Artigo Destaque dos editores

A (in)constitucionalidade material da imposição do regime da separação obrigatória de bens para os maiores de sessenta anos

Exibindo página 7 de 8
05/06/2009 às 00:00
Leia nesta página:

7 DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme analisado alhures, aquela visão patriarcal, conservadora, patrimonial e estritamente liberal que inspirou o Código de Napoleão, teve repercussão direta no processo de codificação em todo mundo.

Como fruto dessa onda de codificação, o Brasil consagrou o Código Civil de 1916. Assentado sobre a mesma base liberal que o Code francês, nosso código somente reconhecia a família matrimonializada, deixando a margem da tutela jurídica inúmeras situações que não se subsumiam ao estrito conceito de família difundido na época.

Esse quadro somente foi revertido quando em 1977, a Constituição de 1969 sofreu alteração pela Emenda n° 9, a fim de estabelecer que o casamento não mais seria indissolúvel, sendo no mesmo ano editada a Lei do Divórcio no Brasil.

A partir de então foi possível vislumbrar-se outras formas de convivência plena, permeadas de afeto, fora dos padrões formais do casamento e que também fornecia ao indivíduo criado nesse contexto, toda base para formação sólida de seu caráter e de sua identidade. A união estável era um exemplo, de forma que era impossível, para quem a observasse distingui-la da família oriunda do matrimônio. Era a representação social perfeita de uma típica entidade familiar.

Não obstante a isso, o constituinte da época permaneceu tímido em elevar a nível constitucional outras modalidades de entidades familiares. Tal conquista só foi possível com o advento da Constituição de 1988, que expressamente conferiu união estável e à família monoparental tal status.

A atual Carta Magna, denominada "Constituição Cidadã", importou em total mudança de paradigma para os atos normativos infraconstitucionais, impondo novos referenciais axiológicos a serem observados. Ao processo de compatibilização dos vários ramos do direito com o Texto Constitucional, denomina-se constitucionalização. Como analisado em momento oportuno, o direito civil, tendo em vista a peculiar autonomia que adquiriu em seu curso, perecendo bastar-se a si mesmo, teve enorme dificuldade em flexibilizar princípios próprios que consagrara, como a autonomia da vontade, para ceder a outros inafastáveis, como a dignidade da pessoa humana, função social do contrato, igualdade material etc. Enfim, foi preciso fazer uma releitura deste ramo do direito a fim de compatibilizá-lo com o novo fundamento de validade, a saber: a Constituição Federal de 1988.

Embora o Código Civil de 2002 tenha sido precedido de um esforço enorme de seus elaboradores para fugir daquela ideologia estritamente patrimonialista consagrada no Código Civil de 1916, algumas normas escaparam a este intento. Entre elas, aquela objeto do presente trabalho, isto é, a que estabelece a imposição do regime da separação obrigatória para os maiores de sessenta anos, presente no art. 1.641, II do atual Código.

Como sustentamos, a manutenção desta norma se deve a justificativas de caráter eminentemente patrimoniais, longe de se caracterizar norma protetiva do idoso, configurando, assim, interferência estatal ilegítima na esfera privada da vida do indivíduo. Ao consagrar uma "presunção absoluta de incapacidade" sem qualquer critério científico para tanto, com base tão somente na senilidade, o legislador civilista de 2002 incorreu em grave inconstitucionalidade material, haja vista ter desprezado princípios constitucionais como a isonomia, liberdade individual e dignidade da pessoa humana.

A inobservância do princípio da igualdade se dá ainda de forma mais clara, vez que o indivíduo jovem ou até mesmo o idoso que optar pela via da união estável não encontrarão tal óbice legal. Além do mais, a Lei n° 10.741/03 que consagrou o Estatuto do Idoso, condena qualquer tipo de tratamento discriminatório dirigido ao idoso, que agrave sua situação unicamente em virtude da idade. Enquanto minoria, a população idosa reclama incentivos e apoio para que possa viver de forma mais digna essa fase da vida e , certamente, vedações como essa vão totalmente de encontro aos fins perseguidos pelo referido Estatuto.

Portanto, eventual interesse jurídico na preservação do patrimônio do idoso ou de seus herdeiros, não se apresenta como fator de desigualação legítimo a justificar o tratamento diverso dispensado à pessoa jovem ou ao idoso que escolha estabelecer a comunhão plena de vida pelo vínculo jurídico da união estável. Assim, quando o fator erigido como critério de discrímen (senilidade) é confrontado com princípios e valores consagrados na Constituição Federal, o mesmo não se sustenta, sendo desmantelado por postulados maiores como a isonomia, a liberdade individual e a dignidade da pessoa humana.

Urge, desta forma, que enquanto não seja intentada uma ação direta de inconstitucionalidade e que esta seja julgada procedente a fim de extirpar tal norma do ordenamento jurídico, que cada juiz ou tribunal se sensibilize, ante ao caso concreto, em afastar a incidência desta norma claramente injusta e inconstitucional que coloca em xeque a própria atividade legiferante de nosso Congresso, que demonstra-se, o que se corrobora pelo próprio Projeto de Lei n° 108/07, apático à flagrantes inconstitucionalidades materiais como essa que aqui se discutiu.


REFERÊNCIAS

AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 5 ed. São Paulo: Renovar, 2003, 659p.

ALEXY, Robert. Teoria de luz derechos fundamentales. Madrid: Centro de estúdios Políticos e Constitucionales, 2002, 607p.

AZAMBUJA, Darcy. Introdução à Ciência Política. 15 ed. São Paulo: Globo, 2003. 345p.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, 427p.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, 272p.

BRAUNER, Maria Claudia Crespo; LOBATO, Anderson Orestes Cavalcante. O novo Código Civil brasileiro frente à constitucionalização do Direito de Família. In: RTCD: Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, n° 27, p. 81-101, jul-set, 2006.

BOBBIO.Noberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.24.

BOBBIO, Noberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10.ed. Brasília: UnB, 1999, 184p.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, 809p.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Lei, n° 8. 971 de 29 de dezembro de 1994. Regula o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão. Disponível em: <http:www.planalto.gov.br>. Acesso em : 28 set. 2007.

BRASIL. Lei, n° 9.278, de 10 de maio de 1996. Regula o § 3 do art. 226 da Constituição Federal. Disponível em: <http:www.planalto.gov.br>. Acesso em : 28 ago. 2007.

BRASIL. Lei, n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http: www.planalto.gov.br>. Acesso em: 26 ago. 2007.

BRASIL. Lei, n° 10.741, de 1° de outubro de 2003. Institui o Estatuto do Idoso. Disponível em: <http: www.planalto.gov.br>. Acesso em: 24 ago. 2007.

CALAMANDREI, Piero. A crise da Justiça. Belo Horizonte: Líder, 2003, 125p.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. 1522 p.

CAPPELLETTI, Mauro. O controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. 2 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, 555p.

CASTILHO, Taís. Congresso Internacional de Co-Educação de Gerações. Disponível em: <http://www.sescsp.org.br> Acesso em: 11 de out. 2007.

CASTRO, Adriana Mendes Oliveira. A família, a sociedade e o direito. In: Pessoa, Gênero e Família. Uma visão integrada do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, 191p.

CEZAR-FERREIRA, Verônica A. da Motta. Família, Separação e mediação: uma visão psicojurídica. 2 ed. São Paulo: Método, 2007, 270p.

COLTRO, Antônio Carlos Mathias. A união estável: um conceito? In: Direito de família: aspectos constitucionais, civis e processuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 2, 2006.

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br>. Acesso em: 25 jul. 2007.

DIAS, Maria Berenice. A evolução da Família e seus direitos. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br> Acesso em: 14 de out. 2007.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

DIDIER JR, Fredie. Ações Constitucionais. 2 ed. Salvador: Podivm, 2007, 488p.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, 578p.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v.5, 682p.

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. 2 ed. São Paulo

Revista dos Tribunais, 2002, 288p.

FERNANDES, Flavio da Silva. As pessoas idosas na legislação brasileira: Direito e Gerontologia. São Paulo: Tr, 1997, 167p.

FERRARA, Francesco. Como aplicar e interpretar as leis. Belo Horizonte: Líder, 2003, 87p.

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do direito: Técnica, decisão, dominação. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2003, 370p.

FINGER. Julio César. Constituição e Direito Privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalização do direito civil. In: A Constituição Concretizada: construindo pontes entre o público e o privado. SARLET, Ingo Wolfgang (Org). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 85-106.

FRANCO, Paulo Alves. Estatuto do Idoso Anotado. 2 ed. Campinas: Servanda, 2005, 533p.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. O companheirismo: Uma espécie de família. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 630p.

GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, 813p.

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Arquivos de Direitos Humanos 3. São Paulo: Renovar, 2001.

GOMES, Orlando. O Novo Direito de Família. Porto Alegre: Fabris, 1984.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 6, 649p.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, 55p.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, 427p.

LOBO, Paulo Luiz Neto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numero clausus. In: Revista de Direito de Família. São Paulo: Síntese, n° 12, 2002.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. In: FIUZA, César. Direito Civil. Atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 197-217.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

LÔBO, Paulo Luiz Netto. O ensino do direito de família no Brasil. In: Repertório de Doutrina sobre Direito de Família: Aspectos constitucionais, civis e processuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, v. 4, 448p.

MARANHÃO, Associação dos Magistrados do Maranhão. O Casamento e a Igreja. Disponível em: <http://www.amma.com.br>. Acesso em: 12 de out. 2007

MARTINEZ, Waldimir Novaes. Comentários ao Estatuto do Idoso. 2 ed. São Paulo: LTr, 2005, 248p.

MELGARÉ, Plínio. A jus-Humanização das relações privadas: para além da constitucionalização do Direito Privado. RTCD: Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, n° 19, p. 65-90, jul/set. 2005, p.73.

MELLO, Celso Antonio Bandeira. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1999, 48p.

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, 483p.

MENEZES, Paulo Lucena de. A ação afirmativa (affirmative action) no direito norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, 173p.

MIRANDA, Jorge. Contributo para uma Teoria da Inconstitucionalidade. Coimbra: Coimbra, 1996, 301p.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Direito de Família. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, 410p.

NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003, v. I, 698p.

NUNES, Rizzato. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, 391p.

OLIVEIRA, Euclides Benedito. União Estável: do concubinato ao casamento. 6 ed. São Paulo: Método, 2003.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Aplicação do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade no direito civil. In: RTCD: Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, n° 25, p. 119-137, jan-mar. 2006.

PEDROTTI, Irineu Antonio. Concubinato e União Estável. 5 ed. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2002, 559p.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. 5, 585p.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, v. 5, p.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 06.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao direito civil constitucional. 2 ed. São Paulo: Renovar, 2002, 357p.

PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bossanezi.História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, 591p.

PIOVESAN, Flavia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998.

QUEIROZ, Clodoaldo de Oliveira. Os direitos fundamentais dos idosos. In: Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, n º 25, p. 89-122, jan – mar. 2006.

RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. A proteção constitucional da pessoa idosa. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos tribunais, n º 45, p. 156-174, out. – dez. 2003.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte: Jurídicos Lê, 1990, 124p.

RODRIGUES. Sílvio. Direito Civil. Direito de Família 28 ed. São Paulo: Saraiva, v. 6, 2004.

RUIZ, Gerardo Ruiz-Rico Ruiz. Los derechos de las minorias religiosas, linguisticas y etnicas en el ordenamento constitucional español. Revista de Estudios politicos. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, n° 91, p. 99-138, Enero-Marzo, 1996, p. 100.

SILVA, Eduardo. A dignidade da pessoa humana e a comunhão plena de vida: o direito de família entre a Constituição e o Código Civil. In: A reconstrução do Direito Privado: Reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, 861 p.

SILVA, Marcelo Amaral da. Digressões acerca do princípio constitucional da igualdade. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/4143>. Acesso em: 18 nov. 2007.

SOARES, Orlando. União Estável. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, 292p.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, 583p.

VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, 413p.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, 6 ed. São Paulo: Atlas, 2006, vol.6, 511p

WALD, Arnold. O novo direito de família. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, 756p.

WIKIPÉDIA. Desenvolvido pela Wikimedia Foundation. Apresenta conteúdo enciclopédico. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org>. Acesso em: 13 Set 2007

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Renata Pereira Carvalho Costa

Advogada. Mestranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Renata Pereira Carvalho. A (in)constitucionalidade material da imposição do regime da separação obrigatória de bens para os maiores de sessenta anos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2165, 5 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12908. Acesso em: 23 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos