Capítulo 4 - Crimes de responsabilidade ou atos de improbidade administrativa
A administração da coisa pública sempre deu origem a críticas dentro da estrutura social brasileira. Tais críticas são levadas a termo tanto pela população, se referindo, para tanto, como o problema da corrupção, como por estudiosos que procuram definir e buscar soluções acerca do problema.
4.1. Crimes de responsabilidade.
Os crimes de responsabilidade remontam à Inglaterra entre os séculos XIII e XIV, dentro da idéia de responsabilidade penal de altas autoridades públicas, ante o Parlamento, como bem explica Medina Osório [95].
Ainda a respeito das origens do crime de responsabilidade, Fábio Medina Osório [96] leciona:
É certo que embora venha do Direito inglês, a idéia de "delitos de responsabilidade" tem suas raízes modernas no Direito norte-americano, com seu pragmatismo e seu espírito republicano. Naquele país, o Direito Penal baliza a responsabilidade dos altos mandatários da Nação. É o processo de "impeachment", outrossim, um dos corolários lógicos do princípio da responsabilidade, ganhando realce, aqui, a dimensão política dessa espécie de responsabilidade.
A respeito da natureza dos crimes de responsabilidade, Fábio Medina Osório [97] informa que existem três grandes vertentes acerca do tema: os que defendem a natureza criminal dos delitos de responsabilidade, os que defendem a natureza política e, por fim, os que sustentam a natureza mista do ilícito. O STF, por sua vez, entende que se trata de delitos no sentido criminal da expressão, embora o julgamento seja de natureza política. Por outro lado, conforme exposto por Gabriel Abrão Filho [98], prevalece na doutrina o entendimento manifestado por Paulo Brossard, no sentido de que se trata de infrações de natureza político-administrativa.
No sistema vigente, ocupando o agente o cargo de Presidente da República, Ministro de Estado, Ministro do Supremo Tribunal Federal ou Procurador-Geral da República, o crime de responsabilidade por ele praticado será julgado pelo Senado Federal. No caso do Governador do Estado, do Distrito Federal ou de Território, o julgamento será da respectiva Assembléia Legislativa.
A Lei que regula os crimes de responsabilidade das autoridades citadas acima é a Lei nº 1.079/1950, conhecida como Lei dos Crimes de Responsabilidade. Por seu turno, a norma que regula os crimes de responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores é o Decreto-lei nº 201/1967. Percebe-se que são duas legislações muito antigas e que não tiveram a sua eficácia comprovada ao longo do tempo.
Nesse sentido, Fábio Medina Osório [99] tece uma crítica ferrenha à Lei dos Crimes de Responsabilidade:
Se estivesse funcionando a contento, com todo o vigor necessário, essa legislação certamente tornaria desnecessária, do ponto de vista político-institucional, a LGIA para os agentes públicos enquadráveis nessa normativa. Não é o que ocorreu, ou ocorre, porque a Lei dos Crimes de Responsabilidade falhou, nas mãos de Instituições competentes, como instrumento de contenção da improbidade.
Após esta breve análise acerca dos crimes de responsabilidade, passaremos ao próximo item onde iremos analisar com mais profundidade a relação existente entre os crimes de responsabilidade e os atos de improbidade administrativa e a conseqüente independência das esferas de ilicitude.
4.2. A relação entre crimes de responsabilidade e atos de improbidade administrativa
Iremos nos ater, prioritariamente, a analisar os fatos tendo como referência a Lei dos Crimes de Responsabilidade, pois é ela que é usada como paradigma no caso analisado pelo Supremo Tribunal Federal na Reclamação 2.138-6-DF.
É importante, neste momento, ressaltarmos que tanto a Constituição Federal quanto a Lei dos Crimes de Responsabilidade não excluem a responsabilização do acusado nas demais sanções judiciais cabíveis. Assim, a Lei nº 1.079/50, em seu artigo 3º, de forma expressa, dispõe que a imposição de pena por cometimento de crime de responsabilidade não exclui processo e julgamento do acusado de crime comum, na justiça ordinária, nos termos das leis de processo penal, revelando, dessa forma, uma nítida distinção entre os crimes comuns e os crimes de responsabilidade.
A respeito do exposto, Mônica Nicida Garcia [100] leciona que não encontra guarida na Constituição Federal a tese de que os agentes políticos por responderem por crime de responsabilidade seriam exonerados da responsabilização por crime comum, por ilícito civil, ou por ato de improbidade administrativa.
Tanto é assim que o art. 52 da Magna Carta prevê que a condenação se dará sem o prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis, tal como ressaltamos anteriormente neste trabalho. A interpretação de tal disposição constitucional só nos permite chegar a opinião de que a Constituição em nenhum momento afastou os agentes políticos da possibilidade de responsabilização por atos de improbidade administrativa por estarem sujeitos à incidência da Lei dos Crimes de Responsabilidade.
Nesse sentido, Gabriel Abrão Filho [101] assevera:
Se se quiser concluir que o fato de a Constituição ter previsto a esfera de responsabilidade político-administrativa exclui a possibilidade de responsabilização em qualquer outra instância ou esfera, ainda que constitucionalmente albergada, como é o caso da improbidade administrativa, haverá que se admitir que inexiste, para os agentes políticos, a responsabilidade penal, o que, verdadeiramente, não se concebe. Então, se existe a responsabilidade penal e se esta não se confunde, nos termos da lei, da doutrina e da jurisprudência, com a responsabilidade pela prática de ato de improbidade administrativa, é inafastável a conclusão pela existência e incidência desta última.
Deve-se trazer então, à discussão, se a figura da improbidade administrativa disposta no art. 85, V, da CF é a mesma que se encontra tipificada no art. 37, §4º, da CF.
Fábio Medina Osório [102] entende que a improbidade do art. 37 é diversa daquela encontrada no art. 85, e, para tanto leciona:
Entendemos que a improbidade do art. 37, § 4º, não se confunde nem é eliminada por aquela contemplada no art. 85, V, ambas da Magna Carta. Não é o mesmo falar de Improbidade no marco da Lei 1079/50, a raiz do que prevê o art. 85, V, da CF, que falar da enfermidade prevista no art. 37, § 4º, da CF. E isso porque a CF previu que a Improbidade ali desenhada não é um ilícito penal, sendo distintas e peculiares as conseqüências previstas. O que estamos a sustentar encontra respaldo no próprio STF, no STJ e em posicionamento recente da Procuradoria-Geral da República, porque todos, sem dúvida, preconizam, de uma parte, a natureza penal dos delitos de responsabilidade, e, de outra, a natureza não penal dos ilícitos de improbidade.
Na mesma linha de pensamento, encontramos a opinião de Wallace Paiva Martins Júnior [103] que argumenta:
[...] o que há são instâncias diferentes e autônomas para diversas qualificações jurídicas de um mesmo fato. Embora o efeito prático de algumas sanções seja equivalente, não há reserva ou exclusividade de "jurisdição" ao Poder Legislativo para repressão da improbidade administrativa. O regime republicano é o da responsabilidade sem comportar a abertura de nichos de imunidade do poder, razão pela qual a Lei Federal n. 8.429/92 aplica-se a qualquer ato de improbidade administrativa de qualquer dos Poderes.
Mais adiante, Martins Júnior [104] defende que se o ordenamento jurídico tivesse a intenção de excluir das punições da Lei de Improbidade Administrativa os agentes políticos objetivando que os mesmos só estariam sob a égide do regime jurídico da responsabilidade política, os legisladores teriam instituído a "cláusula de exceção expressamente e não conferiria a possibilidade de sua censura em diferentes instâncias [...] como feito nos arts. 14, § 4º, e 85 da Constituição Federal".
É importante, ainda, colacionar a análise de Fernando Grela Vieira [105]:
A defesa da probidade, no caso de agentes políticos, não pode ser exclusividade dos crimes de responsabilidade, mesmo porque se a conduta não estiver prevista na lei especial respectiva, não se cogita da ocorrência de crime de tal natureza. Mas, ainda assim, não há impedimento a que o ato seja considerado improbidade administrativa, nos termos da Lei 8.429/1992, com todas as conseqüências legais.
Como bem defende Luiz Gonzaga Pereira Neto [106], o argumento de que a submissão dos agentes políticos ao regime de crimes de responsabilidade afastaria a concorrência com a responsabilização de acordo com a Lei de Improbidade Administrativa corresponderia a bis in idem, não deve prosperar, pois inexiste dependência entre as diferentes esferas de responsabilidade (tanto administrativa, civil e penal). Ele ainda afirma:
[...] embora se pretenda punir o mesmo fato, trata-se de punições em esferas distintas do direito. A condenação do Réu ímprobo no Processo Penal, por exemplo, não lhe assegura o direito de não responder, pelo mesmo fato, nas esferas civil e administrativa [107].
Passemos, então, para a análise da Reclamação nº 2.138-6-DF.
4.3. A reclamação nº 2.138-6-df
Acerca da Reclamação nº 2.138-6-DF, Fábio Medina Osório [108] relembra um fato inusitado, afinal de contas foi a União Federal quem propôs a sobredita Reclamação no STF em face de decisão proferida pela Justiça Federal do Distrito Federal, pela qual foi condenado ex-ministro de Estado nas penas da Lei de Improbidade Administrativa. A curiosidade suscitada é que a União Federal figura como defensora direta dos interesses do acusado, o que não deixa de ser uma distorção em si mesma, em se tratando de ação punitiva endereçada pessoalmente contra o agente público, e não contra a entidade estatal.
Feitas essas colocações acerca do tema, é hora de analisarmos a r. decisão do Excelso Supremo Tribunal Federal que excluiu do campo de incidência da Lei nº 8.429/92 os agentes políticos. Para tanto, é imprescindível citar a Ementa da decisão, in verbis:
RECLAMAÇÃO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CRIME DE RESPONSABILIDADE. AGENTES POLÍTICOS.
I – PRELIMINARES. QUESTÕES DE ORDEM.
I.1. Questão de ordem quanto à manutenção da competência da Corte que justificou, no primeiro momento do julgamento, o conhecimento da reclamação, diante do fato novo da cessação do exercício da função pública pelo interessado. Ministro de Estado que posteriormente assumiu cargo de Chefe de Missão Diplomática Permanente do Brasil perante a Organização das Nações Unidas. Manutenção da prerrogativa de foro perante o STF, conforme o art. 102, I, "c", da Constituição. Questão de ordem rejeitada.
I.2. Questão de ordem quanto ao sobrestamento do julgamento até que seja possível realizá-lo em conjunto com outros processos sobre o mesmo tema, com participação de todos os Ministros que integram o Tribunal, tendo em vista a possibilidade de que o pronunciamento da Corte não reflita o entendimento de seus atuais membros, dentre os quais quatro não tem direito a voto, pois seus antecessores já se pronunciaram. Julgamento que já se estende por cinco anos. Celeridade processual. Existência de outro processo com matéria idêntica na seqüência da pauta de julgamento do dia. Inutilidade do sobrestamento. Questão de ordem rejeitada.
II. MÉRITO.
II.1. Improbidade administrativa. Crimes de responsabilidade. Os atos de improbidade administrativa são tipificados como crime de responsabilidade na Lei nº 1.079/1950, delito de caráter político-administrativo.
II.2. Distinção entre os regimes de responsabilização político-administrativa. O sistema constitucional brasileiro distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos. A Constituição não admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos: o previsto no art. 37, § 4º (regulado pela Lei nº 8.429/1992) e o regime fixado no art. 102, I, "c", (disciplinado pela Lei nº 1.079/1950). Se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse abranger também atos praticados pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, "c", da Constituição.
II.3. Regime especial. Ministros de Estado. Os Ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, "c"; Lei nº 10.79/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992).
II.4. Crimes de responsabilidade. Competência do Supremo Tribunal Federal. Compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar os delitos político-administrativos, na hipótese do art. 102, I, "c", da Constituição. Somente o STF pode processar e julgar Ministro de Estado no caso de crime de responsabilidade e, assim, eventualmente, determinar a perda do cargo ou a suspensão de direitos políticos.
II.5. Ação de improbidade administrativa. Ministro de Estado que teve decretada a suspensão de seus direitos políticos pelo prazo de 8 anos e a perda da função pública por sentença do Juízo da 14ª Vara da Justiça Federal – Seção Judiciária do Distrito Federal. Incompetência dos juízos de primeira instância para processar e julgar ação civil de improbidade administrativa ajuizada contra agente político que possui prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, por crime de responsabilidade, conforme o art. 102, I, "c", da Constituição.
III. RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE.
(STF, Recl. 2.138-6-DF, Rel. Min. Nelson Jobim, Rel. para acórdão Min. Gilmar Mendes (art. 38, IV, b, do RISTF), DJe nº 70 de 18.04.2008)
Insta acentuar, de pronto, que o precedente supra mencionado não retrata posição pacífica do STF acerca da matéria, até porque o próprio julgamento foi dado por maioria, tendo sido vencidos os Ministros Carlos Velloso, Marco Aurélio, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa. Também é importante ressaltar que quatro Ministros não puderam votar em virtude de que seus precedentes já tinham votado. Deixa-se claro, portanto, que a decisão proferida na Reclamação em análise pode não representar a opinião atual do Supremo Tribunal Federal.
A referida Reclamação foi proposta pela Advocacia Geral da União em face do Juízo Federal da 14ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal, que teve sua sentença mantida pelo TRF da 1ª Região.
A Ação de Improbidade Administrativa foi proposta pelo Ministério Público Federal em face do então Ministro Ronaldo Mota Sardemberg, em virtude do uso indevido de aeronaves da FAB para transporte particular seu e de terceiro, sem vinculação às suas atividades funcionais e também pela fruição de Hotel de Trânsito da Aeronáutica no Distrito Estadual de Fernando de Noronha.
A União alega que houve usurpação da competência do STF porque Ministro de Estado não poderia ser julgado pelo juiz de 1º grau, além do mais, alega que Ministro de Estado não responde por improbidade administrativa com base na Lei nº 8.429/92, mas apenas por crime de responsabilidade. Para sustentar tal alegação, no mérito, a União defende que as conseqüências advindas da responsabilização por crimes de responsabilidade são semelhantes às previstas na Lei de Improbidade. Defende, ainda, que a maneira de prevenir o bis in idem é que seja adotado o critério da especialidade, no sentido de que a Lei de Improbidade é dirigida genericamente a todo agente público, e sendo a Lei dos Crimes de Responsabilidade orientada para punir os agentes políticos, a lei especial exclui a incidência da lei geral.
Em seu voto, o e. Relator Min. Nelson Jobim [109] premia a todos com justificativas pra lá de quixotescas. De pronto, ele argumenta:
As viagens de fim de semana a algum local são, em geral, viagens a serviço. Ou, se não eram, acabam se tornando, pela demanda de contatos por parte de autoridades locais e pela continuidade do programa rotineiro de serviço que não sofre qualquer interrupção.
Adiante o Ministro Jobim argumenta que "é preciso aqui se valer de uma outra observação, amplamente conhecida no âmbito estatal, que é aquela, segundo a qual os pilotos e aviões da FAB estão obrigados a voar". Chegando ao ponto de justificar a descaracterização da improbidade por não ser uma viagem de lazer e sim porque se os aviões não voarem irão enferrujar no chão.
Deixemos de lado os argumentos fáticos levantados pelo Ministro Jobim e iremos nos ater às questões jurídicas que é a intenção deste trabalho, entretanto, não poderíamos deixar de comentar tais fatos.
O Ministro Nelson Jobim [110] defende ainda que:
[...] se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, §4º) pudesse abranger também atos praticados pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, "c", da Constituição.
Ele chega então à conclusão de que os agentes políticos não se submetem ao regime geral da Lei de Improbidade e arremata:
O entendimento contrário importaria no completo esvaziamento da competência do STF para processar e julgar, por crime de responsabilidade, os MINISTROS DE ESTADO [...] (CF, art. 102, I, ‘c’).
Mais adiante, em um lampejo de lucidez, o e. Ministro Jobim defende que seria possível sustentar que a ação de improbidade tivesse caráter autônomo, não se confundindo, portanto, "com aquela destinada a perseguir os crimes de responsabilidade". E adiante: "Nesse caso, [...] ela haveria de ser processada perante esta Corte" [111].
Portanto, o Relator Ministro Nelson Jobim defende num primeiro momento de seu voto que não seria possível a coexistência da responsabilização dos agentes políticos pela Lei dos Crimes de Responsabilidade e da Lei de Improbidade Administrativa, esta última porque os fatos não seriam suficientemente ponderados por Promotores, Procuradores e Juízes com atuação no 1º Grau da jurisdição. Num segundo momento, ele argumenta que poderiam coexistir tanto a responsabilização por crimes de responsabilidade como a ação por atos de improbidade administrativa, sendo esta, de qualquer forma, proposta perante o STF em virtude do instituto do foro privilegiado que tais autoridades teriam direito, em se tratando de infração de natureza penal.
O voto do Relator foi seguido pelos Ministros Gilmar Mendes, Ellen Gracie e Maurício Corrêa, sem maiores considerações.
O Ministro Ilmar Galvão votou com o Relator, entretanto, há uma passagem de seu voto que entendemos por bem transcrever: "Há de concluir-se, portanto, que a Lei nº 8.429 se presta tão-somente, no meu entendimento, a uma função normativa residual de responsabilizar, por atos de improbidade, os servidores públicos cujas funções não tiverem sido contempladas com foro civil privilegiado" [112].
Em seu voto-vista o e. Ministro Carlos Velloso ressalta que a Constituição da República tem em alta conta o princípio constitucional da moralidade administrativa e, nesse sentido, o instrumento de realização deste princípio maior é a Lei de Improbidade Administrativa.
Adiante, o Ministro Velloso [113] defende que:
A lei que dispõe sobre as sanções aplicáveis ao administrador ímprobo é, portanto, instrumento de realização do princípio da moralidade administrativa. Assim, a interpretação desta, que tem por finalidade, vale repetir, realizar o princípio constitucional, há de ser a mais larga, a fim de se conferir a máxima eficácia a este.
Feitas tais considerações, o Ministro passa a analisar de forma bem didática o caso sub examen. Ele entende que da leitura dos dispositivos constitucionais chega-se à conclusão que os atos do Presidente da República que atentem contra a probidade na administração são crimes de responsabilidade que estão definidos na Lei especial nº 1.079/50. Em relação aos Ministros de Estado, no que concerne à probidade, os crimes de responsabilidade do Presidente aplicam-se para aqueles, além dos que lhe são específicos. O Min. Velloso analisa os crimes de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, do Procurador-Geral da República, do Governador do Distrito Federal e dos Territórios, dos Prefeitos e Vereadores e, por fim, ressalva que não há que se falar em crimes de responsabilidade para os parlamentares.
Assim, conclui o Ministro Carlos Velloso [114] que:
[...] os agentes políticos mencionados somente respondem pelos crimes de responsabilidade tipificados na lei especial [...] no que não estiver tipificado como crime de responsabilidade, mas estiver definido como ato de improbidade, responderá o agente político na forma da lei própria, a Lei 8.429, de 1992, aplicável a qualquer agente público.
A aplicação da Lei de Improbidade [...] a esses agentes públicos faz-se, em certos casos, sob restrições. Por exemplo, ao Presidente da República não podem ser aplicadas as sanções de perda e suspensão dos direitos políticos, tendo em vista o disposto no art. 86 da CF.
O Ministro Velloso [115] destaca ainda que no caso em exame, as tipificações da Lei nº 8.429/92, invocadas na ação civil pública, não se enquadram como crime de responsabilidade definido na Lei nº 1.079/50, a menos que:
[...] se empreste interpretação extensiva ao crime de responsabilidade do Presidente da República inscrito no inciso 7 do art. 9º: proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. A interpretação extensiva, entretanto, não seria possível, por isso que, tratando-se de crime, seja crime comum, ou crime de responsabilidade, observa-se a tipificação cerrada.
E arremata mais adiante em seu voto:
No que concerne à pena de perda do cargo e a suspensão dos direitos políticos [...] a interpretação sistemática da constituição, artigos 15, 51, I, 86 e 87 [...] não autoriza a sua aplicação senão em sentença transitada em julgado, tal como aliás, está disposto no art. 20, caput, da Lei nº 8.429/92.
Por fim, o Ministro Velloso ressalta que a isenção dos agentes políticos "da ação de improbidade administrativa seria um desastre para a administração pública" [116].
O Ministro Cezar Peluso [117] votou a favor da Reclamação, afastando a incidência da Lei de Improbidade aos agentes políticos basicamente pelos seguintes argumentos:
[...] a categoria dos agentes políticos é uma categoria especial de servidores públicos que têm, na Constituição, a sede da disciplina de cargos, das suas atribuições, [...] que por isso mesmo pressupõem um regime funcional específico, ligado à dignidade dessas funções estatais [...] Todos devem ter, a meu juízo, por conseqüência, sistema próprio de responsabilidade funcional, compatível com a liberdade política de que devem desfrutar na tomada de decisões, e, segundo o qual, não podem ser responsabilizados de acordo com os critérios comuns, como por exemplo, o da culpa comum ou dos erros técnicos que atuam como critérios de responsabilidade dos demais servidores públicos.
Em seu voto-vista, o Ministro Joaquim Barbosa, de início, esclarece que a tese central defendida pelo Relator parte da premissa de que a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar ministros de Estado por crimes de responsabilidade atrairia o julgamento desses agentes políticos titulares de altos cargos da administração federal também pelos atos de improbidade administrativa (art. 37, § 4º da CF e Lei nº 8.429/92). Ele faz questão de deixar claro que tal tese é defendida há tempos pelo Ministro Gilmar Mendes.
Adiante, o Min. Barbosa defende que os fatos que levaram o Ministério Público Federal a ajuizar a ação de improbidade administrativa não se enquadram na tipificação dos crimes de responsabilidade. Não se cuida, pois, de responsabilização política, e por isso mesmo não é aplicável ao caso o art. 102, I, "c" da Constituição Federal. Vai mais além ao defender que há no Brasil:
[...] uma dupla normatividade em matéria de improbidade, com objetivos distintos: em primeiro lugar, existe aquela específica da lei 8.429/92, de tipificação cerrada mas de incidência sobre um vasto rol de possíveis acusados [...] e uma outra normatividade relacionada à exigência de probidade que a Constituição faz em relação aos agentes políticos, especialmente ao chefe do Poder Executivo e aos ministros de Estado, ao estabelecer no art. 85, inciso V, [...] essa segunda normatividade se completa com o art. 9º da lei 1.079/50" [118].
Trata-se de disciplinas normativas diversas, embora visem à preservação do mesmo princípio constitucional. Nesse sentido, o art. 37, §4º da CF, disciplinado pela Lei de Improbidade, traduz, como já dito anteriormente, a concretização do princípio da moralidade administrativa. Com bem assevera o Ministro Barbosa [119], buscou-se coibir a prática de atos antiéticos tão corriqueiros em nossa história político-administrativa, "aplicando-se aos acusados, atendidos os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, as inúmeras e drásticas penalidades previstas na lei – e tão somente elas".
Por outro lado, a apuração da responsabilização política, tal como prevista no art. 85, V da CF e na Lei 1.079/50, assume uma outra roupagem porque o objetivo constitucional buscado é mais elevado. Como bem esclarece o Min. Barbosa [120]:
[...] cuida-se aí de mais um dentre os inúmeros mecanismos de becks-and-balances típicos das relações entre os poderes do Estado no regime presidencial de governo. [...] a natureza do instituto e os objetivos constitucionais por ele visados é que explicam por que nessa modalidade especial de responsabilização as penalidades são diferenciadas e podem parecer relativamente brandas, se comparadas às previstas na lei de improbidade. [...] Igualmente, a natureza política e os objetivos constitucionais visados com esse instituto é que explicam por que ao agente eventualmente condenado por crime de responsabilidade são aplicáveis apenas duas punições [...]: a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de funções públicas pelo prazo de 8 anos.
O Ministro Joaquim Barbosa [121] diferencia os dois institutos chegando a seguinte conclusão:
Com isto quero dizer, parodiando o ministro Brossard, que estamos diante de "entidades distintas e nada mais". Distintas e que não se excluem, podendo ser processadas separadamente, em procedimentos autônomos, com resultados absolutamente distintos, embora desencadeados pelos mesmos fatos.
Nesse sentido, o Ministro relembra o fato de que o ex-presidente Fernando Collor teve sua Ação Penal julgada perante o Supremo Tribunal Federal após ter respondido pelo crime de responsabilidade perante o Senado Federal. Assim, fica demonstrado que não há óbices constitucionais para a existência da duplicidade de sanções iguais quando o escopo dos processos de punição é diferente.
Refutando os argumentos da maioria já estabelecida no julgamento da já tão repetida reclamação, o Ministro Barbosa [122] afirma que a opinião da maioria cria uma situação que não deveria prosperar, in verbis:
[...] a tese abraçada pela maioria que já se formou [...] cria no nosso sistema jurídico [...] uma situação de absoluta perplexidade, que fere os princípios isonômico e republicano que informam a nossa organização político-jurídica. [...] É que, à luz da Constituição Federal e da Lei 8.429/1992, todo e qualquer servidor, efetivo ou comissionado, que cometa um ato de improbidade tal como descrito na lei, estará sujeito a ver sua conduta enquadrada numa das drásticas sanções previstas na Lei 8.429/1992. Porém, se esse mesmo hipotético servidor, sem se exonerar do cargo efetivo, vier a assumir um posto ministerial e praticar a mesma conduta, a ele não se aplicarão as severas sanções da lei de improbidade, mas sim as duas únicas sanções que a responsabilidade política é suscetível de engendrar [...] tal discrepância contraria, a meu sentir, um dos postulados básicos do regime democrático [...] que consiste nas verdadeiras Democracias [...] quanto mais elevadas e relevantes as funções assumidas pelo agente público, maior há de ser o grau de sua responsabilidade, e não o contrário, como se propõe nestes autos.
Por fim, o Min. Barbosa explicita que o juiz de primeiro grau pode conduzir ação de improbidade administrativa contra autoridades detentoras de prerrogativa de foro, podendo, portanto, aplicar as sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa, ressalvando, entretanto, a perda do cargo político, afinal, "isto configuraria um fato de desestabilização político-institucional para a qual a lei de improbidade administrativa não é vocacionada" [123].
Assim, o Min. Joaquim Barbosa votou no sentido de que a reclamação seria procedente "tão-somente para declarar a impossibilidade de, na via da ação de improbidade administrativa regida pela lei 8.429/1992, ser a autoridade interessada destituída do cargo político" [124].
O Ministro Marco Aurélio em seu voto acompanha integralmente o voto do Ministro Carlos Velloso.
O Ministro Celso de Mello [125] em seu voto ressalta que:
[...] a sujeição dos agentes públicos às conseqüências jurídicas de seu próprio comportamento, é inerente e consubstancial [...] ao regime republicano. [...] A forma republicana de Governo, analisada em seus aspectos conceituais, faz instaurar, portanto, um regime de responsabilidade a que se devem submeter, de modo pleno, todos os agentes públicos, inclusive aqueles que se qualificam como agentes políticos.
Continuando a análise do voto do Ministro Celso de Mello [126], ele expõe:
[...] o princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos órgãos e agentes governamentais.
O Min. Celso de Mello expõe ainda que a importância da moralidade administrativa foi alçada a um nível tão alto pela Constituição Federal que:
[...] a estrita observância do postulado da moralidade administrativa passou a qualificar-se como pressuposto de validade dos atos que, fundados, ou não, em competência discricionária, tenham emanado de autoridades ou órgãos do Poder Público [127].
O Min. Celso de Mello conclui, então:
[...] pela competência dos magistrados de primeira instância para processar e julgar ação civil por improbidade administrativa ajuizada em face de agentes políticos, observando-se o rito da Lei nº 8.429/92, respeitadas as exigências constitucionais para efeito de perda do cargo e de privação do mandato. [128]
Por fim, o Ministro Sepúlveda Pertence acompanha os votos divergentes daqueles do Relator, acompanhando, assim o voto do Ministro Carlos Velloso. Entretanto, o e. Ministro tece algumas considerações que são extremamente pertinentes e que fazemos questão de transcrever, in verbis:
Levo em conta, sobretudo, que a perda da função pública, seja ela a de um cargo efetivo, seja de um mandato político, só se consuma com o trânsito em julgado da procedência da ação de improbidade.
Por isso, não há a temer o argumento ad terrorem de que pudesse um juiz singular suspender, preventivamente, o Presidente da República ou outro dignitário de alta hierarquia, nem dar à sua sentença força para destituí-lo imediatamente do mandato e suspender-lhe os direitos políticos. [129]
Passada a análise dos votos colhidos na Reclamação diversas vezes mencionada, passemos a uma análise crítica da decisão proferida.
A tese defendida perante o Supremo Tribunal Federal e que obteve sucesso é a de que os atos de improbidade, na verdade, redundariam em crimes de responsabilidade, de tal sorte que os agentes políticos só estariam sujeitos à responsabilidade de igual natureza. A respeito do exposto, Emerson Garcia [130] afirma:
Os artífices dessa curiosa e criativa tese argumentam que boa parte dos atos de improbidade encontram correspondência na tipologia da Lei nº 1.079/50, que trata dos crimes de responsabilidade, o que seria suficiente para demonstrar que a infração política absorveria o ato de improbidade.
Adiante, Emerson Garcia [131] continua tecendo críticas à tese levantada junto ao Excelso Supremo Tribunal Federal:
Além disso, o próprio texto constitucional, em seu art. 85, V, teria recepcionado esse entendimento ao dispor que o Presidente da República praticaria crime de responsabilidade sempre que atentasse contra a probidade na administração, o que possibilitaria o seu impeachment.
O impeachment, desde a sua gênese, é tratado como um instituto de natureza político-constitucional que busca afastar o agente político de um cargo público que demonstrou não ter aptidão para ocupar. Os crimes de responsabilidade, do mesmo modo, consubstanciam infrações políticas, sujeitando o agente a um julgamento de igual natureza. Essa constatação, por si, já demonstra o desacerto da tese que procura equipará-los às condutas disciplinadas pela Lei de Improbidade, afeita à seara cível e sujeitas a uma relação processual conduzida por um órgão jurisdicional.
Como bem afirma Pereira Neto:
[...] não há impedimento para que o agente político seja duplamente punido, ou seja, seja punido civil e penalmente, já que se trata de esferas de competências distintas. Portanto, o agente público que, utilizando-se de seu cargo, apropria-se ilicitamente de dinheiro público responderá, nos termos do art. 9º da Lei nº 8.429/92, por ato de improbidade, sem prejuízo da responsabilidade penal por crime contra a administração, prevista no Código Penal ou na legislação penal especial. [132]
Pereira Neto [133] defende ainda que uma imunidade à Lei de Improbidade Administrativa, conseqüência da decisão em análise, deferida aos agentes políticos, irá produzir nefastos efeitos políticos, além de ferir flagrantemente a Constituição Federal, que garante a proteção aos princípios da legalidade, probidade e moralidade.
Por sua vez, Cassio Scarpinella Bueno [134] argumenta que prevaleceu o argumento de que a Lei de Improbidade Administrativa deveria ser aplicada apenas para aqueles que "’cumprem ordens’; não pelos que formulam as grandes linhas das políticas públicas que são, em última análise, concretizadas por ordens administrativas que devem ser cumpridas" e ainda tece críticas aos argumentos lançados pelo e. Ministro Relator, Nelson Jobim, chegando ao ponto de afirmar que:
[...] trata-se [...] da recuperação, para os dias e preocupações atuais, de um tema clássico do direito público e do controle jurisdicional dos atos administrativos: a distinção entre os atos administrativos propriamente ditos e os atos políticos. Estes, por exemplo, por disposição expressa do art. 94 da Constituição Federal de 1937, não poderiam ser contrastados pelo Poder Judiciário.
Portanto, da análise dos votos colhidos na Reclamação 2.138-6-DF, observa-se que a tese de que os agentes políticos não estariam sujeitos à Lei de Improbidade Administrativa obteve uma maioria de seis votos a cinco. Percebe-se de toda a análise doutrinária acerca do tema que há uma divergência estabelecida e que não há como definir, de maneira contundente, qual o posicionamento deveria transparecer como majoritário.
Ambos os argumentos foram analisados, tanto a favor da tese de que os agentes políticos estariam sujeitos à Lei de Improbidade Administrativa quanto à tese que defende que a Lei dos Crimes de Responsabilidade afasta a incidência da Lei de Improbidade. Mesmo assim, admite-se, de qualquer forma, que a decisão proferida pelo Pretório Excelso não é final. Há a possibilidade de alterações em sua jurisprudência, até mesmo porque, como demonstrado, a maioria se deu por seis votos a cinco, quando a composição do Supremo Tribunal Federal poderia – e fazemos questão de ressaltar, poderia – chegar a uma conclusão diferente da que obteve.