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Direito ao auxílio-reclusão dos servidores públicos titulares de cargos de provimento efetivo.

A exegese do art. 13 da Emenda Constitucional nº 20/1998, paralelamente à inconstitucionalidade da Lei Complementar distrital nº 769/2008

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IV. As regras e postulados da hermenêutica constitucional: os princípios fundamentais

34. Ora, é consabido que as Constituições modernas deixaram de ser mero feixe de normas disciplinadoras do exercício e repartição dos poderes para se tornarem diplomas asseguradores e efetivadores de direitos fundamentais nelas encartados, modo por que a hermenêutica constitucional deve primar pelo respeito aos princípios fundamentais adotados pela Carta Magna em qualquer atividade exegética. Nesse sentido, calham as palavras de André Ramos Tavares:

Princípios sensíveis são, em parte, princípios considerados pela Constituição expressamente como princípios fundamentais. Assim ocorre com a dignidade da pessoa humana. [...] O direito constitucional encontra-se ´todo ele envolvido e penetrado pelos valores jurídicos fundamentais dominantes na comunidade [...] as Constituições modernas contêm a indicação daqueles que são os supremos valores, as rationes, os Gründe da atividade futura do Estado e da sociedade. Outra coisa não ocorre com a Constituição brasileira, que incorpora um extenso rol de valores, embora a eles se refira, em determinado momento, como fundamentos do Estado (art. 1º), em outra oportunidade, denominando-os os objetivos fundamentais da República (art. 3º), além de contemplar inúmeros outros valores referidos difusamente. [...] [13]

35. A primeira premissa que deve ser estabelecida é que a Constituição Federal deve ser interpretada de forma que exista coerência entre suas disposições, que seus princípios fundamentais consagrados sejam respeitados pelo aplicador do direito, que os valores albergados no seio constitucional não sejam paradoxalmente menosprezados pela legislação infraconstitucional nem na exegese que desta se promova à luz da Carta Magna.

36. Disso segue a imperatividade de se sublinhar que qualquer interpretação que se proceda em matéria de regime previdenciário próprio do servidor público, na esfera da Constituição Federal, e também da legislação infraconstitucional de regência da matéria (Lei Complementar distrital n. 769/2008, art. 34), não pode deixar se ser influenciada pelos consectários do princípio da justiça social pela construção de uma sociedade justa e solidária (art. 3º, I, Carta de 1988), da existência digna como vetor da ordem econômica brasileira (art. 170, caput, Carta Magna de 1988) e da dignidade da pessoa humana do servidor público e seus dependentes (art. 1º, III, Constituição da República) como princípios fundamentais encartados no próprio Diploma Fundamental pátrio.

37. Sendo assim, a interpretação do direito constitucional e infraconstitucional não pode incorrer em afronta aos aludidos princípios fundamentais, cujo conteúdo é bem abordado pela doutrina.


V. Regime previdenciário dos servidores públicos: conteúdo e teleologia

38. De antemão, todavia, cumpre trazer a lume o conteúdo e finalidade do regime previdenciário do servidor público como pressuposto da interpretação do instituto do benefício do auxílio-reclusão.

39. A esse propósito, Leciona Antonio Penteado Mendonça sobre a seguridade social e sua amplitude:

A universalidade de cobertura, ou universalidade objetiva, significa que a seguridade social deve atender a generalidade dos riscos sociais, não apenas de forma a reparar perdas, mas também preventivamente, evitando o surgimento da necessidade. Nesse sentido, a cobertura deve ser entendida de forma o mais ampla possível. [...] Quanto aos objetivos de longo prazo, as três espécies do gênero seguridade social devem ser entendidas como atividades complementares destinadas a promover o bem comum, a elevação dos patamares da qualidade de vida da população brasileira e a implementação da justiça social, garantindo ao cidadão as condições indispensáveis para sua existência digna. [...] O sistema tem por base o seguro social, onde os benefícios e serviços devem assegurar aos beneficiários os meios indispensáveis à sua subsistência nos casos de [...] prisão ou morte do chefe da família. O cálculo para cada um desses benefícios é feito com base no fator de contribuição do contribuinte, sempre em seu favor ou de seus dependentes. [14]

40. Nota-se da lição doutrinária que o sistema de seguridade social destina-se a proteger o trabalhor da iniciativa privada e do serviço público, bem como sua família e dependentes econômicos, contra os riscos e sinistros da vida em seu caráter mais amplo possível, abrangendo as eventualidades de morte, invalidez, doença e prisão do chefe ou mantenedor da família, de forma a evitar a necessidade e assegurar o mínimo de condições dignas de existência e sobrevivência aos segurados e dependentes, sejam de servidores públicos ou de empregados de regime privado.

41. A universalidade de cobertura, plasmada como cláusula constitucional (art. 194, par. único, I, Constituição Federal de 1988), abrange a proteção contra o mais amplo leque de possíveis fatalidades e casualidades a que se sujeita o trabalhador e sua família, reflexamente, servindo de meio preventivo da miséria e da penúria econômica para os dependentes econômicos do servidor público, os quais precisam dispor de garantia de existência digna no caso de falecimento, enfermidade ou aprisionamento do mantenedor da família. Como escreve Kildare Gonçalves Carvalho:

Como conseqüência da 2ª Guerra Mundial, há a transição para a terceira etapa da seguridade social, a de proteção dos cidadãos, e que se caracteriza pela proteção de quaisquer pessoas, em todos os seus estados de necessidades, em todas as etapas de sua vida [...] a seguridade social é apenas parte de uma política ampla de progresso social porque, se desenvolvida na sua plenitude, pode garantir renda, atacando a indigência, nada obstante os cinco "gigantes" que dificultam a reconstrução: miséria, doença, ignorância, ociosidade e insalubridade. A evolução dos sistemas de proteção social revela que deixaram de atingir somente aqueles que contribuíram para o seu custeio, já que a noção de risco, própria do seguro, não se mostrou adequada à instrumentalização das prestações, passando então a ser utilizado o conceito de necessidade social (há contingências desejadas que não causam dano, mas geram necessidades), resultando em proteção mais abrangente em que a álea dá lugar à contingência, que pode ou não ser desejada. [...] A seguridade social, como um conjunto de medidas que se destinam a atender às necessidades humanasm e que se refere à idéia de liberação de preocupações relativas à sociedade, constitui o instrumento jurídico de que dispõe o Estado para a liberação das necessidades sociais, na forma fixada pelo Direito. [15]

42. Nesse diapasão é que o Estatuto dos Servidores Públicos do Distrito Federal capitula (art. 184, Lei federal n. 8.112/1990, c.c. Lei distrital n. 197/1991): "O Plano de Seguridade Social visa a dar cobertura aos riscos a que estão sujeitos o servidor e sua família, e compreende um conjunto de benefícios e ações que atendam às seguintes finalidades: I - garantir meios de subsistência nos eventos de doença, invalidez, velhice, acidente em serviço, inatividade, falecimento e reclusão."

43. Bruno Sá Freire Martins comenta sobre o instituto do auxílio-reclusão:

Esta espécie de benefício visa cobrir o risco social oriundo do afastamento do obreiro de sua atividade laboral, não importando o motivo de recolhimento à prisão, se por aplicação de sanção penal ou prisão provisória. O auxílio é devido apenas durante o período em que o segurado estiver recolhido em regime fechado ou semi-aberto. [16]

44. Nota-se que a finalidade do regime previdenciário do servidor público, inclusive nos eventos de prisão, é de assegurar meios para que a família do funcionário possa dispor dos recursos econômicos necessários a fazer face ao sinistro do apriosionamento do chefe ou co-mantenedor do grupo familiar. A malsinada disposição da norma complementar distrital ora em cogito representa severo retrocesso na história da seguridade social, desde os seus primórdios, com as caixas assistenciais de corporações profissionais, na Idade Média, seguidas do Act of the Relief of the Poor (Lei dos Pobres de 1601, na Inglaterra, por Isabel I), do seguro social pelos comerciantes marítimos italianos, o primeiro plano de previdência social, com o Imperador germânico Bismarck, em 1883, além dos avanços posteriores à 1ª e 2ª Guerras Mundiais. [17] Por essa razão, não se compreende o passo retrógrado e incompatível com os valores e princípios vigentes na ordem constitucional brasileira imposto pela Lei Complementar distrital n. 769/2008, ao abolir, em parte, o princípio securitário-social para os servidores públicos titulares de cargo de provimento efetivo.

45. Com efeito, todo o panorama da ordem social, com seus postulados mais elementares de promover justiça social, amparar os segurados do regime de previdência social na hipótese de revés da vida, de assegurar existência digna para os dependentes dos segurados servidores públicos titulares de cargo efetivo, em caso de encarceramento, foi lançado por terra, com a inovadora e inconstitucional disposição do art. 34, da Lei Complementar distrital n. 769/2008, ao estender a incidência do art. 201 para os vinculados ao regime próprio especial do funcionalismo público, negando amparo aos filhos e cônjuges do funcionário preso, remetendo-os à miséria e ao desemparo do regime previdenciário para o qual contribui, mensalmente, o servidor titular de cargo de provimento efetivo, negando vigência, ainda, ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que não seria aplicável aos dependentes do agente público contribuinte para o sistema previdenciário público especial, num descompasso marcante com todos os valores incutidos na Carta-cidadã de 1988.


VI. Caráter contributivo do sistema previdenciário dos servidores públicos titulares de cargo efetivo

46. Com outro escopo e espírito daquele visado pela Lei Complementar distrital 769/2008, a Constituição Federal, preocupada em assegurar a viabilidade e efetividade da proteção previdenciária aos servidores públicos e às suas famílias, instituiu regime obrigatório de caráter contributivo, isto é, um sistema mantido por contribuições reais do trabalhador, de forma atuarial, com a devida estimativa dos custos dos benefícios e seu repasse e inclusão no valor da cota de participação do funcionário, o qual, portanto, paga (e sobre a totalidade de sua remuneração) para que seus dependentes sejam tutelados pelo Estado (por meio de recursos oriundos do sistema previdenciário próprio do funcionalismo) em caso de sinistro, inclusive morte, ausência, enfermidade, invalidez, prisão. Consigne-se que não se trata de assistencialismo social, mas de sistema contributivo, mantido pelas contribuições mensais do servidor segurado ao longo de sua vida funcional. Não se cuida, pois, de um favor, uma concessão, um fardo imposto nas costas do contribuinte geral e cidadãos como um todo, mas, ao contrário, os benefícios previdenciários do funcionalismo público, inclusive auxílio-reclusão, constituem o gozo de direito legítimo custeado pelo próprio funcionário público, tanto que existe o critério atuarial para os benefícios previdenciários, os quais ainda são mantidos pelos demais vinculados ao regime próprio dos servidores titulares de cargo efetivo, em vista do princípio da solidariedade. Não se alude, pois, a um custo para a sociedade como um todo, porém de um sistema mantido pelas contraprestações regulares periódicas obrigatórias dos próprios servidores segurados.

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47. Em face disso, soa paradoxal que o regime previdenciário remeta a família do servidor público à miséria em caso de prisão, inclusive a processual, não decorrente de uma sentença penal condenatória irrecorrível, mas aquela decretada como simples meio de garantir a instrução do processo-crime e que não configura condenação criminal ainda. Daí a surpresa do quadro que presentemente se antevê em face dos termos do malsinado art. 34, da Lei Complementar distrital 769/2008, ao proscrever o pagamento de auxílio-reclusão aos familiares de servidores que auferem mais de R$ 360,00, os quais são considerados como se fossem indignos da proteção previdenciária e como se não precisassem do concurso estatal securitário-social num sinistro tão dramático como no caso de privação do sustento do núcleo familiar, retrocedendo à quadra histórica anterior à Idade Média, em que não havia regime previdenciário para as pessoas e seus familiares, em que o acaso regia a felicidade ou desgraça e privação até a morte dos núcleos familiares. Será que o Estado deve assistir impassível à necessidade e fome dos familiares de seus servidores presos? É para resultar num cenário de completa falta de solidariedade e de injustiça social e existência sem dignidade que a Constituição Federal foi inspirada do mandamento da instituição de um regime previdenciário próprio para os servidores titulares de cargo de provimento efetivo?

48. As normas constitucionais não podem ser interpretadas de forma a retirar eficácia dos princípios fundamentais do Estado de Direito brasileiro. É um "non-sense". De que valeria assegurar ao servidor público regime previdenciário de caráter contributivo e solidário (art. 40, Constituição Federal de 1988), mediante contribuição dos agentes estatais, se, no momento em que suas famílias ostentam maior necessidade, como é no caso de uma traumática prisão cautelar, por exemplo, o direito positivo distrital remeteria o núcleo familiar do funcionário à própria sorte, negando-lhe socorro, quando, paradoxalmente, seria para atender a uma situação como essa que existe o regime previdenciário do funcionalismo, por determinação constitucional.


VII. Hipóteses de prisão cautelar e auxílio-reclusão

49. A situação de perplexidade e injustiça se agrava quando se aprofunda no problema da hipótese de indevida e ilegal prisão cautelar, cumprida por meses ou anos por parte do servidor que responde a processo penal, posteriormente revogada ou cassada por meio de ordem judicial concessiva de habeas corpus, por exemplo, quiçá fundamentado na falta de justa causa para a própria ação penal, fato que não é raro e que já foi inclusive enfrentado, em parte, por injustiçados servidores, injustamente agravados no exercício funcional e processados criminalmente sem justa causa, embora sem constrangimento ilegal de ordem de prisão (que, em outros casos, pode ocorrer, em tese), aos quais foi concedida a ordem de habeas corpus para trancamento do processo criminal indevidamente manejado pelo representante do Ministério Público. Deveriam as famílias dos servidores, cujas esposas percebam salário, por exemplo, de R$ 400,00 ou R$ 500,00, ou pouco mais do que isso, serem remetidas à amargura de severas e quiçã incontornáveis dificuldades econômicas, tudo por conta do capitulado no malsinado art. 34, da Lei Complementar distrital 769/2008, ao impor a cruel disciplina, descabida para os servidores estatutários, do art. 13, da Emenda 20/1998?

50. Será que o servidor cuja família percebe pouco mais de 365 reais não precisa também contar com o regime previdenciário público? Será que os filhos do agente público casado, não divorciado nem separado judicialmente, que habitavam com o funcionário encarcerado, devem ser lançados na miséria, se, por acaso, o servidor ou sua esposa e mãe dos descendentes do agente público detido recebe quatrocentos, seiscentos, oitocentos reais por mês? É no sentido de abonar uma situação dessas que a Constituição Federal, que enalteceu em seu seio, como princípio sensível, a dignidade da pessoa humana, deve ser interpretada, desaguando em tamanha iniqüidade?

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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Direito ao auxílio-reclusão dos servidores públicos titulares de cargos de provimento efetivo.: A exegese do art. 13 da Emenda Constitucional nº 20/1998, paralelamente à inconstitucionalidade da Lei Complementar distrital nº 769/2008. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2077, 9 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12435. Acesso em: 22 nov. 2024.

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