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Direito ao auxílio-reclusão dos servidores públicos titulares de cargos de provimento efetivo.

A exegese do art. 13 da Emenda Constitucional nº 20/1998, paralelamente à inconstitucionalidade da Lei Complementar distrital nº 769/2008

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XII. Princípio da isonomia

66. A medida legislativa distrital, sob outra ótica, descoincide com o núcleo essencial do princípio constitucional da isonomia, no sentido de que não se justifica excluir alguns servidores dos benefícios do regime previdenciário para o qual todos contribuem. Apenas as famílias de alguns teriam direito ao amparo estatal, enquanto a dos demais deveriam ficar desassistidas, quando, porém, todos os funcionários efetivos contribuem para o sistema previdenciário especial? Não há como compatibilizar a Lei Complementar distrital 769/2008 (art. 34) com o capitulado no art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, portanto. A previdência social não deve ser universal e amparar todos os servidores públicos? Seria possível dizer que só alguns funcionários apenas teriam direito a auxílio-doença ou aposentadoria ou pensão por morte? É possível discriminar alguns, excludentemente, se a finalidade do regime previdenciário obrigatório universal é amparar todos os segurados e seus familiares em meio aos eventos adversos de invalidez, morte, doença, prisão?


XIII. Princípio da unidade da Constituição

67. É mister fincar que a interpretação das normas constitucionais não pode resultar em contradições no próprio corpo da Carta. Como se assegura existência digna aos familiares do servidor público (art. 1º, III, art. 3º, I, art. 170, caput), regime previdenciário especial para cobrir os riscos a que sujeito o funcionalismo e seus dependentes (art. 40), além de se deferir proteção à família por parte do Estado (art. 226), enquanto a própria Constituição Federal, por força do art. 13, da Emenda 20/1998, negaria o direito de auxílio-reclusão e remeteria os familiares dos servidores públicos estatutários titulares de cargos efetivos à miséria na eventualidade do sinistro de prisão do servidor?

68. Sobre a interpretação da Constituição calham as lições dos mestres do direito constitucional Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco:

Não ocorrem conflitos reais entre as normas da Constituição, mas apenas conflitos aparentes, seja porque elas foram promulgadas conjuntamente, seja porque não existe hierarquia nem ordem de precedência entre as suas disposições [...] À luz do postulado do legislador racional – um legislador que, sendo coerente, não permite conflitos entre normas -, qualquer disputa entre critérios interpretativos é também (des)qualificada, desde logo, como um confronto meramente aparente, a ser resolvido pelo aplicador do direito, de quem se esperam soluções igualmente racionais. Noutro dizer, se o objeto a ser interpretado – seja ele uma norma ou um conjunto de normas – é algo que se considra racional por definição, então essa mesma racionalidade há de presidir o manejo dos princípios que regulam a sua interpretação. [...] Princípio da unidade da constituição. Segundo essa regra de interpretação, as normas constitucionais devem ser vistas não como normas isoladas, mas como preceitos integrados num sistema unitário de regras e princípios, que é instituído na e pela própria Constituição. Em conseqüência, a Constituição só pode ser compreendida e interpretada corretamente se nós a entendermos como unidade, do que resulta, por outro lado, que em nenhuma hipótese devemos separar uma norma do conjunto em que ela se integra, até porque – relembre-se o círculo hermenêutico – o sentido da parte e o sentido do todo são interdependentes [...] Princípio da concordância prática ou da harmonização. O princípio da harmonização ou da concordância prática consiste, essencialmente, numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a relação de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum. [24]

69. Na mesma toada, Christine Oliveira Peter da Silva comenta sobre o princípio da unidade da Constituição:

O princípio da unidade da Constituição informa que todo o Direito Constitucional deve ser interpretado de forma a evitar contradições entre suas normas, ou seja, impõe a não-existência de uma dualidade de textos constitucionais. [...] A principal conseqüência desse princípio é a de que, segundo ele, as normas constitucionais devem sempre ser consideradas como parte de um todo, coesas e mutuamente imbricadas. Assim, revela-se necessário que o intérprete procure as recíprocas implicações, tanto de preceitos como de princípios, até chegar a uma vontade unitária da Constituição. Disso resulta que, em matéria de direito constitucional, a consideração sistêmica do texto constitui um imperativo decorrente da própria supremacia constitucional. Ora, diante de tais considerações, tem-se que, em última análise, o princípio da unidade da Constituição é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas. [25]

70. Daí que se afigura geradora de conflito no seio da Constituição a interpretação de que os servidores públicos estatutários teriam sido incluídos na regra do art. 13, da Emenda 20/1998, e não teriam sido contemplados pelo direito ao auxílio-reclusão.


XIV. Princípio da proteção da família pelo Estado

71. As linhas precedentes servem a nova abordagem da inconstitucionalidade da norma complementar distrital, desta vez sob o prisma da família como objeto de especial proteção do Estado. Reza a Constituição Federal: "Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado."

72. Anota Silvio Rodrigues:

O indivíduo nasce dentro de uma família, que é a de seu pai, aí floresce e se desenvolve até constituir sua própria família; numa e noutra está sujeito a várias relações de seu interesse imediato, tais o pátrio poder, o direito de obter e obrigação de prestar alimentos a seus parentes. [...] Interesse do Estado na sólida organização da família e na segurança das relações humanas, que se propõem na esfera do direito de família. [...] O Estado, na preservação de sua própria sobrevivência, tem interesse primário em proteger a família, por meio de leis que lhe assegurem o desenvolvimento estável e a intangibilidade de seus elementos institucionais. [...] A família se apresenta, portanto, como instituição que surge e se desenvolve do conúbio entre o homem e a mulher e que vai merecer a mais deliberada proteção do Estado, que nela vê a célula básica de sua organização social. [26]

73. Maria Helena Diniz consigna:

Para efeitos previdenciários a família abrange o casal, os filhos de qualquer condição até 21 anos (desde que não emancipados) ou inválidos ou inválidas, enteados e menores sob tutela (sem bens suficientes para seu sustento e educação), incluindo convivente do trabalhador [...] Entendendo-se como família o grupo fechado de pessoas, composto de pais e filhos, e, para efeitos limitados, de outros parentes, unidos pela convivência e afeto, numa mesma economia e sob a mesma direção [...] Caráter econômico, por ser a família o grupo dentro do qual o homem e a mulher, com o auxílio mútuo e o conforto afetivo, se munem de elementos imprescindíveis à sua realização material, intelectual e espiritual. [27]

74. Carlos Roberto Gonçalves também ensina:

A família é uma realidade sociológica e constitui a base do Estado, o núcleo fundamental em que repousa toda a organização social. Em qualquer aspecto que é considerada, aparece a família como uma instituição necessária e sagrada, que vai merecer a mais ampla proteção do Estado. [...] A milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução de valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos filhos. [...] o direito de família é o mais humano de todos os direitos. [...] O princípio do respeito à dignidade da pessoa humana constitui, assim, base da comunidade familiar, garantindo o pleno desenvolvimento e a realização de todos os seus membros, principalmente da criança e do adolescente. [28]

75. Paulo Lôbo aponta:

A proteção do Estado à família é, hoje, princípio universalmente aceito e adotado nas constituições da maioria dos países, independentemente do sistema político ou ideológico. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, assegura às pessoas humanas o direito de fundar uma família, estabelecendo o art. 16.3: "A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. A Constituição de 1988 proclama que a família é a base da sociedade. Aí reside a principal limitação ao Estado. A família não pode ser impunemente violada pelo Estado, porque seria atingida a base da sociedade a que serve o próprio Estado. A família, ao converter-se em espaço de realização da afetividade humana. Retoma-se o o itinerário da afirmação da pessoa humana como objetivo central do direito. A pessoa humana deve ser colocada como centro das destinações jurídicas. [29]

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76. Em meio a esse panorama constitucional de elevação da família, em face ainda do preceito constitucional relevante de que o Estado concederá especial proteção à instituição basilar da própria sociedade (art. 226, caput, Constituição de 1988), como seria possível sustentar a interpretação constitucional de que as famílias dos servidores públicos distritais presos (que contribuem para o regime previdenciário especial do funcionalismo para lograr proteção estatal em caso de reclusão do arrimo da família), que auferem mais de trezentos e sessenta reais, praticamente a totalidade do funcionalismo, simplesmente não teriam direito ao auxílio-reclusão? Qual família de servidor público, no DF, consegue sobreviver com uma renda de trezentos e sessenta reais? Essa quantia mal basta para pagamento de aluguel de uma quitinete em Ceilândia-DF, quanto menos para sustentar as necessidades múltiplas de alimentação, saúde, lazer, educação, entre outros.

77. Ora, o homem é um ser social, realiza-se pela vida e convívio em sociedade, logrando satisfação e realização em suas funções sociais, dentre as quais sobressai sua posição no grupamento familiar, como pai, marido, companheiro. Não é possível dissociar o ser humano, enquanto servidor público, de sua postura como membro de uma família. Qual o funcionário que pode trabalhar ciente de que seus entes queridos, apesar de o agente público contribuir mensalmente para o regime previdenciário próprio distrital, estão largados ao léu financeiramente, abandonados à própria sorte, quiçá bebês, filhos pequenos, todos sujeitos ao desamparo do Estado, submetidos à negativa por parte do DF do direito a uma existência e sobrevivência digna, em caso de aprisionamento (inclusive cautelar) do pai de família? É para agasalhar um quadro teratológico como esse que o direito insculpiu como pedra angular o princípio da dignidade da pessoa humana e a especial proteção pelo Estado à instituição da família? Para que, então, existe regime previdenciário se praticamente os familiares e dependentes econômicos de todos os servidores públicos distritais não terão direito à assistência estatal no caso de prisão do segurado do regime público especial? O valor fundamental da tutela do núcleo familiar, encimado pela Carta-cidadã de 1988, nada representa, contudo, para o legislador complementar-ordinário distrital?

78. Pelo critério atuarial e do atendimento universal, o benefício deve existir, ainda que se inclua seu custo no valor da contribuição mensal do servidor. Mas negar o concurso previdenciário aos familiares do servidor preso seria abrigar, no seio da Constituição, uma série de incoerências e antinomias: de um lado, a defesa da família, o direito à existência digna, a cobertura obrigatória do funcionalismo público por um regime previdenciário especial, mas, de outro, o completo desamparo dos familiares em caso de sinistro, como na hipótese de prisão. Não é num resultado desses que deve desaguar a hermenêutica constitucional.

79. Não é só. Indaga-se: quantos servidores públicos-familiares usufruem, presentemente, do benefício previdenciário do auxílio-reclusão? Qual é o montante despendido, percentualmente, da totalidade da arrecadação com as contribuições previdenciárias do funcionalismo, com a verba previdenciária em alusão? Há justificativa, sob a ótica do princípio da proporcionalidade, de que algumas pouquíssimas famílias apenas não sejam submetidas à miséria e à privação penosa financeira (em caso de prisão do servidor distrital, contribuinte do sistema previdenciário), com a indiferença do regime previdenciário público, em vista da economia correspondente para os cofres do sistema de seguridade social? Quantas famílias de servidores públicos, indaga-se de novo, conseguem sobreviver no DF, ante o elevadíssimo custo de vida desta Capital Federal, com uma renda de trezentos e sessenta reais? Limitar o direito ao benefício previdenciário a esse montante, significa, na prática, negar o direito ao auxílio-reclusão para quase a totalidade dos servidores públicos ocupantes de cargo efetivo na Administração Pública distrital.

80. Calha lembrar sobre o princípio da proporcionalidade a cátedra do desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e professor de direito constitucional Kildare Gonçalves Carvalho, em seu livro de 1.543 páginas:

A proporcionalidade em sentido estrito implica no sopesamento dos interesses em jogo, isto é, a ponderação das tensões entre os princípios em concorrência: pesa-se as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim. A providência adotada deve ser proporcional ao conjunto de interesses jurídicos em exame. O que se ganha com a medida deve ser mais lucrativo do que aquilo que se perde. Pondera-se o prejuízo relativamente ao benefício trazido, sendo que a vantagem do ato deve superar eventuais desvantagens que dele resultam. [30]

81. Será que a economia que se pretende obter para os cofres previdenciários, com meia dúzia de beneficiários, justifica a paralela perda do direito à existência digna e da própria vida, pela fome e miséria e necessidade, de poucos dependentes do servidor público que mensalmente contribui para sistema, sobre a totalidade de sua remuneração?

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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Direito ao auxílio-reclusão dos servidores públicos titulares de cargos de provimento efetivo.: A exegese do art. 13 da Emenda Constitucional nº 20/1998, paralelamente à inconstitucionalidade da Lei Complementar distrital nº 769/2008. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2077, 9 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12435. Acesso em: 19 abr. 2024.

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