VIII. O princípio da dignidade da pessoa humana
51. Ao contrário, o auxílio-reclusão é devido justamente porque o trabalhador não pode mais arcar com o sustento de seus dependentes. Por estar impedido de exercer o seu ofício, torna-se inviável a percepção de sua remuneração, o que afeta direta e intrinsecamente a estabilidade financeira daqueles que contam com seu suporte para o acesso aos bens da vida. Em termos práticos, deixa-se de receber o imprescindível ao pagamento dos estudos dos filhos, assistência médica da família, supermercado do mês, aluguel da casa, impostos devidos ao governo, dentre outras inúmeras obrigações a que o servidor, naturalmente, está vinculado. Como entender, assim, que o auxílio-reclusão não deve ser a ele devido, que seria dispensável? Qual seria a justificativa para que se condenasse a família e dependentes do servidor, se não à miséria, a uma radical e tortuosa privação de bens básicos para o seu crescimento e sobrevivência? Teria sido este o intuito do legislador distrital: romper com a estabilidade e sobrevivência da família, base da sociedade e merecedora de especial proteção do Estado?
52. Por ser benefício previdenciário, o auxílio-reclusão deve ser dirigido àqueles que dele necessitam: os dependentes do servidor preso e sua família. Ora, como excluir o indispensável benefício previdenciário de beneficiários que, com a prisão do funcionário segurado, ficaram totalmente desprovidos de renda? Ou, ainda, que a renda remanescente não seja suficiente para a subsistência digna da família? Como ignorar a patente necessidade a que a família do recluso será submetida, após a privação dos meios de sustento deste? Para que, então, a Constituição Federal teria instituído um regime previdenciário para o funcionalismo público? - pergunta-se novamente. A previdência que não atende à necessidade se afina com seus fins securitários?
52.1. Paralelamente, sob outro aspecto, a Constituição Federal asseguraria a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental e o direito à existência digna, bem como enalteceria o mandamento de construção de uma sociedade justa e solidária, inclusive com a proteção da família, mas, em sentido conflitante, a própria Constituição Federal, nos termos do art. 13, da Emenda 20/1998 (como demonstrado anteriormente, em nosso ver, inaplicável aos servidores não vinculados ao regime geral da previdência social), e a legislação infraconstitucional (art. 34, da Lei Complementar distrital n. 769/2008) determinariam que seria negada aos familiares e dependentes financeiros do servidor preso a concessão de benefício previdenciário essencial para a sobrevivência dos filhos e do cônjuge do agente público, apesar de ele contribuir sobre a totalidade de sua remuneração para o regime previdenciário público especial, exatamente para enfrentar os riscos de enfermidade, morte e reclusão!
53. A criação de um sistema previdenciário para o servidor público, inspirado no princípio da universalidade de cobertura, não pode ser reputada senão como visível forma de assegurar o direito à existência digna dos familiares do servidor público, inquestionavelmente como reflexo da consubstancialidade, no particular, do princípio da dignidade da pessoa humana, que deve pautar toda a aplicação do direito pátrio.
54. Ingo Wolfgang Sarlet ensina sobre o princípio da dignidade da pessoa humana:
Consagrando, expressamente, no título dos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado democrático (e social) de Direito (art. 1º, inc. III, da CF), o nosso Constituinte de 1988 – a exemplo do que ocorreu, entre outros países, na Alemanha-, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, recoheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal. [18]
55. Se o Estado existe em função do ser humano, como corolário do princípio da dignidade, segue que o regime previdenciário do servidor público não pode ser instituído de forma a violar o núcleo fundamental desse princípio sensível da Constituição Republicana, como se deu com a remessa da família do servidor preso ao total desemparo securitário-social, nos termos da Lei Complementar distrital 769/2008, manifestamente em descompasso com a Carta-cidadã de 1988 ao negar (art. 34), na grande maioria dos casos (visto que poucos servidores ou dependentes percebem apenas pouco mais do que salário mínimo na Administração Pública distrital), os meios previdenciários para sobrevivência da família do servidor encarcerado, frustrando o fim da universalidade de cobertura do sistema de previdência social do servidor público.
56. Ingo Wolfgang Sarlet confirma que o princípio constitucional da dignidade envolve o direito a prestações mínimas pelo Estado em favor da pessoa humana, em vista de assegurar uma existência decente:
Onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças. [...] Do substrato material da dignidade decorrem quatro princípios jurídicos fundamentais, nomeadamente: [...] da integridade física e moral (que, no nosso sentir, incluir a garantia de um conjunto de prestações materiais que asseguram uma vida com dignidade. [...] Respeito e proteção da dignidade humana necessitam do engajamento material e ideal do Estado. A garantia da dignidade humana pressupõe uma pretensão jurídico-prestacional do indivíduo ao mínimo existencial material. [19] [...] Os direitos sociais de cunho prestacional (direitos a prestações fáticas e jurídicas) encontram-se, por sua vez, a serviço da igualdade e da liberdade material, objetivando, em última análise, a proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e Pa garantia de uma existência com dignidade, constatação esta que, em linhas gerais, tem servido para fundamentar um direito fundamental (mesmo não expressamente positivado, como já demonstrou a experiência constitucional estrangeira) a um mínimo existencial, compreendido aqui – de modo a guardar sintonia com o conceito de dignidade proposto nesta obra – não como um conjunto de prestações suficientes apenas para assegurar a existência (a garantia da vida) humana (aqui seria o caso de um mínimo apenas vital) mas, mais do que isso, uma vida com dignidade, no sentido de uma vida saudável (como deflui do conceito de dignidade adotado nesta obra) ou mesmo daquilo que tem sido designado de uma vida boa.[...] Constata-se – pelo menos entre nós em expressiva parcela da doutrina (mas também, embora talvez ainda com menor ênfase) e da jurisprudência – um crescente consenso no que diz com a plena justiciabilidade da dimensão negativa (defensiva) dos direitos sociais em geral e da possibilidade de se exigir em Juízo pelo menos a satisfação daquelas prestações vinculadas ao mínimo existencial, de tal sorte que também nesta esfera a dignidade da pessoa humana (notadamente quando conectada ao direito à vida) assume a condição de metacritério para as soluções tomadas no caso concreto, o que, de resto, acabou sendo objeto de reconhecimento em decisão recente de nosso Supremo Tribunal Federal. Nesse contexto, vale lembrar, ainda, que o ponto de ligação entre a pobreza, a exclusão social e dos direitos sociais reside justamente no respeito pela proteção da dignidade da pessoa humana, já que – de acordo com Rosenfeld - ´onde homens e mulheres estiverem condenados a viver na pobreza, os direitos humanos estarão sendo violados´. Assim sendo e apesar da possibilidade de se questionar a vinculação direta de todos os direitos sociais (e fundamentais em geral) consagrados na Constituição de 1988 com o princípio da dignidade da pessoa humana, não hpa como desconsiderar ou mesmo negar tal conexão, tanto mais intensa, quanto maior a importância dos direitos sociais para a efetiva fruição de uma vida com dignidade. [20]
57. O princípio da dignidade da pessoa humana, em seu caráter prestacional, envolve a concessão pelo Estado dos meios financeiros elementares, a título de benefício previdenciário decorrente das contribuições mensais do servidor público para seu sistema de previdência especial, no intuito de que a família do agente público segurado possa auferir os recursos para enfrentar uma contingência tão severa como a traumática prisão do co-mantenedor majoritário ou mesmo arrimo da família. É com essa negativa à existência digna (art. 170, Constituição Federal) dos dependentes do servidor público, no entanto, que a legislação distrital pretende dar cumprimento aos princípios fundamentais constitucionais de construir uma sociedade solidária e justa (art. 3º, I, Constituição Federal)? É com uma disposição dessa natureza que a Lei Complementar distrital em comento pretende se harmonizar com os objetivos do DF de garantir e promover os direitos humanos assegurados na Constituição Federal e promover o bem de todos, de proporcionar condições de vida compatíveis com a dignidade humana e a justiça social (art. 3º, incisos I, IV e V, da Lei Orgânica do Distrito Federal)?
58. Paulo Lôbo refuta: "Liberdade, justiça, solidariedade são os objetivos supremos que a Constituição brasileira (art. 3º, I) consagrou para a realização da sociedade feliz." [21]
59. Como compatibilizar a norma complementar distrital ora impugnada com a Constituição Federal e a Lei Orgânica do DF, se o malsinado dispositivo da LC/DF n. 769/2008 nega vigência ao princípio da dignidade da pessoa humana?
IX. Princípio da eficiência da Administração Pública
60. Uma disposição legislativa como a ora censurada, não bastasse, representa direta colidência com o princípio da eficiência da Administração Pública do Distrito Federal (art. 37, caput, Constituição Federal de 1988). Explica-se. É que alguns servidores públicos, como agentes de trânsito e policiais civis, por exemplo, munidos de armas de fogo, vêem-se, contigencialmente, em situação de manejo de meios necessários contra criminosos, o que pode resultar, eventualmente, todavia, em responsabilidade penal dos servidores da área de segurança pública, inclusive prisão preventiva ou em flagrante delito, quiçá, por paradoxal, pelo estrito cumprimento do dever legal, se porventura outra autoridade policial ou ministerial ou judiciária entender diversamente, primo oculi, quanto à ilicitude-culpabilidade da conduta, sobre a análise dos fatos ocorridos. Até, contudo, o desfecho do processo criminal, com a lavra de sentença penal absolutória, o acusado preso, por meses a fio ou até anos, saberá que sua família estará fadada à penúria e à miséria, por não ter direito ao auxílio-reclusão.
61. Ora, ciente dos riscos envolvidos para a manutenção ou mesmo de ruína financeira de sua família, ante a inexistência do direito ao auxílio-reclusão, qual será o policial ou servidor que assumirá os riscos de enforçar a ordem e a segurança pública em meio à possibilidade de seus entes queridos serem remetidos à desdita pela disposição conflitante com o direito deles à existência digna, como contrariado pelo art. 34, da Lei Complementar n. 769/2008?
X. Princípio da contributividade e solidariedade do regime previdenciário próprio dos servidores públicos titulares de cargo de provimento efetivo
62. Sob outro ângulo, não é difícil perceber que a disposição em comento da Emenda Constitucional 20/1998, bem como da LC 769/2008, não poderiam incorrer senão em indisfarçada inconstitucionalidade, se interpretada da forma como literalmente veiculada. Isso porque o servidor público, titular de cargo de provimento efetivo, diferentemente do segurado do regime geral da previdência social, contribui sobre a totalidade de seus vencimentos, e não sobre um teto de contribuição (pelo menos os que não se encontram na situação de se sujeitar à regulamentação de previdência complementar, porque ingressos no serviço público antes mesmo do advento da Emenda Constitucional n. 41/2003).
63. Se o regime é contributivo e solidário, por força de preceito constitucional (art. 40, caput, Constituição Federal de 1988), e já que o servidor contribui sobre a integralidade de seus vencimentos, por que apenas os funcionários que percebem até 365 reais teriam direito ao auxílio-reclusão, e não todos os demais, que igualmente contribuem para que suas famílias gozem do concurso previdenciário especial quando necessário?
64. Nesse particular, vigora inconstitucionalidade material em face do art. 40, caput, da Constituição Federal (caráter contributivo do regime previdenciário especial do servidor público). Quem contribui deve ter direito ao benefício previdenciário correspondente, imperioso para a manutenção e sobrevivência de sua família. Por isso que se afigura mais acertada a forma de pagamento do auxílio-reclusão definida no art. 229, da Lei n. 8.112/1990, a qual vincula o valor do benefício a dois terços da remuneração enquanto não há condenação definitiva e metade dos vencimentos quando do cumprimento de pena, fazendo valer o critério contributivo constitucional, pois o servidor contribui também proporcionalmente à sua remuneração para o sistema previdenciário, sendo escorreito que cada um perceba, da mesma forma, um auxílio-reclusão conforme o montante remuneratório de cada funcionário público titular de cargo efetivo. Nesse propósito, calha a lembrança de Antonio Penteado Mendonça:
O princípio da eqüidade na forma de participação do custeio plasma a necessidade de se levarem em conta as diferenças interpessoais, visando a um tratamento justo com base na capacidade de ação e patrimônio de cada um. [22]
XI. Violação à proibição do efeito de confisco da contribuição previdenciária dos servidores públicos titulares de cargos efetivos
65. Ter-se-ia, no caso, em conseqüência, outrossim, caráter de confisco no tributo da contribuição previdenciária, com ofensa ao disposto no art. 150, IV, c.c. art. 149, § 1º, da Constituição Federal de 1988. Chama a atenção o fato de que, nos termos do dispositivo constitucional, a contribuição previdenciária incidente sobre os servidores públicos distritais, deve ser instituída "em benefício destes" (art. 149, § 1º, da Constituição Federal de 1988 [23]). Antolha-se nitidamente a inconstitucionalidade do art. 34, da Lei Complementar distrital 768/2009, no particular, por recolher contribuição previdenciária que deixa de reverter em benefício dos servidores, visto que foi suprimido para a grande maioria dos segurados contribuintes o concurso previdenciário no caso de prisão, uma das situações de risco que deveriam estar amparadas pelo regime de seguridade social próprio do funcionalismo e imbutidas na prestação mensal com que arcam os agentes públicos vinculados ao sistema. Verifica-se que existe contribuição sem benefício correspondente, o que colide com o postulado constitucional da contributividade do regime previdenciário do art. 40, da Carta-cidadã da República.