4 REGIME DE BENS: OS PRINCIPAIS REFLEXOS NO CASAMENTO E NA UNIÃO ESTÁVEL
Os efeitos decorrentes do casamento e da união estável são inúmeros. Tais efeitos podem ser de ordem pessoal e patrimonial [131]. Todavia, cuidaremos apenas, sucintamente, dos reflexos patrimoniais, que será fundamental para análise do tema neste trabalho proposto. Inicialmente, salutar frisar que tais reflexos decorrem, em regra, do regime de bens a incidir no caso concreto. Mas, em nenhum momento, podemos nos afastar da premissa de que as entidades familiares não devem possuir conteúdo econômico direto [132].
Como é cediço, a união estável é um fato jurídico relativamente novo, se comparado ao casamento, sendo tão somente reconhecida pelo sistema constitucional vigente. Daí advém que o estudo de regime de bens sempre esteve ligado ao casamento. Até mesmo pelo fato de que se exige acentuado rigor na formalidade adotada para este, ao passo que a união estável pode ser caracterizada justamente por esta ausência de rigor formal. Como já ressaltamos oportunamente, não há como constituir casamento sem o "aval" do Estado, já que mister a presença da autoridade celebrante. A união estável, por sua vez, se dá, na maior parte dos casos, sem o conhecimento do Estado, o qual só vem a tomar ciência do vínculo por conta de sua própria dissolução, a fim de dar cabo às dissidências de ordem patrimonial aventadas pelos conviventes. Em vista disso, até mesmo pela práxis, o regime de bens sempre teve maior repercussão no âmbito do matrimônio.
Ocorre que em virtude do expressivo número de pessoas que tem optado pelo vínculo da união estável, [133] tem se tornado constante a discussão no Judiciário acerca dos direitos patrimoniais oriundos dessa convivência [134]. Dentro dessa perspectiva econômica indireta que pode assumir as entidades familiares, avaliaremos seus principais reflexos no âmbito do casamento e da união estável.
4.1 NO CASAMENTO
Consoante tratamento dispensado pelo art. 1639 e seguintes do Código Civil 2002, é lícito aos "nubentes, antes de celebrarem o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver". Logo, predominou como regra geral, o princípio da autonomia da vontade quanto à escolha do regime de bens. Aliás, não poderia ser diferente, vez que em se tratando de direito patrimonial, a regra é a livre disponibilidade.
Nas palavras do ilustre civilista Caio Mário da Silva Pereira [135]:
A essência das relações econômicas entre casados reside, efetivamente, nos regimes de bens, sobre os quais a doutrina, tanto nacional como estrangeira, se estende, deles cogitando igualmente as legislações. Não se pode, em verdade, conceber um casamento sem regime de bens, mesmo nos países de economia socialista, e ainda que os cônjuges conservassem seus patrimônios totalmente estanques e sem encargos patrimoniais, pois a lei que o estabelecesse estaria instituindo desta maneira um regime de bens.
Mas, o que vem a ser regime de bens? Segundo ensina o Prof° Carlos Roberto Gonçalves [136] regime de bens pode ser entendido como:
(...) o conjunto de regras que disciplina as relações econômicas dos cônjuges, quer entre si, quer no tocante a terceiros, durante o casamento. Regula especialmente o domínio e a administração de ambos ou de cada um sobre os bens anteriores e os adquiridos na constância da união conjugal.
De qualquer modo, a classificação dos regimes de bens respeitará a observância de dois critérios, a saber: (a) quanto à origem e; (b) quanto ao objeto. Sendo que o primeiro critério leva em conta se o regime advém de convenção dos nubentes, que é a regra, ou se possui origem legal, isto é, regime imposto pela lei para os casos pontuais elencados no art. 1641 do Código Civil 2002. Já no segundo, a análise recai sobre a comunicação ou não de patrimônios pelos consortes, de modo que, a rigor, existiriam tão somente os regimes da "comunhão" e "separação." [137]
Segundo ensina Caio Mário da Silva Pereira [138],
A imaginação humana, a serviço das conveniências dos cônjuges, tem trabalhado no sentido de combinarem em e outro critério, e, desta sorte, sugere a manutenção das formas puras originais, ou a criação de outros regimes em que comunicam alguns valores, enquanto outros se conservam destacados no patrimônio dos consortes. É, pois, lícito aos cônjuges escolher o regime de suas preferências, combiná-los ou estipular cláusulas de sua livre escolha e redação, desde que não atentem contra os princípios de ordem pública, e não contrariem a natureza e os fins do casamento.
Nessa senda, o Código Civil de 2002 contemplou os seguintes regimes de bens: o da comunhão universal de bens, o da comunhão parcial de bens, o da participação final nos aqüestos e o da separação de bens (convencional ou legal). De qualquer modo, a opção ou a incidência de qualquer deles importará na produção dos respectivos efeitos legalmente previstos. Teceremos, assim, breves comentários acerca de cada um destes regimes.
4.1.1 REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS
Na sistemática adotada para o regime da comunhão parcial de bens, excluem-se, basicamente, os "bens que os cônjuges possuem ao casar ou que venham a adquirir por causa anterior e alheia ao casamento, como as doações e sucessões; e em que entram na comunhão os bens adquiridos posteriormente, em regra, a título oneroso". [139]
Assim, Sílvio Salvo Venosa, [140] destaca que neste regime patrimonial é possível a identificação de três conjuntos de bens, a saber:
(...) os bens do marido e os bens da mulher trazidos antes do casamento e os bens comuns, amealhados após o matrimônio. Trata-se de regime da maioria absoluta dos casamentos realizados após 1977, pois os pactos antenupciais são raros".
Dissolvido, portanto, o vinculo por qualquer motivo, cada cônjuge fará jus ao seu conjunto de bens particulares e à divisão daqueles comuns, isto é, adquiridos pelo esforço comum na constância do matrimonio [141]. Aqui, há exclusão expressa de alguns bens, como, por exemplo, aqueles que tiverem causa anterior ao casamento e, os demais elencados no art. 1659 do Código Civil 2002. [142]
Imprescindível ressalvar que o CC/02, no art. 1640, previu uma regra supletiva para os casos em que "não havendo convenção, ou sendo ela nula ou eficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial". Antes do advento da Lei do Divórcio, n° 6.515, de 26 de dezembro de 1977, que pelo art. 50, conferiu nova redação ao art. 258 do Código Civil de 1916, o regime de regência supletiva era o da comunhão universal.
No que se refere aos direitos sucessórios, na incidência deste regime, seja por convenção das partes, seja supletivamente, o cônjuge terá direito à meação quanto aos bens adquiridos a título oneroso na constância do matrimônio, e, à herança quanto aos bens particulares, concorrendo, assim com demais herdeiros. Portanto, conforme sugere a leitura do art. 1829 do CC/02, o cônjuge supérstite casado no regime de bens pela comunhão parcial, será herdeiro sempre que o cônjuge de cujus houver deixado bens particulares, como, por exemplo, aqueles oriundos de doação. Mas em deixando apenas bens comuns participará tão somente da meação destes. Em deixando tanto bens comuns como particulares, o cônjuge supérstite fará jus tanto à meação quanto à herança.
4.1.2 REGIME DA COMUNHÃO UNIVERSAL
O regime da comunhão universal é aquele que "importa a comunicação todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas" [143], com algumas exceções. Trata-se de regime tipicamente convencional [144], que permite a estipulação no pacto antenupcial de que, até a dissolução da sociedade conjugal, o acervo comum permanece indivisível. [145]
A natureza dessa comunhão tem sido debatida na doutrina, havendo quem entenda ser uma forma de condomínio e outros que sustentam ser verdadeira sociedade conjugal com caracteres próprios. [146] Seja como for, dissolvida a sociedade conjugal cada cônjuge fará jus à meação.
No dizer de Maria Helena Diniz, através da estipulação regime da comunhão universal no pacto antenupcial, os consortes comunicam não só os seus bens presentes e/ou futuros, mas as dívidas passivas também se tornarão comuns, de modo que sequer poderão contratar sociedade entre si (art. 977, CC/02). [147]
Vale pôr em destaque que por expressa disposição legal (art. 1668, do CC/02) alguns bens foram excluídos dessa comunhão, haja vista seu claro caráter personalíssimo ou em virtude de sua própria natureza, como, por exemplo, os bens doados ou herdados com cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar (inc. I). [148]
De qualquer modo, sendo o vínculo desfeito por qualquer razão, será deferida a meação para cada cônjuge. Em sendo por morte, o cônjuge supérstite terá direito apenas à meação que lhe caiba, não participando da sucessão na condição de herdeiro, já que está excluído desta condição pelo art. 1829, I do CC/02.
4.1.3 REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS
Também contemplou o Código Civil de 2002, o regime da separação de bens, que poderá ser por fruto de livre convenção dos nubentes ou por imposição legal, em algumas situações. De qualquer sorte, prevaleceu a regra da livre escolha quanto ao regime de bens. Em se tratando de separação de bens por consenso dos nubentes, a sistemática adotada será a dos artigos 1687 e 1688 do referido diploma, que estabelece, respectivamente:
Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real.
Art. 1.688. Ambos os cônjuges são obrigados a contribuir para as despesas do casal na proporção dos rendimentos de seu trabalho e de seus bens, salvo estipulação em contrário no pacto antenupcial.
Como resta clarividente da leitura dos retrocitados dispositivos, o traço distintivo deste regime reside no fato de que não há qualquer comunicação do patrimônio dos nubentes, quer tenham sido adquiridos antes quer tenham sido adquiridos na constância do matrimônio. Daí decorre que ambos poderão alienar livremente seus bens ou gravá-los de ônus real, independentemente da anuência do outro. Frisa-se esta independência de anuência do cônjuge, "pois no Código de 1916, mesmo no regime da separação absoluta, havia a necessidade de outorga conjugal para a alienação de imóveis." [149]
Aqui se torna indiferente a análise de esforço comum para aquisição de patrimônio durante o vínculo matrimonial, vez que, como bem ressalta Maria Helena Diniz: [150]
O regime da separação de bens (CC, art. 1687) vem a ser aquele em que cada consorte conserva, com exclusividade, o domínio, posse e administração de seus bens presentes e futuros e a responsabilidade pelos débitos anteriores e posteriores ao matrimônio. Portanto, existem dois patrimônios perfeitamente separados e distintos: o do marido e o da mulher. (...) Assim, esse regime em nada influi na esfera pecuniária dos consortes.
Em regra a escolha deste regime advém da intenção dos nubentes em manter incólumes os respectivos patrimônios, que não se alterarão em razão da superveniência do vínculo matrimonial.
Todavia, nem sempre será assim. As pessoas que se encontrarem dentro das situações previstas no art. 1641, do Código Civil de 2002, estão impedidas de optarem por qualquer dos regimes ordinariamente postos à disposição dos consortes. Aqui, o legislador, "por razões de ordem pública, visando proteger o nubente ou terceiro ou por ser exigido como sanção," [151] impôs a separação obrigatória de bens. Confira o teor da redação do art. 1641:
Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II - da pessoa maior de sessenta anos;
III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
Logo, as pessoas inseridas nestas situações terão que suportar os efeitos da imposição legal do regime, já que o legislador excepcionou a regra da livre manifestação de vontade dos consortes, estabelecendo a separação compulsória de bens.
Na separação legal os efeitos serão praticamente os mesmos. Contudo, em se tratando de efeitos sucessórios, os efeitos irão variar conforme o regime seja convencional ou legal. De modo que em se tratando de separação obrigatória o cônjuge sobrevivente não será meeiro nem herdeiro [152]. Já no caso de separação consensual, embora não seja meeiro, poderá vir a ser herdeiro, conforme dicção do art. 1829, I do CC/02. [153] Na lição do prof° Caio Mário da Silva Pereira [154]:
Cessando o regime da comunhão parcial pela morte de um dos cônjuges, pela separação judicial, pelo divórcio ou pela anulação do matrimonio, os bens que não se comunicaram se atribuem a cada um respectivamente ou aos herdeiros, ad instar do que se dá no regime de separação; e os que eram patrimônio comum se distribuem segundo as regras que presidem a partilha no de comunhão universal.
Importa dizer que há certa celeuma na doutrina quanto a aplicação da Súmula n° 377 [155] do Supremo Tribunal Federal. Boa parte da doutrina (Caio Mário da Silva Pereira, Pontes de Miranda, Orlando Gomes) defende a incomunicabilidade dos bens havidos na constância do casamento pelo regime da separação legal, sustentando que a mesma foi derrogada pelo Código atual, outros, como Maria Berenice Dias, entendem a plena vigência da mesma, ao argumento do nítido caráter ético desta Súmula que "de forma salutar assegura a meação sobre o patrimônio, gerando a impossibilidade da ocorrência de enriquecimento injustificado". [156]
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul [157], por sua vez, tem aplicado a referida súmula mesmo depois de 2002. Confira a ementa que se segue:
APELAÇÃO CÍVEL. PARTILHA. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. SÚMULA 377 DO STF.
Ainda que o casamento tenha sido celebrado pelo regime da separação obrigatória de bens (art. 258, parágrafo único, inc. I, do CC/16), é devida a partilha igualitária do patrimônio adquirido na sua constância, com base no princípio da solidariedade e a fim de evitar a ocorrência de enriquecimento ilícito de um consorte em detrimento de outro. Aplicação da Súmula 377 do STF. ALIMENTOS DEVIDOS À EX-CÔNJUGE. MENSURAÇÃO DO VALOR. BINÔMIO NECESSIDADE/POSSIBILIDADE. Impositiva a redução da verba alimentar arbitrada em primeira instância quando esta compromete a quase totalidade dos rendimentos auferidos pelo alimentante. Inteligência do art. 1.694, §1º, do Código Civil. Apelo provido em parte. (SEGREDO DE JUSTIÇA)
Conclui-se, ante ao exposto, que a regra do art. 1641 do CC/02, por si só, não elide a que possa haver divisão dos aqüestos ainda que o regime seja da separação legal.
4.1.4 REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL NOS AQÜESTOS
O regime previsto no art. 1.672, do CC/02, não encontra precedente no Código Civil anterior. Tal regime possui suas raízes no direito húngaro, tendo sido adotado por países escandinavos sob outras denominações. [158] O referido dispositivo legal, reza que:
no regime de participação final nos aqüestos, cada cônjuge possui patrimônio próprio, consoante disposto no artigo seguinte, e lhe cabe, à época da dissolução da sociedade conjugal, direito à metade dos bens adquiridos pelo casal, a título oneroso, na constância do casamento.
A característica fundamental deste regime de bens, nas sábias palavras de Caio Mário da Silva Pereira:
(...) consiste em que, na constância do casamento os cônjuges vivem sob o império da separação de bens, cada um deles com seu patrimônio separado. Ocorrendo a dissolução da sociedade conjugal (pela morte de um dos cônjuges, pela separação judicial ou pelo divórcio), reconstitui-se contabilmente uma comunhão de aqüestos. Nesta reconstituição nominal (não in natura), levanta-se o acréscimo patrimonial de cada um dos cônjuges no período de vigência do casamento. Efetua-se uma espécie de balanço, e aquele que se houver enriquecido menos terá direito à metade do saldo encontrado.
Extrato de Destarte, os bens pertencentes a cada consorte somente se tornará comum e dará direito à meação em caso de dissolução da sociedade conjugal, antes o que se tem é mera expectativa de meação, podendo cada um gerir seu próprio patrimônio enquanto perdurar o vínculo. Esse regime tem sido adotado com freqüência em países desenvolvidos, em que os nubentes exercem atividades empresariais distintas e com este regime podem manusear com mais liberdades seus bens, favorecendo o exercício de suas atividades profissionais. [159]
Aplicar-se-ão as mesmas normas para o caso de dissolução do vínculo por morte de um dos cônjuges. De todo modo que deverá ser calculado o monte dos aqüestos para, então, partilha-lo em duas partes iguais, deferindo-se ao cônjuge viúvo a meação que lhe é devida.
Finda a análise dos regimes de bens no contexto do casamento, cumpre agora analisar sua repercussão no âmbito da união estável.
4.2 NA UNIÃO ESTÁVEL
O art. 1725, do CC/02, prevê que "na união estável, salvo estipulação em contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens".
Desta feita, presentes os requisitos do art. 1,° da Lei n° 9278/96 e do art. 1723, do Código Civil de 2002, para a configuração da união estável, isto é, configurada a convivência entre homem e mulher, que seja, pública, contínua e duradoura e com o objetivo de constituir família, serão observadas as disposições do regime da comunhão parcial de bens. Nada obsta, contudo, que por instrumento público ou particular, os companheiros disponham da maneira que lhes aprouver acerca das consequências patrimoniais advindas desta união.
Em vista disso, podemos afirmar que pelo regime legal atual (art. 1° da Lei n° 9278/96), salvo estipulação em contrário, os bens móveis ou imóveis, adquiridos por um ou por ambos os companheiros, na constância da união estável, a título oneroso, são considerados comuns, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais. Para tanto, independe se ambos contribuíram financeiramente, bastando a vida em comum para que se presuma o esforço de ambos companheiros na aquisição do patrimônio na constância da união.
Segundo entendimento do Superior Tribunal de justiça [160], para gerar a partilha é necessário que haja empenho comum por partes dos cônjuges. Todavia, nada obsta a que esta contribuição se dê de modo indireto, já que com o art. 1.725 do Código Civil de 2002, o que importa é a vida em comum, não sendo mais imprescindível avaliar a contribuição financeira. O que conta, portanto, é a participação traduzida pela "solidariedade que deve unir o casal, medida pela comunhão da vida, na presença em todos os momentos da convivência, base da família, fonte do êxito pessoal e profissional de seus membros".
Na visão sustentada por Gustavo Tepedino [161]
A vida espiritual de dois companheiros, para sua caracterização, não leva em conta o regime de bens pretendidos. Assim como o casamento pode ser estipulado mediante qualquer regime patrimonial de bens, prevalecendo a autonomia das partes como princípio geral, também a união não tem na comunhão de aqüestos um pressuposto para sua configuração, sendo certo que os companheiros, por maioria de razão, podem, no dia-a-dia de sua convivência, optar pela constituição de patrimonio único, a partir da comunhão de esforços e de recursos, como podem seguir cada qual a sua atividade econômica independente, constituindo patrimônios separados, sem embargos da cumplicidade que lhes é implicita.( grifo nosso)
Repita-se, prevalece a autonomia da vontade das partes como princípio geral a nortear as questões patrimoniais entre companheiros.
Não podemos perder de vista que a comunhão de bens tem por fundamentos, essencialmente, "o animus societas e a mútua assistência e/ou contribuição para formação do patrimônio comum do casal" [162]. De modo que, a previsão da incidência supletiva do regime da comunhão parcial de bens, para os casos em que os companheiros se mantiverem silentes, inserta no art. 1725 do Código Civil de 2002, é plenamente compatível com tais fundamentos e impede o locupletamento ilícito de um companheiro em detrimento do outro.
Ora, se a intenção é que não haja comunicação de patrimônio, os companheiros devem manifestar esse intento mediante instrumento público ou particular, caso contrário, a presunção é que esta entidade familiar envidou energia comum na formação do patrimônio, e que, por isso, em havendo dissolução do vínculo por qualquer motivo, fluirá os efeitos esperados, com a devida partilha dos bens conquistados no percurso da união estável, garantindo, assim, que nenhum dos companheiros venha a ser surpreendido com a ruptura do vínculo, as vezes de décadas, que não lhe garanta percepção alguma do que fora acumulado no período. [163]
Quanto aos efeitos causa mortis que podem decorrer da união estável, cumpre destacar que o companheiro ou companheira para participar do processo de inventário e partilha, terá que, primeiro, ter comprovado sua situação na Vara de Família, isto é, somente quando da declaração da união estável é que poderá pleitear os direitos que na condição de companheira fizer jus [164].
Em consonância com a regra geral do art. 1725 do Código Civil de 2002, o art. 1790 do mesmo diploma estabelece que:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
A doutrina, em sua maioria, tem tecido severas críticas ao tratamento dispensado aos companheiros pelo Novo Código Civil em matéria de sucessão. De modo que tal legislação, além de limitar o direito sucessório dos companheiros somente àqueles bens adquiridos onerosamente durante a união estável, impôs ainda a concorrência do companheiro, inclusive, com os colaterais até o quarto grau do de cujos, retirando do companheiro supérstite o direito real de habitação e o usufruto vidual, previstos nas leis que anteriomente cuidavam da convivencia extramatrimonial. [165]
Assim, considera-se um retrocesso na disciplina protetiva da união estável essas limitações, já que na sistemática da Lei n° 8.971/94, na falta de descendentes ou ascendentes, o companheiro recebia toda a herança. Tal regramento soa ainda mais discriminatório quando comparado à intituição matrimonializada, em que o cônjuge sobrevivente figura em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, preferindo, portanto, aos colaterais do de cujus [166]. Ora, desprezou-se claramente o intuito de tutela da união estável enquanto entidade familiar, prevista constitucionalmente, e não de mera sociedade de fato.
Veja o absurdo que esse tratamento pode acarretar, segundo Euclides de Oliveira [167]:
Demais disso, considere-se a hipótese de o falecido ter deixado apenas bens adquiridos antes da união estável, ou havidos por doação ou herança. Então, o companheiro nada herdará, mesmo que não haja parentes sucessíveis, ficando a herança vacante para o ente público beneficiário (Município ou Distrito Federal, se localizada nas respectivas circunscrições, ou União, quando situada em território federal – art. 1844 do NCC)
Assim, às sucessões ocorridas no contexto das uniões estáveis, antes do advento do Código Civil 2002, aplicar-se-ão as legislações mais benéficas, quais sejam: as Leis n° 8.971/94 e n° 9.278/96. [168] Já aquelas que lhes forem posteriores, terão que observar o disposto nos artigos 1790 e 1844 do referido Código, nitidamente mais prejudicial ao companheiro sobrevivente, vez que no direito das sucessões aplica-se a lei vigente ao tempo da abertura da sucessão. [169]
Por fim, é oportuno lembrar que diversos autores e grande parte da jurisprudência, entendem ser também aplicáveis à união estável as restrições do art. 1.641 do Código Civil 2002, pois, o contrário significaria privilegiar a união estável em detrimento do casamento. Em igual rumo a posição defendida por Guilherme Calmon Nogueira da Gama [170], para quem as pessoas que estão impedidas de optarem pelo regime de bens no âmbito do casamento,
(...) também não podem pactuar quanto aos bens adquiridos na constância da união extramatrimonial, pois, do contrário, haveria estímulo à existência de situações fundadas no companheirismo em detrimento do casamento, o que é vedado pela norma constitucional que prevê a conversão da "união estável" em casamento.
Não obstante a isso, coadunamos com o entendimeto de que as hipóteses restritivas do art. 1641 do Código Civil 2002 é inconstitucional para ambos o casos, tendo em vista que malfere ditames constitucionais como o da dignidade da pessoa humana da isonomia, conforme demonstraremos nos capítulos seguintes.