada -, a sua retirada do mundo jurídico, com eficácia retroativa à data do início de sua vigência, se faz no âmbito mesmo em que ela surgiu e atua - o estadual -, o que impede que, por haver a norma deixado de existir na esfera do ordenamento que integrava, que seja reavivada, em face da Carta Magna federal, questão cujo objeto não mais existe".

Tal como já apontado, essa decisão forneceu as novas bases do sistema de controle direto de constitucionalidade do direito estadual e municipal perante o Tribunal de Justiça, assentando a autonomia dos parâmetros de controle e a possibilidade de que a questão suscitada perante o Tribunal local se converta numa questão constitucional federal, especialmente nos casos de aplicação das chamadas normas de reprodução obrigatória por parte do Estado-membro.

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Sobre o autor
Gilmar Mendes

Ministro do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça. Professor adjunto da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Gilmar. O controle de constitucionalidade do direito estadual e municipal na Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/122. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Texto publicado originalmente na Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto, edição de julho de 1999.

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