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O direito à educação no Estado cientificista.

Estado, sociedade, cidadania e o direito à autonomia

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21/04/2009 às 00:00
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1ª PARTE

Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs

Ítalo Calvino

As Cidades-Estados surgiram com as sociedades da Mesopotâmia e os fenícios 04 também já se haviam organizado politicamente dessa forma, bem antes de se falar em Cidade-Estado como uma criação grega. Para alguns historiadores a tradução da palavra pólis (do grego) como significado de Cidade-Estado não estaria literalmente correta, porque a Pólis comum, na verdade, não se parecia muito com uma cidade e aparentava ser muito mais do que um Estado 05.

O Estado, na Grécia, surgiu no final da Época Homérica e início da Época Arcaica. Com a desintegração da comunidade primitiva, o surgimento da diferenciação de classes na sociedade, e a concentração do poder político nas mãos dos aristocratas de nascimento, as comunidades (que estavam ligadas pelo parentesco) passaram a se unir sob o principio da territorialidade ou da vizinhança e pouco a pouco foram formando a cidade (Pólis), com um governo próprio, em um processo denominado de sinecismo ou agrupamento.

O que determinou a formação das Pólis gregas foi o desenvolvimento do comércio, onde ocorriam as trocas e o artesanato se desenvolvia com rapidez. A Pólis tornou-se, assim, o centro da exploração do trabalho escravo e dos camponeses pobres. A sociedade grega transformou-se em uma sociedade escravocrata, que se compunha de duas classes antagônicas: os grandes proprietários de terra e de escravos e os escravos 06, que não possuíam direito algum. E entre essas duas classes encontravam-se os pequenos proprietários (no campo) e os artesãos livres, os comerciantes e os armadores. Sucintamente, são características da cidade grega antiga:

  • A Acrópole – colina onde se encontrava a residência do Rei (Basileus) e o templo da divindade local; servia para proteger a cidade e também era utilizada como lugar de reunião do Conselho;

  • Ágora – ou praça do mercado, era o centro da vida comum dos habitantes. Ali eram realizadas reuniões públicas e as transações comerciais;

  • O Porto – situado no litoral, onde se fazia importação e exportação de mercadoria;

  • Havia teatro, ginásio de esportes e uma fonte que servia para abastecer o reservatório de água da cidade.

As cidades gregas eram em geral pequenas e propiciaram o melhoramento da vida, sobretudo das classes dominantes, enquanto que para os camponeses pobres e para os pequenos proprietários a vida era de muita dificuldade. As mulheres – de todas as classes sociais – e os escravos não eram considerados cidadãos da pólis, ocupando, portanto, uma posição de inferioridade na sociedade. Resta dizer que com o surgimento da pólis, consolidou-se a divisão da sociedade em camadas sociais opostas ou antagônicas e, conseqüentemente, caracterizou-se a injustiça social.

A Política Grega

Muitas são as obras de referência para se compreender em profundidade a cultura e a civilização grega. Porém, de modo sintético (Miranda, 2000, pp. 52-53), assinalemos algumas características mais permanentes, como:

  • Prevalência do fator pessoal.

  • Fundamento da comunidade dos cidadãos.

  • A extensão territorial tinha apenas relativa importância: Cidades-Estados, de caráter local, municipal ou cantonal.

  • Inexistência de liberdade fora do Estado.

  • Praticamente não há vida pública ou autonomia fora do Estado.

  • Diversidade de formas de governo: autonomia e autarquia 07 .

Outro aspecto marcante da configuração da política na Grécia clássica é a diferença que se pode estabelecer entre a chamada liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. Nós praticamente não conhecemos a liberdade fora de casa, a política já não se faz mais nas ruas, a não ser em ocasiões especiais, como passeatas ou carreatas. Em compensação, os direitos individuais, como a individualidade e a privacidade, são direitos consagrados pelo liberalismo e sagrados nos dias atuais 08.

Já a famosa liberdade dos antigos, a começar da Grécia, só tinha ou fazia sentido se exercida no espaço público, pois não havia vida fora da política e do Estado: incluindo a escolha da religião. O cidadão, todo e qualquer cidadão, era escravo do Estado, pois a vontade do Estado - como expressão das deliberações tomadas em conjunto, com a participação plena dos que eram reconhecidos como cidadãos -, acabaria se tornando a vontade de todos, fazendo parte da vida de cada um.

É preciso lembrar que o cidadão na Grécia era homem livre, adulto, ilustrado (educado) e rico (proprietário de grandes áreas rurais). Estavam fora desse seleto grupo, os homens jovens, os homens livres mas pobres, as mulheres, os escravos e os estrangeiros (metecos): o sistema econômico, portanto, estava baseado na escravidão. Como resultado de toda essa exclusão, restavam não muito mais do que sete por cento (07%) da população apta a exercitar-se na nobre arte da política. Portanto, se a democracia era o governo do povo 09, é preciso entender claramente que povo aqui não passava de um grupo social e econômico muito reduzido. Povo era um conjunto economicamente relevante, importante, mas socialmente diminuto, reduzido - representava a menor parte da sociedade grega. Se olharmos retrospectivamente para a sociedade grega, com os olhos críticos de hoje, diremos que os gregos não viviam a democracia, mas sim uma aristocracia.

A idéia de democracia como envolvimento e participação, no entanto, era fundamental e sempre acabava confirmada pelos rituais do mundo político. Uma passagem representativa disso é o discurso em homenagem aos mortos na Guerra do Peloponeso, e o grande personagem do evento, como orador, foi Péricles 10. A relação que Péricles iria destacar em seu discurso estava entre o sacrifício pessoal e a cidadania democrática (participativa e desprovida):

Se consultarmos a lei, veremos que ela garante justiça igual para todos em suas diferenças particulares; quanto à condição social, o avanço da vida pública depende da reputação de capacidade. As questões de classe não têm permissão de interferir no mérito, tampouco a pobreza constitui um empecilho: se um homem está apto a servir ao Estado, não será tolhido pela obscuridade da sua condição [...] Diferentemente de qualquer outra comunidade, nós, atenienses, consideramos aquele que não participa de seus deveres cívicos não como desprovido de ambição, mas sim como inútil. Ainda que não possamos dar origem à política, em todo caso podemos julgá-la; e em vez de considerarmos a discussão como uma pedra no caminho da ação, a consideramos como uma preliminar indispensável de qualquer ação sábia [...] Pois quanto maiores as recompensas do mérito, melhores serão os cidadãos (Cartledge, 2002, pp. 228-9).

Vejamos uma síntese desse modelo de cidadania: Mesmo sendo uma democracia direta, com consultas e deliberações populares em praça pública (a Ágora), o pré-requisito era ser homem livre e abastado. Os idiotes, todos aqueles que não se encaixavam no modelo elitista e exclusivista, não teriam a mínima chance de chegar à fase adulta da vida. O ídion, que é a construção desse homem adulto e apto para a política, só se efetivaria com a plenitude da participação política. De qualquer modo, de lá para cá, a democracia veio se fortalecendo como governo de responsabilidade social e maturidade política.

Estado Livre: o Estado de Direito Pós-romano

Por Estado Livre, inicialmente, vamos entender o que (a exemplo de Hobbes) se definia como um Estado de liberdade neo-romana (ou o que, como produtos da modernidade, podemos olhar retrospectivamente e definir como pré-liberal). Não está errado dizer que, quando se pensa em liberdade, logo vem à mente o liberalismo clássico e com ele, John Locke. Mas, Hobbes é, neste sentido, um "liberal antes de seu tempo" — portanto, veja-se que a expressão "Estado Livre", usada por Hobbes, não é nova:

Mas o momento culminante na emergência de uma teoria integral republicana de liberdade e governo na Inglaterra surgiu em 1656. Após dois anos desastrosos de experiência constitucional, Oliver Cromwell resolveu, em maio, convocar um novo parlamento. A oportunidade para denunciar o protetorado e pleitear um acordo autenticamente republicano foi imediatamente aproveitada por Marchamont Nedham, que revisou suas editorias anteriores e republicou-os como The Excellency of a Free State (A Excelência de um Estado Livre) em junho de 1656 (Skinner, 1999, p. 25).

Contudo, o Estado Livre deveria instituir outros direitos frente ao Estado, a exemplo do princípio da "liberdade negativa", qual seja: "pode-se fazer tudo, desde que não seja proibido por lei". Como mostra Skinner:

Ao mesmo tempo, alcançava proeminência uma concepção associada sobre a relação entre o poder do Estado e a liberdade de seus súditos. Ser livre como um membro de uma associação civil, alegava-se, é simplesmente estar desimpedido de exercer suas capacidades na busca de seus fins desejados. Um dos deveres básicos do Estado é impedir que você invada os direitos de ação de seus concidadãos, um dever que ele cumpre pela imposição da força coercitiva da lei sobre todos igualmente. Mas, onde a lei termina, a liberdade principia (Skinner, 1999, p. 18).

De certo modo, esses são os primeiros direitos liberais do Estado, mas ainda não são todavia direitos fundamentais, como logo a seguir viriam a se tornar os chamados direitos civis ou individuais (fundando a Primeira Geração dos Direitos Humanos). Vê-se que se trata da liberdade negativa, pois a liberdade limitada pela lei seria o freio da ação. No fundo, um processo que Hobbes ainda analisaria:

De acordo com isto a autonomia de um homem consiste em nada mais do que no fato de que seu corpo não seja impedido de agir de acordo com seus poderes. "Um HOMEM LIVRE é aquele que, naquelas coisas, que por sua força e sagacidade ele é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que ele tem vontade" 11 [...] Se a ação não está ao alcance de seus poderes, sua carência não é da liberdade, mas da capacidade de agir (Skinner, 1999, p. 19).

Note-se que liberdade e capacidade de agir são estágios diferentes da ação humana. O não-impedimento do indivíduo no gozo do "seu direito de agir" (mais tarde - com o Bill of Rigths, em 1689) seria regulado positivamente 12 pelo próprio direito de liberdade (de ir, vir e permanecer) e negativamente 13 pelo Habeas Corpus: este como remédio jurídico, como "garantia legal do direito de liberdade física".

Outros poderão indagar que o Princípio da Liberdade como fonte reguladora do Estado, como limitação da ação soberana do Príncipe, remonta ao Rei João Sem Terra e sua Magna Carta, de 1215. Então, como se enquadra a Magna Carta neste contexto?

Devemos lembrar que a experiência da Magna Carta se reduziu à Inglaterra e como experiência histórica demandaria outros quatro séculos para ressurgir (a partir da Revolução de Oliver Cromwell). No entanto, é claro que não era uníssono o Estado Absoluto, como meio de poder e de coerção inquestionável e independente da lei:

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Mais do que isso, porém, a Magna Carta deixa implícito pela primeira vez, na história política medieval, que o rei acha-se naturalmente vinculado pelas próprias leis que edita. Quinhentos anos antes, Santo Isidoro (560-636), bispo de Sevilha, já havia defendido a idéia de que o príncipe devia submeter-se às leis que ele próprio promulgara, pois "só quando também ele respeita as leis, pode-se esperar que elas sejam obedecidas por todos" (Sententiae III, 51.4) (Comparato, 2001. p. 75. – grifos nossos).

Como acabamos de ver, a Magna Carta foi um antecedente histórico do Estado Liberal e do próprio Estado Livre. É bem razoável que busquemos aí um primeiro "Estado de Direito", pois, se falamos da lei que deveria regular aos súditos, mas também ao rei, é porque "está em destaque o princípio da legalidade", ao menos em sua base e origem. Não se falava, obviamente, em princípio da reserva legal, porém essa igualdade diante da lei e do poder é em si uma conquista jurídica.

A diferença em relação ao Estado Liberal, é que ali os "princípios legais da liberdade" já se vinham construindo dentro do espírito absolutista que iria formar-se com/no Estado Moderno. Mais do que isso, no pretenso Estado Medieval (portanto, antes do Estado Liberal) já se acenava com o princípio da legalidade e sua relação com as bases da liberdade individual. O princípio da legalidade pode ser assim resumido:

Nos teóricos clássicos alemães e italianos do Direito Público as noções de Rechtsstaat ou de Stato di diritto, assim como em parte para a doutrina inglesa a de Rule of law ou para a francesa as de Règne de la loi ou Sèparation des pouvoirs, são consideradas como um modelo teórico que pretende refletir ou explicar, no plano da Dogmática Jurídica, os processos formais através dos quais discorre a dinâmica estatal (Luño, 2003, p. 238. – grifos nossos).

Entre direito e democracia, porque o sistema de direitos (a) institui os cidadãos simultaneamente como autores e destinatários da ordem jurídica e (b) significa a institucionalização das condições gerais necessárias para o desenvolvimento de processos democráticos no direito e na política. Se os cidadãos não são somente destinatários mas autores das leis, então o Estado de direito pode ser representado como o conjunto de instituições legais e mecanismos que governam a conversão do poder comunicativo dos cidadãos em atividade administrativa legítima, sendo o direito a linguagem que pode transformar o poder comunicativo em poder administrativo. Para que a participação dos cidadãos na construção da ordem jurídica faça a diferença, as condições de comunicação permitindo testar a legitimidade das normas de direito por parte de organizações da sociedade civil e da opinião pública não devem ser distorcidas nem manipuladas. (Schumacher, 2003)

Em suma, o Estado Livre se destaca pela primeira conquista rumo à igualdade jurídica e, no Estado Liberal, está em foco a busca pela liberdade, como proteção do indivíduo frente ao Estado (aquele mesmo Estado descrito por Hobbes como supremo e inquestionável em sua soberania). Assim, também podemos concluir que o Estado Livre é um tipo de Estado de Direito Primário em que a conquista política se transformou em lei de alcance "mais" geral. O que serve ao súdito, doravante também se aplica ao rei.

O que nos aclara o sentido de que a liberdade e a igualdade são construções históricas renováveis e inesgotáveis, uma vez que a cada fase ou bloco da história uma outra concepção pode se tornar homogênea. Este também é o caso verificado ao longo do breve curso do chamado Estado Legal, na França pós 1789, mas agora em defesa da igualdade de direitos, da justiça material.

A Revolução Francesa e o Estado Legal

O Estado Legal é a estrutura político-jurídica construída logo após à Revolução Francesa — é exemplo de uma dessas fases de inversão, subversão do Direito. Isto é, o mesmo Direito que outrora tinha sido criado para o estrito cumprimento do exercício legal (simples e direto) da dominação de uma classe social sobre outras, agora permite ou deixa em aberto a possibilidade de os oprimidos utilizarem-se daquele mesmo Direito para a sua libertação:

O Estado Legal, já mencionado como antecessor do Estado Constitucional e do Estado de Direito, fora concebido como ordem jurídica hierárquica. No vértice da pirâmide hierárquica situava-se a Déclaration de 26 de agosto de 1789 consagrando os "droits naturels et sacrés de l’homme". Esta Déclaration era, simultaneamente, uma "supraconstituição" e uma "pré-constituição": supra-constituição porque estabelecia uma disciplina vinculativa para a própria constituição (1791); pré-constituição porque, cronologicamente, precedeu mesmo a primeira lei superior. A constituição situa-se num plano imediatamente inferior à Declaração. A lei ocupa o terceiro lugar na pirâmide hierárquica e, na base, situam-se os atos do executivo de aplicação das leis (Canotilho, s/d, p. 95. – grifos nossos).

Historicamente, de um modo ou de outro, os oprimidos sempre procuraram avariar os impeditivos factuais à transformação do Estado e da sociedade. A afirmação de novos ideais dar-se-ia pela massificação das informações, passando pelo canal e "filtro" da escola pública. E não fosse pela resistência e insistência dos adversários dos vários Estados absolutos, nada teria saído do lugar durante esse tempo todo. Não fosse pela pressão dos que de alguma forma sempre acabavam oprimidos, e o direito do opressor jamais se teria alterado substancialmente, a ponto de agasalhar os direitos e os interesses deles que antes eram simplesmente oprimidos e relegados a um quinto plano da cidadania. Por outro lado, o Estado Legal se mostrava um autêntico herdeiro do processo revolucionário de 1789 e o Estado de Direito (liberal, formal) viria a interromper esse fluxo histórico de reivindicação e de participação popular 14:

A teoria do "Estado de Direito" [...] foi construída em grande parte contra a de "Estado Legal", o Estado do império da lei herdado da Revolução Francesa, que dava preponderância ao Parlamento e aos eleitos pelo sufrágio universal no sistema político e de elaboração de normas. A partir do começo do século XX a doutrina desejou submeter a lei ao Direito e confiar o Estado de Direito ao controle pelo Judiciário, para evitar os "desbordamentos" dos Legislativos e dos eleitores. Isso porque se confiava mais no juiz do que na norma escrita e no cidadão para controlar o Estado [...] se refere a um período em que movimentos populares – os cidadãos – começavam a gerar o temor da queda do edifício social burguês [...] a teoria do Estado de Direito foi construída, em grande parte, para barrar a possibilidade de extensão do papel dos cidadãos (Dallari, 2003, pp. 195-6 – grifos nossos).

São tentativas de sedimentação da cidadania como soberania popular, portanto, bem diferente do modelo grego (elitista). Daí se conclui que o Estado Legal era mais afeto à participação popular e, portanto, mais social do que o Estado de Direito. Mas, mesmo que o Estado de Direito viesse a ser postado como instrumento conservador de privilégios de classes ou de grupos sociais, a luta pelo Direito passará a ter uma conotação de isonomia e eqüidade.

No Antigo Regime, a experiência pública estava ligada à formação da ordem social; no século passado, a experiência pública acabou sendo ligada à formação da personalidade [...] O segundo traço da crise do século XIX está no discurso político comum em nossos dias. Tendemos a descrever como líder "confiável", "carismático", ou "alguém em quem se pode acreditar", aquele que for capaz de atrair grupos cujos interesses são alheios às suas crenças pessoais, ao seu eleitorado ou à sua ideologia. Na política moderna, seria suicídio para um líder insistir em dizer: esqueçam a minha vida privada; tudo o que precisam saber a meu respeito é se sou bom legislador ou um bom executivo e qual a ação que pretendo desenvolver no caso. Ao invés disso, ficamos alvoroçados quando um presidente francês conservador janta com uma família da classe trabalhadora, embora tenha, poucos dias antes, aumentado os impostos sobre os salários industriais; ou então, acreditamos que um presidente americano é mais "autêntico" ou confiável do que seu predecessor caído em desgraça porque o novo homem prepara o seu próprio café da manhã. Essa "credibilidade" política é a superposição do imaginário privado sobre o imaginário público e, também neste caso, surgiu no século passado, como resultado de confusões comportamentais e ideológicas entre os dois âmbitos (Sennett, 1988, pp. 40-41 – grifos nossos).

Em nossa atual indefinição quanto aos limites/liames entre público-privado, como "esfera pública burguesa", olhamos o mundo político a partir da janela dos problemas pessoais, domésticos: "A linha entre a esfera privada e a esfera pública passa pelo meio da casa" (Habermas, 2003, p. 62).

À autonomia dos proprietários no mercado corresponde uma representação pessoal na família aparentemente dissociada da coação social, é o carimbo autenticador de uma autonomia privada exercida na concorrência. Autonomia privada que, negando a sua origem econômica, exerce-se unicamente fora do domínio em que aqueles que participam do mercado se acreditam independentes, conferindo à família burguesa essa consciência que ela tem de si mesma. Tal consciência parece ser espontânea, parece ter sido fundada por indivíduos livres e manter-se sem coação; ela parece repousar na permanente comunhão amorosa dos cônjuges; ela parece resguardar aquele livre desenvolvimento de todas as faculdades que distinguem uma personalidade culta. Os três momentos — do livre arbítrio, da comunhão de afeto e da formação — conjugam-se num conceito de humanidade que se pretende que seja inerente a todos os homens, definindo-os certamente enquanto seres humanos: a emancipação que ainda ressoa quando se fala do puramente ou simplesmente "humano", uma interioridade a se desenvolver segundo leis próprias e livre de finalidades externas de qualquer espécie [...] A família desempenha exatamente o papel que lhe é prescrito no processo de valorização do capital (Habermas, 2003, p. 63. - grifos nossos).

Portanto, este público-burguês não pode escapar a seus limites:

A esfera pública burguesa desenvolvida baseia-se na identidade fictícia das pessoas privadas reunidas num público em seus duplos papéis de proprietários e de meros seres humanos [...] A fórmula básica de Locke quanto à preservation of property subsume, numa só linha e de um só fôlego, sem qualquer constrangimento, sob o título "propriedade", life, liberty and estate: tão fácil conseguia ser, naquela época — segundo uma distinção do jovem Marx, identificável a emancipação política com a emancipação "humana" (Habermas, 2003, p. 74. – grifos nossos).

O público é espectador da política institucional: o liberalismo aproxima-se, mas também choca-se com muitos movimentos sociais e/ou populares: feminismo, trabalhismo. Para o jovem Marx, de a Questão Judaica (1989), nem se cogitava de uma emancipação política (incluindo aí a noção jurídica) que não fosse plenamente humana — ou todos/ou tudo, ou nada:

Toda a emancipação constitui uma restituição do mundo humano e das relações humanas ao próprio homem [...] A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, indivíduo independente e egoísta e, por outro, a cidadão, a pessoa moral [...] A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico ; e quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces propers) como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política (Marx, 1989, p. 63. – grifos nossos).

A emancipação, portanto, continua tanto virtual quanto o fora à época de Marx, pois não há nada mais estranho e dificultoso à emancipação do homem como ser genérico do que a vida empírica realmente negativada.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. O direito à educação no Estado cientificista.: Estado, sociedade, cidadania e o direito à autonomia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2120, 21 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12666. Acesso em: 27 dez. 2024.

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