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O direito à educação no Estado cientificista.

Estado, sociedade, cidadania e o direito à autonomia

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21/04/2009 às 00:00
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2ª PARTE

Para a maioria dos "clássicos da sociologia", educação é uma prática socialmente difundida, mas nem sempre democrática ou sequer institucionalizada: se pensarmos na militância política. Também pode-se dizer que nem sempre ocorre o fenômeno da escolarização para que haja educação – pois, basta-nos pensar na família, clubes e em outros "grupos primários". Portanto, com ou sem escolarização, a educação constitui um processo de transmissão cultural, cuja tarefa elementar é a reprodução do sistema social (ou, se queremos amenizar, das "condições da vida social herdada") ou sua contestação e reprovação, total ou parcial, se pensamos em posições mais críticas e radicais.

Isto nos remete à possibilidade de observar o "fenômeno da educação" por meio de chaves teóricas que abram nossa própria visão de mundo e nos coloquem diante da realidade – pode ser uma visão "nova" ou "envelhecida" do real. (No caso da educação, é preciso dar tempo à formação: "maturação, maturidade do conhecimento"). É preciso ter paciência com a consciência.

Assim, a sociologia é "a ciência que tem a interação social como objeto de investigação". por sua vez, a interação exige um mínimo de sociabilidade; ajuda mútua; coexistência ética (ethos : valores ou costumes); "convivência possível, mesmo ante conflitos de interesses" (individuais ou de classes). Já a sociologia da educação é um ramo da sociologia que tem na escola o seu objeto microssociológico.

Porém, para os objetivos desse texto, trata-se de uma educação integral (permanente): socialização e inclusão 15. Em que alunos e professores compartilhem uma visão de mundo capaz de apresentar a "legitimação da coisa ensinada" – e não como "conhecimento estranho".

  • Uma educação com visão de mundo de aproximação ou de convicção: tornar o outro convicto de que se fala ou, ao menos, se busca a verdade. uma educação em que alunos e professores queiram convencer-se e não vencer: como na disputa política. Uma educação republicana, em que o compromisso sociológico do educador seja político.

  • Uma educação capaz de transformar necessidades em oportunidades para ser livre: auto governo; participação com responsabilidade social; construção da autoridade individual interiorizada. Da autonomia à autarquia ou entre o reconhecimento das normas e o exercício ou o requerimento social do poder.

Voltaremos a rever todos os tópicos anteriormente apontados, mas Florestan Fernandes (1979) já reconhecia a importância da investigação sociológica da educação, mas não achava necessário criar uma ciência especial — a Sociologia da Educação não deveria ser em si uma disciplina. A Sociologia da Educação não teria objeto e nem problemas próprios a investigar. Mas, é claro que admitia pensarmos a educação como um objeto de estudo sociológico.

De outro modo, pode-se pensar a Sociologia da Educação como parte do esforço para se concretizar a análise científica dos processos e das regularidades sociais inerentes ao sistema educacional. O objetivo seria passar do uso dos manuais para a investigação da realidade social (empírica) que conforma o fenômeno educacional. Afinal, a educação é um conjunto de ações intencionais (nem sempre institucionais) e a sociologia se dedica ao estudo dos níveis de sociabilidade (ou estranhamento) e da interação social (ou dos processos de contradição social).

Neste sentido, de um ramo aplicado da Sociologia (Ciência Social que tem por objeto a interação social ou humana), pode-se dizer que a Sociologia da Educação tem a escola como objeto microssociológico (uma vez que a educação é objeto da Pedagogia). A escola é o objeto microssociológico ou meso porque estaria entre o micro (os indivíduos, agentes: professores, funcionários, alunos) e o macro (o próprio sistema de ensino).

Para Antonio Cândido (1979), as escolas são o eixo da sociedade moderna, mas "possuem vida própria" com "leis" que escapam à super-ordenação social. A escola é uma unidade social que determina tipos de comportamento, posições e papéis, além de agenciar formas de sociabilidade. Seus elementos integradores são, simultaneamente, transpostos de fora (redefinidos para ajustar-se às condições grupais), porém, desenvolvidos internamente.

Desse modo, como há intercâmbios variados e vida própria, a escola não é mero reflexo social ou depósito de crianças, pois tem atividade criadora. Temos uma idéia disso quando notamos que há uma tensão própria ou natural, da nova geração, ante a ação exercida pelas gerações adultas: os educadores. Por isso, constituir a autoridade é exemplo de um dos seus mais claros desafios. Além disso, há um choque entre docentes e administradores, que podem/devem definir tendências de sociabilidade e formas variadas de competição ou de acomodação, assimilação ou conflito.

De todo modo, tendo-se a escola como eixo da modernidade, têm-se na escola a perspectiva de se estudar a socialização. Portanto, deve-se ver a escola como grupo social complexo — afinal, o processo educativo espelha valores e estruturas sociais, originando, obrigatoriamente, formas de ajuste social. Mas nunca se deve esquecer que a observação do "objeto escola" corresponde à observação de que a escola é um objeto composto de sujeitos:

Se cada escola é um grupo característico, o educador só poderá agir nele adequadamente se for capaz de proceder à análise desta situação e traçar as normas convenientes de ajustamento social, sem o qual periga a eficiência pedagógica [...] Não menos importante é esta redefinição para a pesquisa, que encontrará nas situações pedagógicas um elemento concreto, que permita passar decididamente da era dos manuais para a da investigação da realidade (Cândido, 1979, p. 18).

De forma objetiva, uma definição moderna de Sociologia da Educação pode ser algo como: análise científica dos processos e realidades sociais inerentes ao sistema educacional, uma vez que a escola consiste numa combinação de ações sociais e a Sociologia na análise da situação (e interação) social. Como indicado, não há em outra atividade profissional, como "ação" ou pesquisa, comparativamente à educação, maior clareza quanto à idéia de que é preciso ter paciência com a consciência.

Já para Durkheim a educação tem funções essenciais e complementares: função homogeneizadora; função diferenciadora. "A educação não é, pois, para a sociedade, senão o meio pelo qual ela prepara, no íntimo das crianças, as condições essenciais da própria existência" (1979, p. 42). A educação tem como pressuposto a socialização: "Na verdade, o homem não é humano senão porque vive em sociedade" (Durkheim, 1979, p. 46. – grifos nossos). O caráter social e essencial da educação (agora como objeto da Sociologia da Educação) é preparar uma geração de tal modo que esteja capacitada para receber a seguinte. Para Durkheim, uma socialização metódica das novas gerações.

Em Mannheim, certamente, a contribuição da sociologia para o entendimento aprofundado e sistemático do processo de ensino-aprendizagem é destacado: "1) A educação não molda o homem em abstrato, mas em uma dada sociedade e para ela [...] 4) Para o sociólogo, códigos e normas não constituem fins em si mesmos, mas sempre a expressão de uma interação entre o ajustamento individual e grupal" (1979, pp. 89-90). Desse modo, é preciso remover a passividade, a continuidade omissa, a adesão acrítica que leva a inúmeras formas de "embotamento", e a educação assim cumpriria seu papel de "fazer desabrochar as qualidades e habilidades" de cada um.

Foucault e "o poder da educação"

Foucault escreveu sobre o sujeito, os saberes, os poderes e as instituições modernas, mas que também discutisse o que se pode e o que não se pode fazer com ele e a partir dele e o quão produtivo tudo isso é para a Educação.

Para Foucault, os saberes engendram-se e organizam-se para que se atenda a uma "vontade de poder" (como Weber falava de uma "disposição do dominado para a dominação 16"). Trata-se do poder onde ele se manifesta, ou seja, é o micropoder que se exerce (não que se detém) e que se distribui capilarmente. Há uma positividade do poder: propriedade de produzir alguma coisa. O poder se dispõe em uma rede, na qual há pontos de resistência, minúsculos, transitórios e móveis 17.

Poder e saber são os dois lados do mesmo processo: entrecruzam-se no sujeito, seu produto concreto. Não há relação de poder sem a constituição de um campo de saber, nem saber que não pressuponha e não constitua relações de poder. Foucault considera que o poder produz saber: o que afasta do campo da educação, o sujeito epistêmico.

Em educação, o problema não é menor, pois como um autor como Foucault poderia ser assimilado de modo útil ao processo educacional? É óbvio que não se trata somente de dominação, disciplina, adestramento ou acomodação (o que seria meramente utilitário).

É indiscutível que reflexões sobre saber, poder, subjetividade, ética, linguagem, discurso, tão caras ao filósofo, são indispensáveis para os que se dedicam ao ofício de pensar e fazer currículos (planos de ensino), que pensam a "estrutura" o edifício ou sistema educacional e que reconhecem o quanto são complexas práticas e relações intrínsecas ao complexo (até contraditório) processo de pesquisa-ensino-aprendizagem.

Em relação à educação, o processo pedagógico corporifica relações de poder entre professores e aprendizes. A pedagogia se baseia em técnicas particulares de governo, e produz e reproduz, em diferentes momentos, regras e práticas particulares, pelo qual os estudantes devem conservar a si e aos outros sob controle 18.

Outra importante novidade dessas investigações é não considerar pertinente para as análises a distinção entre ciência e ideologia [...] O objetivo é neutralizar a idéia que faz da ciência um conhecimento em que o sujeito vence as limitações de suas condições particulares de existência instalando-se na neutralidade objetiva do universal [...] A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento que seria sua origem, mas a relações de poder que lhe constituem. Não há saber neutro. Todo saber é político (Machado, 1986, p. XXI – grifos nossos).

Em síntese, não há sujeito epistêmico, mas sim sujeito de poderes, uma vez que não há saber sem poder e vice-versa, nem sujeitos ausentes ou independentes desta relação. Decerto, também não haveria muita reserva de segurança para se falar, como em Weber, em "individualismo metodológico": "O indivíduo é uma produção do poder e do saber [...] Ele não pode ser considerado uma espécie de matéria inerte anterior e exterior às relações de poder que seria por elas atingido, submetido e finalmente destruído" (Machado, 1986, pp. XIX – grifos nossos).

O sujeito e seus saberes podem ser pródigos, mas apenas na relação ou no interior dos poderes dominantes e determinantes (e ainda que haja e que se deva falar em "resistência"). Mais uma vez, não há saber neutro . Assim, as chamadas "novas ciências" nada mais seriam do que a necessidade de o saber constituído corresponder às necessidades relevantes ou prementes do poder atual, ou seja, tal qual se apresente naquele determinado momento/espaço da sociedade capitalista.

É verdade o que é poder

Assim, é na questão do poder que há uma ruptura maior com as teorias clássicas, onde o poder não pode ser visto como um bloco ao qual o indivíduo cede seus direitos, pois a pessoa está atravessada por relações de poder. Para Foucault, o poder não só reprime, domina, mas também produz relações com a verdade e o saber, constituindo verdades, práticas e subjetividades, algo muito próximo da idéia de "pensamento em rede". É verdade o que é poder:

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é – não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar) [...] Há um combate "pela verdade" ou, ao menos, "em torno da verdade" – entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer "o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar", mas o "conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos de poder" [...] se trata de um combate [...] em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha. É preciso pensar os problemas políticos dos intelectuais não em termos de "ciência/ideologia", mas em termos de "verdade/poder". É então que a questão da profissionalização do intelectual, da divisão entre trabalho manual e intelectual, pode ser novamente colocada (Foucault, 1986, pp. 12-13 – grifos nossos).

Por isso, além de ser poder, o saber (como a verdade posta a serviço de) é também uma definição de perfis e de papéis a serem cumpridos (com mais ou menos observância das expectativas depositadas). De todo modo, é fonte de poder:

Um novo modo de "ligação entre teoria e prática" foi estabelecido. Os intelectuais se habituaram a trabalhar não no "universal", no "exemplar", no "justo-e-verdadeiro-para-todos", mas em setores determinados, em pontos precisos em que os situavam [...] Certamente com isso ganharam uma consciência muito mais concreta e imediata das lutas [...] E, no entanto, se aproximaram deles, creio que por duas razões: porque se tratava de lutas reais, materiais e cotidianas, e porque encontravam com frequência, mas em outra forma, o mesmo adversário do proletariado, do campesinato ou das massas (as multinacionais, o aparelho jurídico e policial, a especulação imobiliária, etc.). É o que eu chamaria de intelectual "específico" por oposição ao intelectual "universal" (Foucault, 1986, p. 09. – grifos nossos).

O intelectual específico é também profissional comprometido por/com seus cânones, luta pela verdade dos fatos: o que revela que essa luta dos especialistas torna o saber, outra vez, fonte de "disputa pela verdade" e, por fim, poder 19. Mas, o saber também é um campo de provas dos próprios intelectuais:

O problema político essencial para o intelectual [é] saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a "consciência" das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade. Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder – o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento. Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade (Foucault, 1986, p. 14).

No desenvolvimento do seu pensamento em lugar de análise histórica, realiza uma genealogia, um estudo histórico que não busca uma origem única e causal, mas que se baseia nas multiplicidades (e nas lutas), e de modo especial o discurso, abrindo novos capôs de estudo para a história e para a epistemologia.

Marx educador

Em escritos da juventude, Marx nos diz que o objetivo da educação condiz com a apreciação dos grandes clássicos: "O Princípio fundamental [...] que nos deve guiar na escolha de uma vocação é o bem da humanidade e o nosso próprio aperfeiçoamento" (Giddens, 2005, p. 27. – grifos nossos). Do mesmo modo, todos sabemos, para Marx é preciso "educar os educadores", retirando-lhes o véu da ideologia dominante. Também faz parte dessa (re)educação dos educadores, o seu melhor ajuste diante das contínuas transformações porque passam o mundo do trabalho e da produção:

A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto todo o conjunto das relações sociais [...] O contínuo revolucionamento (Umwälzung) da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séqüito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem (Marx, 1993, p. 69).

Este refazer(-se) contínuo se dá mediante o trabalho e a adequação aos modos ou moldes em que se colocam os meios e as formas da própria dinâmica da produção:

O homem – ou melhor, os homens – realizam trabalho, isto é, criam e reproduzem sua existência na prática diária, ao respirar, ao buscar alimento, abrigo, amor, etc. Fazem isto atuando na natureza, tirando da natureza (e, às vezes, transformando-a conscientemente) com este propósito. Esta interação entre o homem e a natureza é – e ao mesmo tempo produz – a evolução social. Retirar algo da natureza, ou determinar um tipo de uso para alguma parte da natureza (inclusive o próprio corpo) pode ser considerado e é o que acontece na linguagem comum, uma apropriação, que é, pois, originalmente, apenas um aspecto do trabalho. Isto se expressa no conceito de propriedade (que não deve ser, de forma alguma, identificado com a forma histórica específica da propriedade privada). No começo, diz Marx, "o relacionamento do trabalhador com as condições objetivas de seu trabalho é de propriedade; esta constitui a unidade natural do trabalho com seus pré-requisitos materiais" [...] Sendo um animal social, o homem desenvolve tanto a cooperação como uma divisão social do trabalho (isto é, especialização de funções) que não só é possibilitada pela produção de um excedente acima do que é necessário para manter o indivíduo e a comunidade da qual participa, mas também amplia as possibilidades adicionais de geração desse excedente. A existência deste excedente e da divisão social do trabalho tornam possível a troca. Mas, inicialmente, tanto a produção como a troca têm, como finalidade, apenas o uso – isto é, a manutenção do produtor e de sua comunidade (Hobsbawm, 1991, p. 16).

Mas, o trabalho do educador tem especificidades e Marx não reconhecia esse sentido próprio como o destacou em passagens sintomáticas ao apresentar a tese do "trabalho vivo", em oposição ao "trabalho morto" (já coisificado) e que, "por estar vivo", pode ser criativo, propositivo de novas dinâmicas sociais. Em tese, é esta qualidade do trabalho vivo que permite a alguns (ou muitos) fugirem do cerco das forças hegemônicas em que se colocariam as ideologias da educação como mero efeito/propulsão da reprodução social. Para aqueles "pensantes" do trabalho vivo, a educação não se esgota e pode ser teleológica de condições sociais mais libertárias e democráticas.

Pode-se, então, argumentar que o jovem Marx já salientara a "criatividade" e "mobilidade", intelectual e social, desse trabalho vivo que é a educação, quando não reificada e satisfeita com a reprodução sistemática de conteúdos empedernidos. Desse modo, se a educação também pode se "(re)configurar" como trabalho vivo, então, a "transmissão de dados", não mecânica ou "analógica", ainda dependeria desse trabalho ativo — tanto dos pais, quanto dos filhos —, mas agora para se verter em conhecimento transformador, criativo, dialético. Vejamos alguns recortes da análise de Marx — a citação é longa, contudo esclarecedora do conceito (trabalho vivo) e da própria crítica marxiana:

A questão é de que maneira algo se torna real, isto é, algo "posto’’ do "lado de fora’’ do "mundo dos fenômenos’’, enquanto real. Para tanto deverá, em primeiro lugar, ser "possível’’. "O que é essencial (Weseniliche) à realidade’ é a possibilidade (Möglichkeit)’’, não meramente "formal’’, mas enquanto "identidade’’. O que se torna real chama-se de "contingente (Zufällig) justamente por ter sido possível: "Possibilidade e contingência as aquelas etapas da realidade – a interior e a exterior – consideradas como simples formas que constituem a exterioridade do real’’. Para que o contingente passe de "possível’’ para "real’’, é preciso que ele satisfaça às "condições’’ (Bedingungen): "Se todas as condições se encontrarem presentes, a coisa (Sache) só pode (muss) se tornar real’’. É, entretanto, necessário uma terceira etapa para que a "coisa’’se torne "real’’. É necessária a "atividade’’ (Tätigkeit): "a) A condição 1) é o que é suposto previamente (...), 2) as condições são passivas (...); b) sendo que, graças à verificação das condições, ela recebe sua existência exterior, aquele ato pelo qual se realizam (realisieren) as determinações do seu conteúdo (...); c) também a atividade , 1) não deixa de ser menos existente de maneira autônoma, e somente a coisa e as condições a tornam possível, 2) ela é o movimento que consiste em transpor as condições para dentro da coisa’’. Finalmente, depois que a coisa real satisfaz às suas condições, ela passa a ser "necessária’’ (notwendig); é a substancia (Substanz), "enquanto potência e, ao mesmo tempo riqueza (Reichtum) de tudo o que ela contém’’. Agora, sim, podemos dizer que " substancia é uma causa (...), isto é sua própria possibilidade se apresenta com sendo o seu próprio negativo e produz, então, um efeito (Wirkung), uma realidade, que, por isso mesmo, não passa de uma realidade ali posta. Poderíamos concluir, dizendo que este "reino da necessidade’’ (de causa, efeito, ação recíproca etc.) se transformam finalmente em um "Reino da Liberdade’’: "Eis aí o concreto, o reino da Subjetividade ou da Liberdade’’ [...] "Enquanto tal, ele não é matéria-prima, nem instrumento de trabalho, nem produto bruto; ele é o trabalho separado de todos os meios de trabalho e objetos de trabalho, de toda a sua objetividade; é o trabalho vivo existente como abstração desses aspectos da sua realidade real (realen Wirklichkeit) (igualmente não-valor); é esse despojamento total, essa desnudez de toda objetividade, essa existência puramente subjetiva. É o trabalho enquanto pobreza absoluta (absolute Armut); é a pobreza não enquanto carência, mas enquanto completa exclusão da riqueza (Reichtum) objetiva’’ [...] 2) Trabalho não-objetivado, um não-valor – se o considerarmos positivamente, ou negativamente em relação a si mesma, eis o que é a existência não-objetivada, isto é, não objetiva, - em outras palavras, subjetiva – do próprio trabalho. É o trabalho não como objeto, mas como atividade (Tätigkeit); não como auto-valor, mas como a fonte viva do valor (lenbendige Quelle dês Werts). (... O trabalho vivo é) a riqueza universal – comparada com o capital, dentro do qual existe objetividade, - como possibilidade universal, possibilidade 20 que se realiza na atividade enquanto tal" (Dussel, 1995, pp. 34-39).

Portanto, um dos temas clássicos da Sociologia da Educação é o direito à educação, como um direito que desabrocha da consciência e da luta alimentada pela própria condição específica da atividade do educador: o trabalho vivo, pulsante. Seqüencialmente, por sua vez, o direito à educação congrega outro, menos institucional e, por definição, da ordem da intersubjetividade, que é a educação para ter direitos.

A luta pelo Reconhecimento da "Educação a ter Direitos"

Reconhecer a educação como direito fundamental, inalienável é o equivalente da proposta de uma educação republicana: 1º) como direito individual-fundamental estamos falando do reconhecimento deste direito no plano individual, mas com a qualidade da intersubjetividade (ou seja, sociabilidade) e, portanto, 2º) a práxis , a labuta pela consciência da educação de valores públicos, na fase posterior, atua como reconhecimento coletivo, social daquele mesmo direito individual. Desse modo, na transposição da consciência individual à práxis social, o direito à educação, de direito individual, passa à ordem do direito público.

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Esta confluência de sentidos e de efeitos políticos (integrativos) da educação, também poder-se-ia chamar de sentido positivo da Educação como Prática Hegemônica 21: a educação que é de todos e que serve a todos, precisa, antes de mais nada, de uma consciência que leve à prática de requerer a sua própria educação como direito e também a querer outros direitos.

O sentido de hegemonia aplicado à educação, deixa transparecer a idéia de que se trata de um problema complexo, difuso e multifacetado e por isso requer empenho e ação global. Nessa dimensão, a educação é um dos temas mais caros ao republicano suprapartidário. Isso porque é de interesse de todos e do qual, portanto, todos devem participar.

Não há educação individual, pois mesmo o autodidata estará se beneficiando do conhecimento produzido e disponibilizado por muitos outros que pensam como ele — ou que tem interesse em ver o conhecimento fluir de maneira livre. É fácil perceber, sem trocadilhos, como a educação é um direito individual que só tem eficácia na dimensão pública, porque o conhecimento que não se exterioriza, não é diferente do segredo, da informação sem relevância, do saber encapsulado do ignorante.

O conhecimento sem a vida pública existe como uma informação qualquer, que se fica remoendo e que depois de um tempo se torna um fardo, um peso, uma dor de consciência, na melhor das hipóteses, uma autocrítica pelo tempo perdido. Ninguém compra um conhecimento acumulado, todos que necessitam do tratamento da informação (pela ação da reflexão e da crítica), também necessitam do conhecimento apto à expansão e geração de outros valores que possam ser agregados ao dado original.

O conhecimento acumulado, não partilhado pelo público, equivale a um livro fechado, sem uso, ou com mero valor-de-uso decorativo à espera da crítica roedora dos ratos. A rigor, nem faz sentido falar em conhecimento acumulado, como sinônimo de fechado em si mesmo, em reserva, estocado, sem manifestação pública — é um contra-senso.

Por outro lado, para se promover uma educação de descompressão, aberta ao público, é preciso ter regras de qualidade que sejam bem claras, de compromisso com os clássicos (especialmente com os clássicos da República, com a honestidade intelectual). A disciplina, como ritmo de estudos, deve ser ensinada e praticada desde cedo, para que o ato de estudar seja mais agradável, rotineiro, para que faça parte da vida cotidiana do maior número possível de pessoas. Então, há nisso tudo uma crítica ideológica.

Bourdieu e a "crítica ideológica" ao direito à educação

Como crítica à manipulação ou reprodução ideológica mais especificamente na educação, pode-se tomar um autor como Bourdieu que, já nos anos 60, passou a criticar especialmente a idéia de "neutralidade do conhecimento e da escola" e a sua correspondente versão pragmática da educação como elevador social. Sua principal alegação acerca disso é de que a escola tem um papel relevante na reprodução e na legitimação das desigualdades sociais; além do que a herança cultural familiar repercute no desempenho escolar.

A convicção na competência escolar como elevador social, no entanto, já começara a ser questionada (como "suposição sociológica") a partir dos anos 50, com inúmeras pesquisas quantitativas na Inglaterra, EUA e França, revelando-se claramente a incidência da colocação social do ingressante.

Além da classe social, destacava-se a etnia, o sexo, o local de moradia e outras variáveis e componentes sociais. Nos anos 60, também era crescente o sentimento de frustração dos estudantes franceses que chegaram ao ensino secundário e à universidade, mas que esbarraram no retorno econômico muito baixo.

Como supunham algumas das concepções funcionalistas (e até publicistas) da educação, a massificação não trouxe progresso econômico imediato. A própria massificação desvalorizou os títulos escolares e, é claro, a escola não proporcionou mobilidade social suficiente. Desse modo, essa "geração engajada" eclodiu suas críticas ao sistema em 1968.

Bourdieu propôs, então, uma "revolução científica", estabelecendo-se a mais forte conexão entre origem social e desempenho escolar. A educação, ao invés de emancipar, apenas legitimava desigualdades já trazidas de casa.

O que se entendia por meritocracia (igualdade de oportunidades que afloram os méritos pessoais) passou a ser analisado como reprodução e legitimação de desigualdades sociais e culturais.

Os alunos não são indivíduos abstratos que competem em condições equilibradas na escola, mas sim "atores socialmente construídos", com uma bagagem social e cultural (herdada) que se reflete no mercado (escolar e profissional).

Portanto, importa mais a origem social do que os dons pessoais ou a consciência social, constituição biológica ou psicologia particular.

A escola não é uma instituição imparcial que seleciona os mais talentosos, a partir de critérios puramente objetivos.

No fundo, a escola cobra de seus alunos os gestos, os gostos, as crenças, os valores, o imaginário, a postura dos "grupos dominantes" (mas, dissimulados como cultura universal).

A escola teria um papel ativo quanto à desigualdade, quando define currículos, métodos de ensino e formas de avaliação.

Assim, a escola dissimula as reais desigualdades sociais na forma de diferenças acadêmicas e cognitivas.

O poder, de certo modo, também é estabelecido por uma rede completa de relações circulares que unem estruturas e práticas pela mediação do habitus 22, definindo-se limites de validade — um tipo de nexo conceitual entre estruturas e práticas. O Poder Simbólico é definido como poder circular — a citação é muito utilizada, mas vale retomar:

No entanto, num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte, como em outros tempos não se queria reconhecê-lo nas situações em que ele entrava pelos olhos adentro, não é inútil lembrar que – sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de "círculo cujo centro está em toda a parte e em parte alguma" – é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (Bourdieu, 1989, pp. 7-8).

Também retoma uma definição simplificada do campo:

  • O campo é a zona intermediária entre qualquer texto (e seu autor) e o contexto (relações determinadas); pois há o mundo do consumo, as instituições e o que sentem ou sofrem desses reflexos secundariamente.

  • Espaço relativamente autônomo.

  • Microcosmo que têm leis próprias.

  • Sofre a imposição das leis sociais gerais, mas não são as mesmas.

No campo científico, as disciplinas marcam também o grau relativo de autonomia. O mesmo dilema se dará entre agências e instituições, uma vez que:

  • Há choque entre coerção, leis sociais gerais e determinações internas.

  • Não há pensamento livre, já dizia Newton.

  • O campo científico é um mundo social.

  • As pressões externas são mediadas / mediatizadas pelo campo.

  • Há uma autonomia que pode se traduzir em refração (Bourdieu, 2002, pp. 20-21).

Desde 1971, preocupa-se com o mercado dos bens simbólicos: A luta científica é uma luta armada.

  • Artes, ciências: Campo da produção em sentido estrito (erudição) – produtores pra produtores (concorrentes diretos); Campo da grande produção cultural (jornalismo ou indústria cultural).

  • Em 1975 rompe com a visão predominantemente conciliadora da comunidade científica.

  • Introduz a contradição na análise: campo científico X capitalismo do campo científico.

  • Mas matem éticas avançadas, os clientes são os piores concorrentes, mas a reação avança (Bourdieu, 2002).

A forma como a análise de Bourdieu esteve centrada, quase que unicamente, nas classes sociais acabou por se tornar criticável por vários motivos — especialmente no século XXI.

Em síntese: os indivíduos e suas famílias não se resumem à "condição de classe". O "pertencimento" pode indicar certas disposições, mas, tomados separadamente, os indivíduos são o resultado de múltiplas (e contraditórias) influências sociais (ou "determinações históricas").

  • Acentua-se a trajetória ascendente ou descendente do grupo familiar, o próprio nível educacional, o meio rural ou urbano (ou ainda uma postura mais ou menos conservadora do grupo).

  • O habitus familiar pode não decorrer diretamente do habitus da classe. Por exemplo, o senador Suplicy ou uma família urbana, com bom nível de escolaridade, em ascendência e pouco religiosa (menos afeta a tradições) seria mais liberal em termos de educação.

  • Outra ressalva diz que esse habitus familiar não é transmitido de forma mecânica (por "osmose") aos filhos.

  • A transmissão do capital cultural dar-se-ia em contato prolongado e afetivamente significativo, entre os portadores desses recursos (não só os pais) e seus destinatários — os filhos podem ter "comportamentos contraditórios aos valores herdados".

A crítica ao reprodutivismo é atualíssima, mas não podemos perder de vista a dinâmica e a histórica de lutas e de conquistas que se relacionam ao direito à educação.

C. W. Mills e a "crítica pragmática" ao direito à educação

Veremos brevemente que, outra abordagem crítica da educação como elevador social — mas mais ao sabor do "pragmatismo crítico" americano—, nos foi dada por C. W. Mills. O que vemos em termos de Educação e de trabalho, no curso da modernidade tardia do século XX (desde a década de 1950), é a sujeição de todos os estudantes-trabalhadores, de seus valores e virtudes, ao sucesso e à coisificação. Há um rebaixamento total da busca pela emancipação à passividade, ao servilismo, e à manipulação.

Os conteúdos clássicos acabaram substituídos por regras fáceis. Vejamos no liberalismo crítico de C. W. Mills uma análise do projeto pedagógico que habilitou o Estado Cientificista, nos EUA, pelo menos desde a década de 1950:

Na passagem do capitalismo liberal de pequenas propriedades para um sistema corporativo de capitalismo monopolista, encontramos a razão para a mudança surgida no conteúdo do sucesso e na trilha a ser seguida para que o alcancemos. No modelo mais velho, o trabalho white collar 23 era apenas um passo no grande caminho para atingir-se o status empresarial independente; no modelo mais novo, o caminho white collar implica promoções dentro de uma hierarquia burocrática (Mills, 1979, p. 268).

Tanto em 1950, quanto no século XXI, mais se valoriza a agilidade moral, do que a habilidade intelectual — certamente, a crise da educação é também uma crise moral:

Maior ênfase é dada em "quem" se conhece do que no "que" se conhece; em técnicas de auto-exibição e na habilidade generalizada de manejar pessoas mais do que na integridade moral, realizações concretas e solidez de personalidade; é mais louvada a lealdade ou mesmo identidade com a firma do que uma virtuosidade empresarial [...] Ser cortês o "ajudará a ir para a frente [...] Assim, "treine-se no sorrir" [...] Irradie autoconfiança [...] Em uma palavra, ser inteiramente digno de confiança e ter em geral uma atitude serviçal e otimista (Mills, 1979, pp. 269-270).

Na modernidade, talvez desde Balzac (em Ilusões perdidas), há maquiavelismo 24 explícito, como forma de oportunismo que só mascara a real coisificação e subordinação: "A manobra habilidosa, a aproximação diplomática nos contatos, a planejada boa impressão a causar nos superiores tornam-se, para o pequeno funcionário, uma espécie de maquiavelismo, um transformar-se em instrumento pelo qual se usam os outros com o objetivo de ascender" (Mills, 1979, p. 270). Em suma: da tática à prática, sem virtudes. Há uma competição crescente (quase sempre desleal) pela sobrevivência e sobra pouco espaço, tempo e energia para se pensar e propor uma "educação de virtudes", baseada em conteúdos clássicos, em que se reconheça as individualidades sem soçobrar diante do individualismo. Do século XIX, do conteúdo clássico, passando pelo século XX, da competição pelo mercado de trabalho, até o século XXI, o que haverá de ter mudado?

Com a nova sociedade, o significado da educação escolar saiu das esferas políticas e da posição social para as econômicas e ocupacionais. Na vida do white collar e em seus modelos de obtenção de sucesso, o aspecto educacional da carreira do indivíduo torna-se a chave de todo o seu destino ocupacional (Mills, 1979, p. 273).

Educação, trabalho e sociedade sempre andaram articulados, mas o que esperar realmente para o amanhã? Parece que de cinqüenta anos para cá, a seguirmos as indicações de Mills, a política deixou de ser um desses conteúdos da educação. Como se educar fosse um ato natural, uma mera reprodução de regras de adição. Como complemento, retirando-se de cena a figura do capitão da indústria, emergindo a do manager, o tecnicismo recebe ainda mais alento (a par de um certo rebaixamento intelectual): "Tal emprego exige do candidato preparo técnico especializado, bem como polimento e boas maneiras" (Mills, , 1979, p. 273). Com isto, a educação tende a perder seu fluído político, a fim de ingressar no mundo do trabalho, recebendo-se um gesso econômico. Mas, o limite é o desemprego, tanto lá, quanto cá, pois o mercado não absorve a todos os estudantes-trabalhadores e isso acirra a crítica social. Um revés, portanto, para quem esperava ver na educação técnica uma forma simples e direta de cooptação:

O chanceler William J. Wallin, da Comissão de Regentes do Estado de Nova York, manifestou-se contra a educação superior para todos, ao declarar que "o país poderá produzir um excesso de graduados que, amargurados pela sua frustração, se voltariam contra a sociedade e o governo, mais eficazmente e melhor armados pela educação que lhes demos, na sua ira destrutiva (Mills, 1979, p. 277).

Hoje chamaríamos de consciência acerca do estelionato educacional (especialmente no ensino superior privado, no Brasil). Ocorre, porém, que o cinismo ainda depositaria a culpa da perda da "solidariedade social" nos estudantes descontentes — aliás, exatamente o que ocorreu na França em 2005, levando ao Estado de Sítio camuflado de Estado de Emergência. Com isto crescem a desilusão e o próprio desemprego, porque o estudante insatisfeito, logo também estará marcado, pelo mercado. A submissão, então, reta como arma de sobrevivência para alguns, resignando-se às condições precárias de emprego e de colocação social:

O operário casa-se cedo, de maneira que ele deve ganhar para o sustento da família e, assim, durante os primeiros anos mais difíceis de sua vida ocupacional, não pode pensar seriamente em se preparar para um trabalho especializado. Quando ele atinge os 25 anos, "a órbita na qual se moverá pelo resto da vida já se encontra firmemente estabelecida" [...] Vem a compreender que o bom emprego é escasso e ele acaba por desenvolver uma técnica para obter tais empregos, contando com seus amigos para os "palpites" (Mills, 1979, p. 285).

O que, por fim, desemboca em eterno servilismo, compadrios, as conhecidas trocas de favores, tão negativas à verdadeira solidariedade republicana baseada no mérito e não no casuísmo. Também não será novidade que a razão política da República acabe como razão instrumental que garanta alguma sobrevivência. E é ainda mais claro que esse instrumento não se dá pela ordem da convivência, mas sim da sobrevivência e do egoísmo:

O assalariado operário limita suas aspirações e as torna mais específicas: ganhar mais dinheiro, fazer com que o sindicato modifique tal detalhe ou tal condição, e mudar de turno na semana seguinte. Neste ínterim, a esperança de maiores índices de mobilidade ascensional fica limitada àquelas que já iniciaram a carreira do nível do operário não especializado (Mills, 1979, p. 286).

Enfim, já se sabia há mais de cinqüenta anos que o reconhecimento de direitos sociais esbarrava na luta pela autoconservação dos trabalhadores (o que aumenta a concorrência entre eles próprios). Os próprios sindicatos e demais organizações de trabalhadores já vinham abrindo mão da intersubjetividade de classe para atender à modificação de detalhes ou para prestar serviços aos associados. A luta política de enfrentamento, pelo reconhecimento de direitos no mundo do trabalho, já vinha cedendo diante do ganho mais fácil.

Provocações de Mannheim para a educação

Uma corrente oposta a Durkheim y Parsons estaria constituída pela obra de Dewey e Mannheim. O processo educacional para Dewey e Mannheim, possibilita ao indivíduo atuar na sociedade sem reproduzir experiências anteriores, acriticamente. Pelo contrário, elas serão avaliadas criticamente, com o objetivo de modificar seu comportamento e desta maneira produzir mudanças sociais.

Para Mannheim, a educação é uma técnica social, que tem como finalidade controlar a natureza e a historia do homem e a sociedade, a partir de uma perspectiva democrática.

As técnicas sociais são evidenciadas na "economia" (como "racionalização crescente da relação custo/benefício"), nas "tecnologias aplicadas diretamente à produção" e no exército. Neste caso específico, a intenção é promover a "ordem unida", a "disciplina e organização", treinamento de autocontrole e a obediência.

Mas as "técnicas sociais" também estão presentes na vida civil e não necessariamente como "tecnologias aplicadas ou meros aplicativos", como no caso mais atual de automação. Para Mannheim, aliás, a técnica empregada como recursos sociais é um substrato da Revolução Francesa, com destaque para o "incremento demográfico":

Esse crescimento deve-se, principalmente, ao espantoso aumento da população desde Revolução Francesa – produto, ela própria, da técnica da máquina 25. Há muito tempo estamos conscientes de que a utilização em larga escala da maquinaria acarreta conseqüências sociais (Mannheim, 1979, p. 89).

Assim, a educação é apenas um desses "suportes de ajustamento" aos padrões (pre)dominantes e pode ou não ser democrática:

Estamos pensando em "técnicas sociais" na esfera da política, da educação, da guerra, da comunicação, da propaganda, etc. Sua verdadeira natureza revelou-se apenas nas últimas décadas [...] Por técnicas sociais refiro-me a todos os métodos de influenciar o comportamento humano de maneira que este se enquadre nos padrões vigentes da interação e organização sociais [...] O padrão dominante pode ser democrático ou autoritário; a educação serve a ambos os sistemas. Ao mesmo tempo, ela é apenas uma das técnicas sociais destinadas à criação do tipo desejado de cidadão... (Mannheim, 1979, p. 89. – grifos nossos).

A prática da socialização percorre diversos espaços, como família e outros grupos primários: escola, clubes, sindicatos. Assim, a prática democrática emerge horizontalmente permitindo a estruturação da sociedade igualitária.

Para Mannheim, portanto, a contribuição da sociologia para o entendimento aprofundado e sistemático do processo de ensino-aprendizagem é destacado. Como "processo de conhecimento" seriam de seis "ordens ou naturezas diferentes" as principais instituições que definem a educação (ou seu papel), como parte integrante de um "sistema social" que nem sempre se propõe a modificações:

1) A educação não molda o homem em abstrato, mas em uma dada sociedade e para ela [...] [...] 2) A unidade educacional fundamental nunca é o indivíduo, mas o grupo, que pode variar em extensão, objetivo e função [...] Os objetivos educacionais da sociedade não podem ser adequadamente entendidos quando separados das situações que cada época é obrigada a enfrentar e da ordem social para a qual eles são formulados. 4) Para o sociólogo, códigos e normas não constituem fins em si mesmos, mas sempre a expressão de uma interação entre o ajustamento individual e grupal [...] Para este, elas parecem decretos absolutos e inalteráveis, e sem essa crença em sua estabilidade elas não podem operar [...] 5) As técnicas educacionais, por sua vez, não se desenvolvem isoladamente, mas sempre como parte do desenvolvimento geral das "técnicas sociais" [...] 6) Quanto mais consideramos a educação [...] mais evidente se torna que mesmo a técnica educacional mais eficiente está condenada a falhar, a menos que esteja associada às demais formas de controle social (Mannheim, 1979, pp. 89-90 – grifos nossos).

A verdadeira função do "sistema social" e da educação como técnica social", seria estimular os níveis mais gerais de interação entre os indivíduos e os grupos sociais, como "formas de adaptação coletiva" e relacionadas a mudanças no bach-ground geral.

Assim, os "objetivos educacionais" são transmitidos às novas gerações e, portanto, a educação só poderia ser compreendida como uma "técnica comportamental que favoreça o controle social".

Porém, há necessidade de que a educação esteja sempre associada às demais técnicas de controle social (como a ideologia, o direito, as tradições). São técnicas e meios que atuam em conjunto para o "controle" e "conformação social".

A juventude, vista por esse ângulo, é um "recurso latente das sociedades" e pode ser "instrumentalizada tanto para a guerra, quanto para a paz", como ocorreu com as experiências totalitárias de poder, de forma geral, e com o nazi-fascismo especialmente:

A Rússia, a Alemanha, a Itália fascista e o Japão de hoje contam com organizações monopolísticas de juventude, promovidas pelo Estado e marcadas por um traço acentuadamente militarista 26 [...] O problema sociológico está em que, embora surjam sempre novas gerações [...] depende da natureza de uma dada sociedade se esta se utiliza delas; e, da estrutura social dessa mesma sociedade, depende a maneira como realiza esse uso (Mannheim, 1979, pp. 91-92 – grifos nossos).

Esta comunicação de Mannheim ("Funções das novas gerações") foi redigida em 1941, ou seja, em plena Segunda Guerra Mundial. O que o motivou a se perguntar como foram otimizados os "recursos latentes para a guerra":

A vitória depende da absorção do último desempregado, da utilização das mulheres na indústria e do uso que se faz do capital [...] da utilização total daquela reserva psicológica que existe na mente humana ou na nação; da mobilização da capacidade de sacrifício, resistência e iniciativa (Mannheim, 1979, p. 92. – grifos nossos).

A forma ou possibilidades como cada sociedade lida com seus recursos, especialmente os latentes é que determinaram o seu futuro:

Acredito que as sociedades estáticas, que se desenvolvem apenas gradualmente, e nas quais o grau de mudança é relativamente pequeno, confiarão principalmente na experiência [dos mais velhos] As reservas vitais e espirituais da juventude serão deliberadamente negligenciadas, enquanto não houver desejo colidente contra as tendências até então vigentes na sociedade (Mannheim, 1979, p. 92).

O Brasil, pode-se dizer, é um misto dessas duas afirmações, pois o maior índice de mortalidade se dá entre os jovens de 20 a 30 anos, e os "mais velhos" seguem relegados. Seria necessário, portanto, uma "simbiose de gerações", que o bom senso indica, mas que não se vê na prática (a não ser na retórica, como "Estatuto do Idoso").

As gerações mais velhas ou intermediárias podem ser capazes de prever a natureza das mudanças futuras e sua imaginação criadora pode ser empregada para formular novas políticas; mas a nova vida será vivida apenas pelas gerações mais jovens. Estas viverão os novos valores que os velhos professam somente em teoria (Mannheim, 1979, p. 93. – grifos nossos).

O Brasil, como bem se sabe, é um país e sociedade de extremos não só nos índices de concentração de renda. A sociedade precisaria estar atenta a este "mecanismo social de dupla face". O bom senso diria (como em T. Adorno) que é preciso ter paciência com a consciência, mas não se pode viver à espera da "boa vontade". Sobretudo no Brasil, país múltiplo, multicultural, mas cindido em "guerra civil" e em que o povo está em luta constante pela sobrevivência.

Quanto à juventude, como vimos, é um recurso latente que precisa de utopias (mas suportar a pressão das entropias), mas não de mitos: "Quando eu era jovem, vigorava a crença de que a juventude é progressista por natureza" (Mannheim, 1979, p. 94. – grifos nossos). A juventude, entretanto, tem algo de especial, pois não foi totalmente configurada (ou desfigurada) na ação do "superego":

Do nosso ponto de vista, a maior qualidade da juventude, no auxílio para que a sociedade opere em nova direção, está no fato de que, além de seu maior espírito de aventura, ela não se acha ainda completamente envolvida pelo status quo da ordem social (Mannheim, 1979, p. 94).

Mannheim nos dá, então, uma dica fundamental para vermos os dias de hoje, esta nebulosa entre passado-futuro, antigo-moderno, tradicional e pós-modernidade:

O maior conflito de consciência de nossa juventude é, apenas, o reflexo do caos reinante em nossa vida pública; e a perturbação que então aparece, uma reação natural da mente inexperiente [...] No contexto de nossos problemas, o fato relevante é que a juventude vem "de fora" para os conflitos de nossa moderna sociedade. E é esse fato que faz da juventude o pioneiro predestinado para qualquer mudança da sociedade [...] Essa penetração na sociedade, feita de "fora" 27, torna, então, a juventude especialmente apta a simpatizar com os movimentos sociais dinâmicos que, por razões muito diferentes da sua, se chocam com o estado de coisas existentes (Mannheim, 1979, p. 95. – grifos nossos).

O choque de gerações, portanto, nada mais é do que este reflexo de um "estranhamento social" enfrentado pelos jovens quando se posicionam diante de um mundo já sedimentado pelo capital e pelo consumismo (pensando nos dias atuais), bem como pela desordem, desemprego e violência, no caso brasileiro.

Assim, a juventude se explica e se "aplica" muito mais ao social do que pelas "ingerências biológicas" ou hormonais:

Em linguagem sociológica, ser jovem significa, fundamentalmente, ser um homem marginal, em muitos aspectos, um estranho [...] A meu ver, essa posição de estranho é um fator mais importante do que a fermentação biológica, para a disposição à mudança e para a permeabilidade mental; e tende a coincidir com as atitudes "de estranhos" de outros grupos e indivíduos que, por outros motivos, vivem no limiar da sociedade, tais como as classes oprimidas, os intelectuais não comprometidos, o poeta, o artista, etc. [...] sua supressão ou mobilização e integração num movimento dependem grandemente da manipulação e controle das influências exercidas "de fora" por outrem (Mannheim, 1979, p. 96. – grifos nossos).

Em seguida, Mannheim traz outro dado da "política partidária empregada na educação nazista", como exemplo histórico-concreto desse "deslocamento do jovem do mundo real" ("estranhamento 28"), mas que seria de reflexão para o estudo desse tipo de "sentimento de brutalização das relações sociais e afetivas" porque passa boa parte da juventude brasileira:

No aparecimento do Partido Nazista, essa posição típica do adolescente foi reforçada pela posição "de estranhos" em que tinham sido postas certas classes da população alemã, primeiro pela inflação e, depois, pela crise econômica de 1929 [...] Dos 11.160 professores que desempenhavam trabalhos honoríficos em 1º de outubro de 1937, na juventude Hitlerista, 15,8% tinham mais de 40 anos de idade; 40,5% tinham de 30 a 40 anos; e 4,27% tinham menos de 30 29 (Mannheim, 1979, p. 96-97).

Vejamos alguns dados dessa 2ª Guerra e do uso dos "recursos latentes", materiais e humanos de forma geral, e do "acoplamento" do mundo ao sistema de produção capitalista.

O que foi esta Guerra

A 2ª Grande Guerra produziu:

  • a) 80 milhões de mortos – além dos que morreram de fome e de doenças: oito vezes mais do que na 1ª Guerra Mundial;

  • b) Uma qualidade diferenciada para as mortes: câmara de gás; torturas extremas; experiências com pessoas vivas; massacres programados;

  • c) A América se envolveu na 2ª Grande Guerra porque a lógica da economia de guerra estava em ação, e era expansionista e acumulativa. "No período 1938-1944, a produção de guerra passou de 2 para 100, nos Estados Unidos; de 4 para 100, na Inglaterra; de 16 para 100, na Alemanha; de 8 para 100 no Japão" (Coggiola, 1995, p. 42).

  • d) Daí por diante, a chamada economia de guerra tornou-se uma peça fundamental (um motor) na estrutura da economia global:

    • Da Guerra do Vietnã à invasão da Ilha de Granada.

    • Da Guerra-Fria às duas Guerras do Golfo.

    • Da Revolução Cultural Chinesa e Cubana às guerras fratricidas (de descolonização, descontaminação) na África.

    • Da repressão e da eliminação dos movimentos socialistas na América Latina às FARC, na Colômbia hoje em dia.

    • Da Guerra da Coréia aos Bálcãs e agora no Iraque, novamente.

    • Além das duas dezenas de "decretação" de Estado de Exceção (Estado de Sítio ou Estado de Emergência), em todos os continentes.

Porém, como se diz, a história mudou de figura, após o rompimento do Pacto de não-agressão entre Hitler e Stalin. A lógica socialista da planificação movimentou a URSS como um gigante-ágil. A articulação entre consciência e resistência, entre Povo e Estado foi fundamental:

A consciência das massas provou-se naquele momento. Depois da derrota inicial, que quase dizimou o exército soviético [...] A nova indústria, reconstruída nas regiões não ocupadas, produziu 800 mil tanques entre 1941 e 1945, 400 mil aviões só em 1944. Como termo de comparação basta dizer que na Inglaterra não invadida, e que "ganhou a guerra nos ares", essa cifra corresponde à produção total da guerra, não de um ano só (Coggiola, 1995, p. 51).

Pela lógica da economia de guerra global, a chamada desnazificação foi uma farsa. Basta-nos lembrar que a Bomba A foi construída com o auxílio dos cientistas alemães. Além disso:

A "desnazificação" foi cuidadosamente planejada para ser a perfumaria suscetível de tornar "populares" os acordos contra-revolucionários. Dos supostos cinco mil alemães pertencentes ao alto escalão nazista, em 1951 apenas 50 permaneciam presos. No total, de mais de 13 milhões de alemães "questionados", em 1949 havia apenas 300 presos: "Dos 11.500 juízes em atividade na Alemanha do pós-guerra, 5000 haviam atuado nas cortes nazistas". A execução dos carrascos julgados em Nuremberg foi a cortina de fumaça desta preservação da coluna vertebral do Estado burguês, seja totalitário ou "democrático" (Coggiola, 1995, p. 55. – grifos nossos).

A lógica da "razão instrumental" não estava presente apenas nos campos de concentração e em sua contabilidade apurada (Auschwitz foi apenas seu ícone maior), pois também se verificou muito "versátil" no pós-guerra, com esta "desnazificação" amena: o exemplo maior foi Von Braun, principal cientista alemão que entrou nos EUA através de um programa secreto de "recepção de cientistas nazistas": Operação Paperclip. Depois, naturalizou-se americano, em 1955, e foi trabalhar na NASA em 1960, quando dirigiu os programas de vôos habitados. Ele é o pai do foguete Saturno V que levou os astronautas estado-unidenses à Lua. Essa não-purificação da política no cenário mundial só alimentou a tragédia que nascera com o Estado Nazista.

Os séculos XX e XXI já estavam nos clássicos?

No contexto dos anos 60-70 o debate acerca do poder estava intimamente ligado a três correntes histórico-analíticas sobre o Estado: 1) sua superação pela revolução; 2) a ampliação das bases do Estado Social (herdeiro da 2ª Grande Guerra); 3) uma demarcação "positivista", no sentido da eficácia do direito positivo ou posto, do Estado de Direito que não fosse "prejudicada pelo dogmatismo" (veremos no final do texto).

Mas, então, como relacionar sociedade/Estado, o indivíduo e a autonomia versus as instituições e seus mecanismos disciplinares coercitivos?

Seja como for, como há intercâmbios variados e "vida própria", a escola não é um mero reflexo social: tem atividade criadora. Temos uma idéia disso quando notamos que há uma tensão própria ou natural, da nova geração, diante da ação exercida pelas gerações adultas: pais e educadores. Por isso, constituir a autoridade é exemplo de um dos seus mais claros desafios, e ao pensarmos a autoridade, logo vem à mente a educação e o direito.

De forma objetiva, uma definição "moderna" de Sociologia da Educação poderia ser algo como: "análise científica dos processos e realidades sociais inerentes ao sistema social e educacional, uma vez que a escola consiste numa combinação de ações sociais e a Sociologia, na análise dos níveis de controle e de interação social". Não há em qualquer atividade profissional, como ação educativa ou na forma de pesquisa, comparativamente à educação, outra com maior clareza quanto à idéia de que é preciso ter "paciência com a consciência".

Desse modo, pode-se pensar a Sociologia da Educação como parte do esforço para se concretizar a análise científica dos processos e das regularidades sociais, inerentes ao sistema educacional. Afinal, a educação é um conjunto de ações intencionais (nem sempre institucionais) e a sociologia se dedica ao estudo dos níveis de sociabilidade e interação social ou, ao invés disso, estranhamento e processos de contradição social. Isto depende dos princípios e da "visão de mundo" que orienta o "sistema" ou os educadores envolvidos. Porém, quando se vê que o "direito à educação" não é parte da realidade de milhões de pessoas, então, passamos a pensar a educação e o direito não mais como garantias. Neste caso, tanto podem ser pensados como processo de libertação e autonomia, quanto de massificação e dominação; tendentes tanto à democracia e à "igualdade de condições de partida", quanto à tirania e suas desigualdades mais elementares:

O Informe de Educação 2007 divulgado em janeiro pela Campanha Mundial pela Educação aponta que, em 178 países investigados, 72 milhões de crianças permanecem sem escolarização, 774 milhões de adultos são analfabetos e serão necessários mais 18 milhões de professores antes de 2015 para que se atinjam os objetivos do Educação Para Todos, estabelecidos em 2000, na Cúpula de Dakar (Muñoz, 03/02/2008).

É fato, portanto, que o direito à educação não tem coerção — como direito público-subjetivo, julga-se que a prestação estatal é "opcional". Aqui, faz-se uma tergiversação com o conteúdo "programático" da Constituição brasileira de 1988, como se por causa dessa condição de "programa", determinados artigos pudessem "ser ou não" implementados, ficando a bem prazer dos interesses do governo de plantão ou se houvessem "verbas suplementares". O curioso é que, para o Estado de Direito formal, todo direito se exerce mediante o poder, ou seja, a coerção ou violência — com a óbvia exceção feita aos direitos sociais.

Para Durkheim, que segue esta base do "positivismo jurídico", o direito manifesta-se como fato social (assim como a educação), mas como parte do processo histórico-evolutivo da humanidade (acompanhando a "divisão social do trabalho") irá proporcionar uma migração da esfera penal para o âmbito propriamente dito da produção ("direito contratual"). Em Weber, se seguirmos o mesmo raciocínio "histórico-evolutivo", sairíamos das formas primárias de dominação (tradicional e carismática – e ainda que encontremos seus rastros na atualidade) para a forma avançada da "dominação racional-legal".

Nos próximos itens veremos como Durkheim e Weber nos auxiliam a compreender e fixar melhor algumas das categorias presentes neste conceito de Estado Cientificista.

Weber e o aparador de arestas do mundo moderno: razão e direito

Neste contexto, formam-se conceitos e realidades básicas do mundo moderno: Razão de Estado; Estado de Direito; modernidade tardia. A Razão de Estado, na primeira fase da chamada "modernidade clássica" (liminarmente, a partir do Renascimento) e a modernidade tardia (formando-se na segunda fase da modernidade clássica, Iluminismo, até a contemporaneidade), nada mais são do que formas de "atualização" do "fluxo de racionalidade política" presente no "desencantamento do mundo", e que sempre orientou o longo processo civilizatório. Portanto, para melhor compreender esse processo repleto de procedimentos (dentre eles destaca-se o "uso instrumental" e utilitário, da cognição e da razão), é preciso reconstruir alguns conceitos-chave de Weber, como: desencantamento do mundo, dominação racional-legal, Estado de Direito.

Pode-se dizer que há um duplo sentido para a racionalização: a) perspectiva secular e temporal: o comportamento católico foi estruturado da forma mais racional possível, regras morais de conduta, como também não seria permitido que as ações/relações jurídico–mercantis estivessem reguladas por procedimentos de luta - duelo, por exemplo; b) direito calculável (como se toda relação humana ou social pudesse ser programada, programável, previsível). Numa fórmula: Estado de Direito (jurisprudência formal) é a forma jurídica equivalente ou subserviente ao modelo desenvolvido do capitalismo.

A racionalização presente nas ações e relações sociais, bem como na forma de conduto do longo "processo civilizatório" traria consigo tanto um sentimento de responsabilidade política quanto um sentido de proporção.

Para Weber, o que transforma um político normal em chefe político é o fato de ter uma causa e servir a ela com um profundo sentimento de responsabilidade política e, por isso, um inimigo vulgar da política é colocar a vaidade como esta causa principal (narcisismo). No fundo, há dois males terríveis: não ter ou não defender causa alguma (individualismo exacerbado) e/ou não se sentir responsável pelas próprias ações políticas (cinismo: o adorador do poder pelo poder). O senso de responsabilidade indica que é necessário saber para onde se vai. Diria que também precisamos saber com quem se vai. Em política, o cinismo ou imobilismo também é mortal porque, das duas uma: "em política pode errar quem tenta acertar, mas erra sempre quem não arrisca".

O sentido de proporção é um equilíbrio psicológico que se deve colocar entre dois estados mentais: a) a paixão, que leva à expansão, a agir impulsivamente e, b) o recolhimento diante dos fatos ou da própria causa, a fim de que se possa ver à distância, analisar os vários ângulos envolvidos na questão, para só depois mirar o ponto de chegada. A paixão em política mantém a chama acesa, e anima o chefe político a buscar caminhos para a causa. Porém, só a distância dos fatos, o recolhimento, traz frieza ou mais sobriedade (não indiferença) para que se decida com mais controle e racionalidade. Como se diz, não há como analisar bem, no calor da hora: é preciso esperar pelo rescaldo, a poeira abaixar, para depois decidir. Mas é certo que se trata de um enorme esforço psicológico essa qualidade de se afastar para olhar de fora: nem todos conseguem realmente subjugar energicamente a alma. Afinal, também é preciso saber por onde se vai. O porquê se vai também é importante ter claro, exatamente porque é a parte da história que deverá convencer aliados e/ou eleitores que devem seguir o chefe político. Este conjunto seria uma parte do fluxo contínuo da racionalidade, em Weber, que se aplicaria à educação e ao direito:

Esse modelo distinto envolve seis processos sociais e culturais fundamentais e largamente ramificados: 1. o desencanto e a intelectualização do mundo, e a resultante tendência a ver o mundo como um mecanismo causal sujeito, em princípio, ao controle racional; 2. o surgimento de um ethos de realização secular impessoal, historicamente alicerçado na ética puritana da vocação; 3. a crescente importância do conhecimento técnico especializado em economia, administração e educação; 4. a objetificação e despersonalização do direito, da economia e da organização política do Estado, e o conseqüente recrudescimento da regularidade e da calculabilidade da ação nesses domínios; 5. o progressivo desenvolvimento dos meios tecnicamente racionais de controle sobre o homem e a natureza; e 6. a tendência ao deslocamento da orientação da ação tradicional e assente em valores racionais (wertrational) para a ação puramente instrumental (zweckrational) (Outhwaite & Bottomore, 1996, p. 642).

Na modernidade, boa parte das alegações da Razão de Estado (da razão das razões) vem agora estruturada sob os domínios de uma justificativa sistematizada por aspectos econômicos, administrativos e jurídicos: a alma do Estado Cientificista. Para um autor como Weber, é possível um sentido de racionalidade política, ainda que não seja o único e nem mesmo o principal; a racionalidade é a própria derivação da lógica (elo lógico entre meios e fins), tanto quanto se aplicou ao surgimento de uma ética de fins próprios ou de acordo com a própria intelectualização. Foram exatamente essas três tipologias de racionalidade que Giddens destacou:

(1) o que ele diferia diversamente como (no aspecto positivo) "intelectualização" ou (no aspecto negativo) como "desencantamento" (Entzauberung) do mundo; (2) o crescimento da racionalidade no sentido do "elo metodológico entre um determinado fim prático estabelecido e o uso de um cálculo crescentemente preciso dos meios adequados"; (3) e o crescimento da racionalidade no sentido da formação de uma "ética que fosse sistematicamente e de modo não ambíguo orientada para objetivos fixados" (Giddens, 1998, p. 55).

Como veremos na terceira parte do trabalho, o sentido de proporção deve estar afinado à paixão, quando se fala em termos de educação. Pois, para Weber, se o direito decorre da racionalidade e da previsibilidade constantes do Estado Racional (quando em curso a dominação racional-legal), a educação precisa de paixão e de intuição para florescer.

Durkheim e a obrigatoriedade de ser "reto" no direito

Émile Durkheim (1858-1917) era um filho de judeus que não seguiu o caminho do rabinato. Quando formou-se, passou a lecionar Pedagogia e Ciência Social na Faculdade de Letras de Bordeaux (1887 a 1902). A cátedra de Ciência Social foi a primeira em uma universidade francesa e foi concedida àquele que criou a "Escola Sociológica Francesa". A maioria de seus alunos era de professores do ensino primário.

A França desta época enfrentava muitos problemas sociais e tinha de se "adaptar" à Revolução Industrial e digerir seus "ganhos desiguais". Neste período, o motor de combustão interna, o dínamo, a eletricidade, o telégrafo e o petróleo formavam as vedetes do mundo. Outro fatores, de ordem política, também avolumavam a crise, como: a anexação da Lorena, região em que nasceu Durkheim, foi tomada pela Alemanha. Fato que gerou guerra entre os países em 1871 e levou à proclamação da Terceira República Francesa. Este outro "modelo político" trouxe consigo a obrigatoriedade escolar para crianças de 6 a 13 anos e a proibição do ensino religioso em escolas públicas: nascia ou se fortalecia ali "a escola laica republicana". Posto que a educação pública, de caráter universal, data da própria Revolução Francesa.

Tanto Weber quanto Durkheim (e Marx) dedicaram seus esforços contínuos em busca de um conhecimento aprofundado do sistema capitalista de produção: os métodos e os objetivos é que divergiam entre si. Para Durkheim, interessava destacar o aprimoramento da crescente divisão social do trabalho e a racionalização do processo produtivo. Em suma, trata-se do capitalismo dependente da divisão social do trabalho, como sua fonte de energia e impulso, isto é, sem divisão social do trabalho de pouco adiantariam os esforços intelectuais e ideológicos propostos ao Estado Cientificista.

Para Durkheim, a modernidade representava a fase mais desenvolvida da divisão social do trabalho, momento em que se articulam, ajustando-se às necessidades diversas da produção industrial, o trabalho manual e o intelectual, na forma da função homogeneizadora e da função diferenciadora. O papel do Estado seria, portanto, o de regular os contratos estabelecidos e garantir seu cumprimento.

Para Durkheim, a competição capitalista não é o elemento central da ordem industrial emergente, e algumas das características sobre as quais Marx pusera grande ênfase, ele via como marginais e transitórias. O caráter de rápida transformação da vida social moderna não deriva essencialmente do capitalismo, mas do impulso energizante de uma complexa divisão de trabalho, aproveitando a produção para as necessidades humanas através da exploração industrial da natureza. Vivemos numa ordem que não é capitalista, mas industrial (Giddens, 1991, p. 20).

Também inspirado no liberalismo (princípio da liberdade "Minha liberdade começa onde termina a sua"), Durkheim irá associar liberdade a um conjunto de regras.

Para ser mais preciso, mais moderno, poder-se-ia dizer: "só se livre no direito". É interessante notar que Durkheim falaria de uma autoridade moral superior da coletividade: "De fato, uma regra não é apenas uma maneira habitual de agir; é, antes de mais nada, uma maneira de agir obrigatória, isto é, que escapa, em certa medida, do arbítrio individual [...] pois a única personalidade moral que está acima das personalidades particulares é a formada pela coletividade" (Durkheim, 1999, p.X).

Esta coletividade, sob o capitalismo e a modernidade, deveria imprimir coesão e regularidade ("solidariedade orgânica"). Para Durkheim, a divisão do trabalho é evolutiva, uma vez que se desenvolve concomitantemente à solidariedade orgânica da era moderna. De toda forma, a grande indústria é um pólo dessa definição da modernidade.

Por sua vez, a grande indústria, surgiria como parte dos conflitos da "sociedade moderna" que se abria, a partir da Idade Média. Como nos indica Durkheim, no período da Idade Média, o direito ao trabalho era resguardado tanto quanto era diferente do próprio curso dado ao capitalismo moderno: "Assim, os patrões eram proibidos de frustrá-lo de seu direito ao trabalho’, fazendo-se assistir por seus vizinhos ou mesmo por suas esposas" (Durkheim, 1999, p.XX). É óbvio que Durkheim via o direito ao trabalho, mais não percebia a luta de classes em torno da espoliação ao trabalho.

Outro dado interessante na modernidade de Durkheim, era o papel destacado às corporações profissionais, como mediadoras da relação social e, neste sentido, é fácil perceber que a modernidade demora muito a recuperar a idéia de "probidade profissional" (basicamente, no século XIX). O direito administrativo Francês é um marco. Entretanto, para Durkheim, as corporações na Idade Média já anunciaram a chegada da Burguesia ou terceiro estado: De fato, durante muito tempo Burguês e "gente de ofício eram uma só coisa" (Durkheim, 1999, p. XXVIII).

Durkheim via-se como herdeiro da Revolução Francesa, assim como a maioria dos franceses, mas é no debate acerca do direito e da educação que procurou se afirmar como sustentáculo da Terceira República.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. O direito à educação no Estado cientificista.: Estado, sociedade, cidadania e o direito à autonomia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2120, 21 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12666. Acesso em: 27 dez. 2024.

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