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O controle de constitucionalidade do direito estadual e municipal na Constituição Federal

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01/08/2000 às 00:00
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4. Ação Declaratória de Constitucionalidade no Âmbito Estadual

Em face do silêncio do texto constitucional, na versão da Emenda nº 3, de 1993, cabe indagar se os Estados membros poderiam instituir a ação declaratória de constitucionalidade no âmbito da unidade federada com objetivo de afirmar a legitimidade de atos normativos estaduais e municipais em face da Constituição estadual.

A imprecisão da fórmula adotada na Emenda nº 16, de 1965, que introduziu o controle abstrato de normas entre nós, – representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral, – não consegue esconder o propósito inequívoco do legislador constituinte, que era o de permitir, "desde logo, a definição da controvérsia constitucional sobre leis novas".

Não se pretendia, pois, que o Procurador-Geral instaurasse o processo de controle abstrato com o propósito exclusivo de ver declarada a inconstitucionalidade da lei, até porque ele poderia não tomar parte na controvérsia constitucional ou, se dela participasse, estar entre aqueles que consideravam válida a lei.

Não se fazia mister, portanto, que o Procurador-Geral estivesse convencido da inconstitucionalidade da norma. Era suficiente o requisito objetivo relativo à existência de "controvérsia constitucional". Daí ter o constituinte utilizado a fórmula equívoca – representação contra a inconstitucionalidade da lei, encaminhada pelo Procurador-Geral da República – que explicitava, pelo menos, que a dúvida ou a eventual convicção sobre a inconstitucionalidade não precisava ser por ele perfilhada.

Se correta essa orientação, parece legítimo admitir que o Procurador-Geral da República tanto poderia instaurar o controle abstrato de normas, com o objetivo precípuo de ver declarada a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo (ação declaratória de inconstitucionalidade ou representação de inconstitucionalidade), como poderia postular, expressa ou tacitamente, a declaração de constitucionalidade da norma questionada (ação declaratória de constitucionalidade).

A cláusula sofreu pequena alteração na Constituição de 1967 e de 1967/69 (representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual – CF 1967, art. 115, I, "l"; CF 1967/69, art. 119, I, "l").

O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, na versão de 1970, consagrou expressamente essa idéia:

          "Art. 174.............

§ 1º. Provocado por autoridade ou por terceiro para exercitar a iniciativa prevista neste artigo, o Procurador-Geral, entendendo improcedente a fundamentação da súplica, poderá encaminhá-la com parecer contrário".

Essa disposição, que, como visto, consolidava posição tradicional no Tribunal, permitia ao titular da ação encaminhar a postulação que lhe fora dirigida por terceiros, manifestando-se, porém, em sentido contrário.

Não é preciso maior esforço de argumentação para demonstrar que, do ponto de vista dogmático, nada mais fez o Regimento Interno do que positivar, no plano processual, a orientação que balizara a instituição da representação de inconstitucionalidade (controle abstrato) entre nós.

Ela se destinava não apenas a eliminar a lei declarada inconstitucional da ordem jurídica (pedido de declaração de inconstitucionalidade), mas também a elidir controvérsias que se instaurassem sobre a legitimidade de determinada norma (pedido de declaração de constitucionalidade).

Assim, se o Procurador-Geral encaminhava súplica ou representação de autoridade ou de terceiro, com parecer contrário, estava simplesmente a postular uma declaração (positiva) de constitucionalidade. O pedido de representação, formulado por terceiro e encaminhado ao Supremo, materializava, apenas, a existência da "controvérsia constitucional" apta a fundamentar uma "necessidade pública de controle".

Essa cláusula foi alterada, passando o Regimento Interno a conter as seguintes disposições:

          "Art. 169. O Procurador-Geral da República poderá submeter ao Tribunal, mediante representação, o exame de lei ou ato normativo federal ou estadual, para que seja declarada a sua inconstitucionalidade.

§ 1º Proposta a representação, não se admitirá desistência, ainda que afinal o Procurador-Geral se manifeste pela sua improcedência".

Parece legítimo supor que essa modificação não alterou, substancialmente, a idéia básica que norteava a aplicação desse instituto. Se o titular da iniciativa manifestava-se, afinal, pela constitucionalidade da norma impugnada, é porque estava a defender a declaração de constitucionalidade.

Na prática, continuou o Procurador-Geral a oferecer representações de inconstitucionalidade, ressaltando a relevância da questão e manifestando-se, afinal, muitas vezes, em favor da constitucionalidade da norma.

A falta de maior desenvolvimento doutrinário e a própria balbúrdia conceitual instaurada em torno da representação interventiva – confusão essa que contaminou os estudos do novo instituto – não permitiram que essas idéias fossem formuladas com a necessária clareza.

A própria disposição regimental é equívoca, pois, se interpretada literalmente, reduziria o papel do titular da iniciativa, o Procurador-Geral da República, a de um despachante autorizado, que poderia encaminhar os pleitos que lhe fossem dirigidos, ainda que com parecer contrário.

Assinale-se, porém, que a idéia subjacente a essa fórmula imperfeita, concepção que já havia presidido a própria elaboração da Emenda Constitucional nº 16, era a de que o Procurador-Geral da República poderia instaurar o controle abstrato de normas quando surgissem "controvérsias constitucionais".

Ser-lhe-ia legítimo, pois, tanto pedir a declaração de inconstitucionalidade, como advogar a pronúncia de uma declaração de constitucionalidade. A "controvérsia constitucional" ou a dúvida fundada sobre a constitucionalidade da norma representava, assim, um pressuposto processual implícito do controle abstrato de normas (pressuposto objetivo), que legitimava a instauração do controle abstrato de normas, seja com o escopo de ver declarada a inconstitucionalidade da norma, seja com o propósito de ver afirmada a sua constitucionalidade.

Daí ter o saudoso Victor Nunes Leal observado em palestra proferida na Conferência Nacional da OAB de 1978 (Curitiba) que, "em caso de representação com parecer contrário, o que se tem, na realidade, sendo privativa a iniciativa do Procurador-Geral, é uma representação de constitucionalidade".

A propósito, acrescentou, ainda, o notável jurisconsulto:

          "Relembro, aliás, que o ilustre Professor Haroldo Valladão, quando Procurador-Geral da República, sugeriu ao signatário (não sei se chegou a registrá-lo por escrito) a conveniência de deixar expressa no Regimento a representação destinada a afirmar a constitucionalidade, para solver dúvidas, ainda que não houvesse pedido formal de terceiros no sentido da inconstitucionalidade".

Sem dúvida, a disciplina específica do tema no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal serviria à segurança jurídica, na medida em que afastaria, de uma vez por todas, as controvérsias que marcaram o tema no direito constitucional brasileiro.

Assinale-se que o registro dessas assertivas constantes de manifestação autorizada de Victor Nunes demonstra também que, ao contrário do que afirmado por alguns autores, o instituto da ação declaratória de constitucionalidade não representa um novum sequer para a doutrina constitucional pátria.

Entendida a representação de inconstitucionalidade como instituto de contéudo dúplice ou de caráter ambivalente, mediante o qual o Procurador-Geral da República tanto poderia postular a declaração de inconstitucionalidade da norma, como defender a declaração de sua constitucionalidade, afigurar-se-ia legítimo sustentar, com maior ênfase e razoabilidade, a tese relativa à obrigatoriedade de o Procurador-Geral submeter a questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, quando isto lhe fosse solicitado.

A controvérsia instaurada em torno da recusa do Procurador-Geral da República de encaminhar ao Supremo Tribunal Federal representação de inconstitucionalidade contra o Decreto-Lei 1.077, de 1970, que instituiu a censura prévia sobre livros e periódicos, não serviu – infelizmente – para realçar esse outro lado da representação de inconstitucionalidade.

De qualquer sorte, todos aqueles que sustentaram a obrigatoriedade de o Procurador-Geral da República submeter a representação ao Supremo Tribunal Federal, ainda quando estivesse convencido da constitucionalidade da norma, somente podem ter partido da idéia de que, nesse caso, o Chefe do Ministério Público deveria, necessária e inevitavelmente, formular uma ação declaratória – positiva – de constitucionalidade.

Na Representação 1.092, relativa à constitucionalidade do instituto da reclamação, contido no Regimento Interno do antigo Tribunal Federal de Recursos, viu-se o Procurador-Geral da República, que instaurou o processo de controle abstrato de normas e se manifestou, no mérito, pela improcedência do pedido, na contingência de ter de opor embargos infringentes da decisão proferida, que julgava procedente a ação proposta, declarando inconstitucional a norma impugnada.

O Supremo Tribunal Federal considerou admissíveis os embargos pelos fundamentos contidos no voto do eminente Relator, Ministro Néri da Silveira:

          "Se os embargos constituem um recurso e este é meio de provocar, na mesma ou na superior instância, a reforma ou a modificação de uma sentença desfavorável, seria, em princípio de entender que, procedente a ação, ao autor não caberia opor-se ao resultado, que pleiteou vestibularmente. Porque não sucumbente, não estaria legitimado a recorrer.

Sucede, porém, que, na ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, por sua natureza, enquanto instrumento especial de controle jurisdicional de constitucionalidade, não é, desde logo, de invocar os princípios regentes da teoria do processo civil, senão na medida em que os consagrou o Regimento do STF, onde se regula a representação de competência originária e exclusiva desta Corte (Constituição, art. 119, I, letra "l"). Assim, já se tornou assente o descabimento da assistência no processo de representação para a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual ou para interpretação de lei (Representações nº 1.161-5-GO, 1.155-1-DF e 972-DF). Por igual, não se afirma impedimento de membro da Corte para o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade ou de interpretação de lei ou ato normativo federal (Sessão de 13.9.1983). Ao Procurador-Geral da República, a quem a Constituição reserva, com exclusividade, aforar a ação, não se lhe reconhece, todavia, a faculdade de desistir da representação. Instrumento por via do qual se exerce função política do Judiciário, no controle dos atos dos outros Poderes, e dele próprio, o procedimento de ação direta se reveste de especialidade com sua destinação. O julgamento, na representação, refere-se à lei ou ato normativo, em tese, e a decisão que os tem como inconstitucionais encerra, em si mesma, o efeito de excluir-lhes a eficácia erga omnes, dispensada, assim, qualquer posterior manifestação do Senado Federal, para suspender a execução da lei ou ato normativo, tidos como inválidos, a teor do art. 42, VII, da Constituição. De outra parte, está no parágrafo único do art. 169 do Regimento Interno do STF, que o Procurador-Geral da República, inobstante autor da ação direta, pode, em sua manifestação final pedir a improcedência da representação, tal como na espécie aconteceu (fls. 141/151). Pontes de Miranda, de referência à posição do Chefe do Ministério Público federal, diante da norma do art. 119, I, letra "l", da Constituição, observa: "A legitimidade ativa, que tem o Procurador-Geral da República, estende-se à oposição de embargos de nulidade ou infringentes do julgado ou dos embargos declaratórios. É órgão da União: não só a representa, presenta-a, como órgão que é "(in: Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, Tomo IV, 2a. ed., pág. 44). Em face da especialidade do processo da ação direta de inconstitucionalidade, compreendo que o Procurador-Geral pode, inobstante julgada procedente a representação, notadamente, se pedir em sua manifestação final a improcedência da demanda constitucional, interpor embargos infringentes ao acórdão do STF".

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Ora, ao admitir o cabimento dos embargos infringentes opostos pelo Procurador-Geral da República contra decisão que acolheu representação de inconstitucionalidade de sua própria iniciativa, o Supremo Tribunal Federal contribuiu para realçar esse caráter ambivalente da representação de inconstitucionalidade, reconhecendo implicitamente, pelo menos, que ao titular da ação era legítimo tanto postular a declaração de inconstitucionalidade da lei, se disso estivesse convencido, como pedir a declaração de sua constitucionalidade, se, não obstante convencido de sua constitucionalidade, houvesse dúvidas ou controvérsias sobre sua legitimidade que reclamassem um pronunciamento definitivo do Supremo Tribunal Federal.

É verdade que a Corte restringiu significativamente essa orientação no acórdão de 8 de setembro de 1988. O Procurador-Geral da República encaminhou ao Tribunal petição formulada por grupo de parlamentares que sustentava a inconstitucionalidade de determinadas disposições da Lei de Informática (Lei nº 7.232, de 29 de outubro de 1984). O Tribunal considerou inepta a representação, entendendo que, como a Constituição previa uma ação de inconstitucionalidade, não poderia o titular da ação demonstrar, de maneira insofismável, que perseguia outros desideratos.

Embora o Supremo Tribunal Federal tenha considerado inadmissível representação na qual o Procurador-Geral da República afirma, de plano, a constitucionalidade da norma, é certo que essa orientação, calcada numa interpretação literal do texto constitucional, não parece condizente, tal como demonstrado, com a natureza do instituto e com a sua práxis desde a sua adoção pela Emenda nº 16, de 1965.

Todavia, a Corte continuou a admitir as representações e, mesmo após o advento da Constituição de 1988, as ações diretas de inconstitucionalidade nas quais o Procurador-Geral limitava-se a ressaltar a relevância da questão constitucional, pronunciando-se, a final, pela sua improcedência.

Em substância, era indiferente, tal como percebido por Victor Nunes, que o Procurador-Geral sustentasse, desde logo, a constitucionalidade da norma, ou que encaminhasse o pedido, para, posteriormente, manifestar-se pela sua improcedência.

Essa análise demonstra claramente que, a despeito da utilização do termo representação de inconstitucionalidade, o controle abstrato de normas foi concebido e desenvolvido como processo de natureza dúplice ou ambivalente.

No julgamento da Questão de Ordem suscitada na Ação Declaratória nº 1, enfatizou-se a natureza idêntica dos processos de ação direta de constitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade, como se pode ler na seguinte passagem do voto proferido pelo Ministro Moreira Alves, verbis:

          "A Emenda Constitucional n. 3, de 1993, ao instituir a ação declaratória de constitucionalidade, já estabeleceu quais são os legitimados para propô-la e quais são os efeitos de sua decisão definitiva de mérito. Silenciou, porém, quanto aos demais aspectos processuais a serem observados com referência a essa ação.

Tendo em vista, porém, que a natureza do processo relativo a essa ação é a mesma da ação direta de inconstitucionalidade, é de adotar-se a disciplina desta nesse particular, exceto no que se diferenciam pelo seu fim imediato, que é oposto - a ação direta de inconstitucionalidade visa diretamente à declaração de inconstitucionalidade do ato normativo, ao passo que a ação declaratória de constitucionalidade visa diretamente à declaração de constitucionalidade do ato normativo -, e que acarreta a impossibilidade da aplicação de toda a referida disciplina".

Na oportunidade, assentou o Supremo Tribunal Federal que a sentença de rejeição de inconstitucionalidade proferida no referido processo tem valor específico, afirmando-se que, no caso de improcedência da ação, terá o Tribunal de declarar a inconstitucionalidade da norma.

Como se sabe, a Emenda Constitucional nº 3, de 1993, ao criar a ação declaratória de constitucionalidade de lei federal, estabeleceu que a decisão definitiva de mérito nela proferida – incluída aqui, pois, aquela que, julgando improcedente a ação, proclamar a inconstitucionalidade da norma questionada "... produzirá eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo...". Por essa razão, eminentes membros do Supremo Tribunal Federal, como o Ministro Sepúlveda Pertence, têm sustentado que, "quando cabível em tese a ação declaratória de constitucionalidade, a mesma força vinculante haverá de ser atribuída à decisão definitiva da ação direta de inconstitucionalidade ".

Todos esses elementos reforçam o caráter dúplice ou ambivalente que marca também a ação declaratória no plano federal.

Assim, não parece subsistir dúvida de que a ação declaratória de constitucionalidade tem a mesma natureza da ação direta de inconstitucionalidade, podendo-se afirmar até que aquela nada mais é do que uma ADIn com sinal trocado.

Ora, tendo a Constituição de 1988 autorizado o constituinte estadual a criar a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal em face da Carta Magna estadual (CF, art. 125, § 2º) e restando evidente que tanto a representação de inconstitucionalidade, no modelo da Emenda nº 16, de 1965, e da Constituição de 1967/69, quanto a ação declaratória de constitucionalidade prevista na Emenda Constitucional nº 3, de 1993, possuem caráter dúplice ou ambivalente, parece legítimo concluir que, independentemente de qualquer autorização expressa do legislador constituinte federal, estão os Estados-membros legitimados a instituir a ação declaratória de constitucionalidade.

É que, como afirmado, na autorização para que os Estados instituam a representação de inconstitucionalidade, resta implícita a possibilidade de criação da própria ação declaratória de constitucionalidade.

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Sobre o autor
Gilmar Mendes

Ministro do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça. Professor adjunto da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Gilmar. O controle de constitucionalidade do direito estadual e municipal na Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/122. Acesso em: 25 abr. 2024.

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Texto publicado originalmente na Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto, edição de julho de 1999.

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