4. PERSONALIDADE JURÍDICA
A personalidade jurídica nada mais é do que uma ficção, uma criação do Direito Positivo. Conforme defendido por Ihering, Savigny e outros, é uma mera criação da lei, para conferir direitos e obrigações à um ente autônomo criado através da vontade dos indivíduos.
Embora Zittelmann conceba que "a realidade da pessoa social não está nos indivíduos e sim na idéia transcendental de que eles são manifestação efêmera", enxergando as pessoas jurídicas como pré-existentes à lei, inclusive como distintas das pessoas naturais, tendo até mesmo vontade própria, não se afasta a idéia central da existência e realidade destes entes. A divergência no surgimento não afasta a sua efetividade.
Fran Martins (2008, p. 184), com maestria, delimita o conceito de pessoa jurídica, que nos permite enxergar a distinção entre a sociedade e o sócio:
É a pessoa jurídica o ente incorpóreo que, como as pessoas físicas, pode ser sujeito de direitos. Não se confundem, assim, as pessoas jurídicas com as pessoas físicas, as quais deram lugar ao seu nascimento; ao contrário, delas se distanciam, adquirindo patrimônio autônomo e exercendo direitos em nome próprio. Em razão disso, as pessoas jurídicas têm nome particular, como aquelas físicas, domicílio, nacionalidade; podendo estar em juízo, como autoras, ou na qualidade de rés, sem que isso reflita na pessoa daqueles que as constituíram. Por último, têm vida autônoma, muitas vezes superior às das pessoas que as formaram; em alguns casos, a mudança de estado dessas pessoas não irradia efeitos na estrutura das pessoas jurídicas, de molde a variar as pessoas físicas que lhes deram origem sem que tal fato incida no seu organismo. É o que ocorre via de regra com as sociedades ditas institucionais ou de capitais, cujos sócios podem mudar de Estado ou ser substituídos sem que se altere a estrutura social.
Podemos notar que existe de fato uma individualização entre pessoas naturais e pessoas jurídicas, esta muito mais do que um simples aglomerado de pessoas. Entretanto, por se tratarem de "pessoas", muitos pontos possuem em comum, do ponto de vista das características da personalidade:
A pessoa jurídica apresenta muitas das peculiaridades da pessoa natural: nascimento, registro, personalidade, capacidade, domicílio, previsão de seu final, sua morte, e até mesmo um direito sucessório (Venosa, S.S., 2004, p.167).
Assim, arrematamos que a pessoa jurídica é um agrupamento de pessoas, de capitais ou de ambos, com "vida" própria e independente, criada para a persecução de um fim.
No direito empresarial, é uma figura de extrema importância, pois é nela que se realizam a maioria das sociedades comerciais, a exemplo da sociedade limitada e a sociedade anônima.
No antigo código comercial, não se mencionava o conceito de pessoa jurídica. Entretanto, era inegável a sua necessidade para a criação dos tipos societários, como os descritos anteriormente. Neste diapasão seguiu o código civil em sua parte dedicada ao Direito Empresarial, não se referindo de forma direta a personalidade jurídica. No entanto, ao enumerar as pessoas jurídicas de Direito Privado (art. 44) fez referência às sociedades comerciais, incluídas no Livro II da Parte Especial daquele diploma.
Não se pode imaginar o Direito Comercial no nível que se encontra hoje sem a existência das pessoas jurídicas. Os avanços econômicos e tecnológicos trouxeram às corporações uma magnitude que não poderia ser limitada pela adstrição a uma pessoa física. Como dito por Fran Martins, tais entes têm vida distinta e por vezes longínqua em relação a de seus criadores, patrimônios surpreendentes, e se sujeitam a obrigações financeiras as quais dificilmente poderiam ser arcadas por seus criadores pessoalmente.
Nem toda sociedade comercial é precedida de pessoa jurídica. A sociedade em conta de participação, v. g., não exige (e nem poderia) ser dotada de personalidade, devido a sua própria natureza e caráter, onde se faz sociedade apenas internamente, existindo como uma única pessoa física para o mundo exterior, ainda que estes tenham conhecimento da sociedade.
As pessoas jurídicas, em especial as das sociedades empresárias, têm características, ou como prefere denominar Fran Martins, conseqüências próprias desta personalidade. Ressalte-se que a constituição de Sociedade Unipessoal obedeceria a estes requisitos, e, mais do que isso, efeitos de extremo interesse daquele que está a constituindo, no intuito de separar sua personalidade daquela.
a)Patrimônio próprio
A constituição da sociedade se dá através da contribuição de cada sócio (no caso do nosso trabalho, do sócio único) para formar o capital social. Frize-se que este capital compreende não só a pecúnia (capital stricto sensu), mas também quaisquer bens dedicados para a formação do patrimônio da pessoa jurídica. Chama-se de cota a contribuição dos sócios, via de regra. [04] A contribuição pode se dar na constituição da sociedade ou posteriormente, através de promessa futura de contribuição. A estes institutos chamamos comumente de capital integralizado e capital a integralizar. Vale ressaltar que o sócio que não integralizou suas cotas responde pessoalmente pelo valor que deixou de integralizar.
A responsabilidade patrimonial é limitada aos valores de suas cotas, e, somente pessoalmente, quando não integralizadas e, excepcionalmente, em caso de fraude. A responsabilidade da sociedade perante terceiros é ilimitada em relação ao seu patrimônio próprio. Ou seja, a limitação é relativa apenas a pessoa dos sócios, não à sociedade.
Deste entendimento decorre também que o patrimônio da pessoa jurídica não integra, em nenhuma hipótese, o patrimônio dos sócios. Desta forma, em caso de dissolução da sociedade, o patrimônio desta não retorna aos sócios, e sim, fica adstrito às obrigações contraídas perante terceiros.
O valor percebido pelos sócios é a participação nos lucros (ou perdas) da sociedade, não influenciando no quantum do seu patrimônio.
Não seria diferente no caso da Sociedade Unipessoal, uma vez que o sócio unipessoal afetaria bens e capital à sociedade, distinguindo entre o patrimônio desta e o particular seu. Também ficaria obrigado pessoalmente apenas à integralização do capital, nos mesmos termos do artigo 1.052 do Código Civil. Em relação ao artigo 1.007 do mesmo diploma, a diferença se faria no fato de o sócio unipessoal ter direito á totalidade dos lucros, não se aplicando o art. 1.008, pela ausência da pluralidade de sócios, quer dizer, não se haveria como excluir o único sócio da participação dos lucros.
b) Nome empresarial
No sábio ensinamento de Waldo Fazzio Junior, "Se o nome civil significa a pessoa natural , como símbolo singularizador, o nome empresarial significa o empresário (2003, p. 51)".
O nome empresarial é a individualização da empresa ou sociedade empresária das demais, na mesma forma como ocorre com as pessoas físicas. Se sujeita a registro, da mesma forma que aquelas. [05] É também um diferenciador entre a empresa e a pessoa do sócio, ainda que o nome deste possa estar contido no nome daquela.
O nome empresarial também identifica o tipo societário. Como conseqüência, gera obrigações para a pessoa da empresa, tornando-a titular de direitos e deveres.
O sistema adotado no Brasil é o suíço. Confere ao nome uma proteção especial, em razão do registro na Junta Comercial, e decorre, automaticamente, do arquivamento dos atos constitutivos ou das posteriores alterações da empresa individual ou sociedade. Em relação ao artigo 34 da Lei 8.934/94, tem-se que se deve obedecer aos princípios da veracidade e da novidade. Em outras palavras, o nome empresarial deve ater-se à realidade da empresa, inclusive indicando, quando for o caso, quem exerce a atividade mercantil, delimitando o responsável pelos encargos sociais. Deve ser respeitado também a existência de nomes anteriormente registrados, não se admitindo duplicidade de nomes; fica claro, assim, o princípio da novidade em relação ao nome empresarial.
Existem duas espécies de nome individual. A firma e a denominação.
b.1) A firma é o nome empresarial formado pelo nome patronímico, por extenso ou abreviado do empresário ou dos sócios. No caso de sócios, não figurando todos no nome empresarial, deve-se adotar ao final a expressão "e companhia" ou "e cia." Para determinar a pluralidade de sócios. A firma é a própria assinatura da sociedade. O empresário individual somente poderá adotar a firma, e a sociedade por cotas de responsabilidade limitada poderá adotar, opcionalmente, a firma, contendo o nome de um, uns ou todos os sócios, por extenso, de forma abreviada ou com supressão de parte dos nomes (v. g. Dantas & Morais ltda.), lembrando sempre e, no caso de não figurarem todos os sócios na firma, deverá constar ao final a expressão "e companhia" por extenso ou de forma abreviada, de forma a permitir a perfeita constituição da sociedade [06]. A firma é também conhecida como razão social.
b.2) A denominação é um nome empresarial de fantasia ou criado a partir do objeto da empresa. É característica das sociedades onde a responsabilidade dos sócios é limitada [07]. Ressalta-se que na denominação pode constar o nome do sócio fundador ou do presidente da sociedade que assina nos contratos o seu próprio nome, representando a companhia, embora a regra seja a do nome fantasia. Ressalte-se também que a denominação é privativa das sociedades comerciais. É o modo de formação do nome comercial mais atual, pois resguarda os interesses dos sócios. Nas palavras de José Edwaldo Tavares Borba:
A tendência atual é no sentido de preferir-se a denominação, uma vez que a firma se encontra sujeita a contingências ligadas a eventuais mudanças no quadro social. No caso de firma, se o sócio que lhe dá nome falece ou se retira da sociedade, a firma terá que mudar, para adequar-se aos nomes dos sócios efetivamente existentes na sociedade, de modo a atender-se o princípio da veracidade das firmas (1986, p. 47 : 48).
A sociedade por cotas de responsabilidade limitada poderá optar pela denominação, e à sociedade anônima só lhe é permitida esta opção.
Como já foi dito, o nome comercial também distingue o sócio da pessoa jurídica. O sócio tem responsabilidade ilimitada perante seus credores pessoais, mas não perante os da empresa [08], assim como não é possível o inverso, a empresa responder pelas obrigações pessoais do sócio. Somente no caso do comerciante individual é que a obrigação contraída com a firma obriga a pessoa natural, bem como nas sociedades que não se revestirem da obrigação limitada, a exemplo as sociedade em comum.
O nome empresarial também agrega valor a empresa, uma vez que sugere a confiança que os consumidores possam depositar nela, assim como outras características, tais quais a tradição, a robustez, o relacionamento com os clientes, etc.
O nome empresarial a ser adotado pelas sociedades unipessoais será tratado mais adequadamente nos tópicos a ela referidos. No entanto, em razão da instrumentalidade similar à das sociedades por cotas de responsabilidade limitada, o mais adequado seria a adoção dos mesmos critérios daquela, permitindo o uso de firma ou denominação, conforme fosse mais adequado ao constituinte.
c) Domicílio
O domicílio é a sede da pessoa jurídica, em geral divergente do domicílio dos sócios. É o centro da administração da sociedade. Podemos entender como domicílio um atributo da pessoa, natural ou jurídica. Não só o disposto nos artigos 70 e ss. do Código Civil, mas também o centro dos interesses da pessoa, no caso da pessoa jurídica de fins comerciais, em geral, de ordem econômica. Está também ligado ao conceito de estabelecimento.
O domicílio serve para determinar a que regime jurídico está submetida a sociedade ou empresário.
d) Nacionalidade
A nacionalidade é um conceito mais abrangente do que o domicílio, e serve para saber o âmbito de aplicação legislativa e constitucional. As empresas (individuais ou sociedades) podem ser brasileiras ou estrangeiras.
São brasileiras aquelas constituídas no Brasil, de acordo com a legislação pátria. A independência da pessoa jurídica daqueles que a constituíram é mais uma vez evidenciada pelo fato de a nacionalidade dos sócios poder ser diversa da nacionalidade da empresa. Assim sendo, sócio estrangeiro poderá constituir empresa no Brasil [09] de acordo com o nosso ordenamento jurídico e a nacionalidade da empresa será brasileira.
Por outro lado, são consideradas estrangeiras as empresas constituídas sob a legislação de outros países, que vêm se instalar no Brasil. Essas empresas devem preencher requisitos para funcionar, tal como a tradução do ato constitutivo para o nosso idioma ou a adição do termo "do Brasil" ou "para o Brasil" no nome empresarial, para designar a nacionalidade estrangeira. Mas uma vez este mandamento recai no princípio da veracidade do nome empresarial.
4.1 Extinção da Pessoa Jurídica
O termo extinção da pessoa jurídica pode ser entendido como extinção ou dissolução, já que cada autor utiliza-se de determinada nomenclatura para o mesmo instituto. Waldo Fazzio Junior, que adota a denominação de dissolução é quem elenca as hipóteses em que pode ocorrer a extinção.
- Por deliberação unânime dos sócios (art. 1.033, inciso II do CC);
- expirado o prazo determinado de duração, sem prorrogação expressa ou tácita (art. 1.033, inciso I do CC)
- pelo encerramento da falência (art. 1.044 do CC)
- pela extinção da autorização para funcionar (art. 1.033, inciso V);
- por condição contratual (art. 1.035 do CC)
- pela redução à singularidade, sem restauração, no prazo de 180 dias, da pluralidade social.
A primeira hipótese se refere a dissolução por prazo indeterminado, e a segunda, por prazo determinado. Vale ressaltar que a prorrogação tácita da sociedade por prazo determinado torna-a irregular, ou seja, uma sociedade de fato sem a blindagem da responsabilidade limitada.
A última hipótese elencada seria a que daria aso a criação da sociedade unipessoal subsidiária, uma vez que, originariamente pluripessoal, tornar-se-ia unipessoal em razão da concentração das cotas, sem, contudo, perder o seu objeto ou afetar diretamente a pessoa jurídica. É uma das hipóteses de sociedade unipessoal defendida por nós.
Fran Martins concebe a extinção em duas fases: a dissolução e a liquidação. O momento da dissolução é aquele em que as atividades empresariais deixam de existir. Pode ocorrer em razão de uma das hipóteses relatadas anteriormente ou por sentença judicial, onde o rol de hipóteses, catalogadas no artigo 1.034 do Código Civil não é taxativo, e pode ser requerida por qualquer um dos sócios.
O outro momento é o da liquidação. Nela, se realiza todo o ativo e passivo da empresa, liquidando o tanto quanto possível para quitar as dívidas assumidas. Em seguida, os haveres são repartidos entre os sócios.
Esmiuçando essa segunda fase, inicia-se com o procedimento realizando o ativo e solucionando o passivo. Este processo pode ser judicial ou extra-judicial. Na judicial, o juiz nomeia liquidante, e na extra-judicial, este pode ser um sócio ou um terceiro nomeado por eles. São vedadas as contratações de novos negócio após o início dessa fase, podendo, o administrador, ser responsabilizado solidária e ilimitadamente pelos atos praticados em desacordo com esta ordem.
Em seguida ocorre o pagamento do passivo, de acordo com o disposto no artigo 1.066 do Código Civil. Deve-se obedecer como regra para a organização dos pagamentos, como nos ensina Waldo Fazzio Junior, a mesma ordem de preferência do processo falimentar, a saber:
1.credores por acidente do trabalho;
2.créditos dos empregados e dos representantes comerciais;
3.dívida ativa;
4.créditos fiscais;
5.créditos com garantia real;
6.créditos com privilégio especial;
7.créditos com privilégio geral;
8.créditos quirografários.
Por último, após o pagamento de todo o passivo, restando haveres, os sócios podem deliberar a partilha do residual. A partilha poderá ser impugnada se sócio verificar o favorecimento irregular de algum outro. Após esta última fase, o liquidante fará sua prestação final de contas perante a sociedade, e assim sendo aprovadas, dá-se por encerrada a liquidação e a sociedade
Chegando a termo a liquidação, o credor insatisfeito poderá exigir dos sócios, individualmente, até o limite do percebido na liquidação, e poderá propor ação contra o liquidante relativa a perdas e danos.
Ao final, se arquiva o ato de dissolução no Registro Público de Empresas Mercantis e Afins, sem o qual, subsistirá a responsabilidade dos sócios, em relação a obrigação contraída por um deles, mormente em nome da sociedade.
Em se tratando de sociedade unipessoal, a fase final da liquidação é mais simplificada, pois não há necessidade da partilha dos haveres e nem ação de regresso, no caso de credor insatisfeito que execute um determinado sócio em relação à sua participação na partilha.
Outro aspecto simplificador diz respeito a ausência de divergência quanto ao momento da liquidação, pois a unipessoalidade enseja decisão única, e não colegiada, não acomodando dissiparidade de idéias. Ou seja, decidido pela dissolução, ela se operará de plano, sem necessidade de assembléia, nem requerimento judicial, devendo o sócio unipessoal preencher todos os procedimentos relativos aos credores.