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Guardadores clandestinos de veículos (flanelinhas).

O impacto deletério na sociedade e o fracasso de sua regulamentação legal

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07/07/2009 às 00:00
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4. PANORAMA ATUAL DA ATIVIDADE

Apesar de regulamentado, o mercado é informal. A grande maioria dos flanelinhas não tem registro na carteira de trabalho nem paga o INSS. Há guardadores que buscam na justiça o reconhecimento de vínculo de emprego com empresas vizinhas a sua área de atuação, mas sua pretensão, via de regra, é rejeitada [31].

As vias públicas são loteadas entre os próprios flanelinhas. Cada flanelinha se auto intitula "dono" de determinado local e passa a tratá-lo como propriedade privada [32], chegando até a alugá-lo ou vendê-lo para outras pessoas interessadas em exercer a atividade [33]. Essa demarcação de território muitas vezes se dá de forma violenta, até mesmo armada [34], podendo a disputa terminar em morte [35]. Essas disputas violentas entre guardadores muitas vezes não são de conhecimento público porque que na maioria dos casos não há notificação dos conflitos a autoridade policial já que o flanelinha naturalmente tem medo da polícia em virtude da ilicitude de sua ocupação. Trata-se de uma "cifra negra", termo usado para designar crimes e delitos que não chegam ao conhecimento da polícia.

Ainda há muitas crianças exercendo a atividade, mas estas atuam apenas em locais de menor movimento ou de menor rentabilidade. De fato, apenas são capazes de exercer o ofício em bons pontos aquelas pessoas aptas defender seu território das constantes ameaças de outros guardadores interessados no local. Assim o intimidação é extrínseca ao próprio exercício da atividade

Ainda que alguns poucos de fato vigiem os veículos, a maioria oferece apenas proteção contra si mesmo. A abordagem costuma vir acompanhada de uma ameaça implícita do tipo: "Essa rua é muito perigosa". Ou: "Se não pagar, não me responsabilizo". Ou ainda: "É melhor gastar agora do que ficar com o pneu furado" [36]. Aqui reside uma semelhança entre a os flanelinhas e as milícias. Tanto os guardadores quanto os milicianos exercem a cobrança através da intimidação. Em ambos os casos, o que se cobra na verdade é a proteção, não contra terceiros, mas contra si próprio.

Muitos guardadores não se contentam com a quantia que lhes dada pelos motoristas e exigem, de forma intimidadora, o pagamento de determinado valor. Tem crescido o número de prisões de guardadores por crimes como ameaça [37] e extorsão [38], embora muitas pessoas tenham receio de denunciá-los por temerem represálias.

Conforme já explicitado, parcela expressiva dos guardadores tem ou já teve algum envolvimento com outros tipos de criminalidade. De fato, não são raros os relatos envolvimento de flanelinhas com crimes com tráfico de drogas [39], furtos em veículos [40], dentre outros.

Também são comuns as notícias de atos absurdos praticados por guardadores, dos mais variados tipos [41]. A título de exemplo pode-se citar o fato de que muitos arrancam placas de "proibido estacionar" para ampliar seu ponto e ainda rasgam as multas antes que o motorista tome conhecimento [42].

O valor exigido do motorista varia de acordo com a localização e disponibilidade de vagas. As taxas mais altas, que podem chegar a valores exorbitantes [43], são cobradas em ocasiões como festas, shows e eventos esportivos, nas quais os flanelinhas normalmente obrigam a antecipação do pagamento. Há ainda clientes que pagam mensalidades aos flanelinhas, fato este verificado algumas universidades [44] e centros comerciais.

A renda mensal dos guardadores também é variável. De um lado estão os flanelinhas que são favelados ou moradores de rua e de outro estão muitos cuja situação financeira impressiona, chegando a ter carro, casa própria e filhos em escola particular. [45] O aumento dá lucratividade e a promessa de dinheiro fácil tem atraído muitas pessoas para "profissão", o que acirra ainda mais a violência na disputa pelas vagas.

A demonstração da reprovação pública a esta atividade pode ser observada nas colunas dos leitores nos jornais [46], em blogs [47] na internet e no site de relacionamentos "orkut", no qual existem várias comunidades que manifestam sua desaprovação aos flanelinhas, sendo que uma delas, denominada "eu odeio guardadores de carros", conta com mais de dez mil membros. Há casos em que o inconformismo da população atinge níveis preocupantes, já havendo inclusive casos de motoristas que reagem violentamente a sua abordagem. [48]

Algumas prefeituras tentam regular a situação de forma a capitalizar os resultados, através da implantação do sistema de estacionamento rotativo pago, conhecido como "área azul" ou "zona azul", cuja competência é conferida aos órgãos executivos de trânsito, nos termos da Lei Federal n° 9.503/97, artigo 24, inciso X. Entretanto, essa regulamentação se dá apenas nos pontos mais nobres destes municípios, ficando os demais locais entregues aos flanelinhas. Além disso, mesmo nas áreas onde o sistema é implantado, a regulamentação é ignorada pelos guardadores clandestinos, que continuam a atuar e constantemente entram em conflito com os agentes da prefeitura. O motorista pode se ver obrigado a pagar duas vezes pela mesma vaga [49].

A fiscalização da atividade praticamente inexiste na maior parte das cidades. O poder municipal declara-se incompetente para atuar por tratar-se de uma questão de segurança pública e a Polícia Militar afirma que só pode intervir quando alguma vítima registra boletim de ocorrência e aponta que legislação atual impede que a conduta seja reprimida de forma eficaz. Há relatos de que a conivência da Policia Militar e dos fiscais municipais é por vezes garantida por suborno [50].

Eventualmente ocorrem operações específicas para repressão da conduta, tais como a "operação flanelinha" [51] ou "choque de ordem" [52]. Porém, os guardadores detidos assinam termo circunstanciado, são soltos logo em seguida e voltam para seus pontos, o que gera profunda indignação na sociedade pela fraca atuação do poder público na sua repreensão.

São poucos os casos de efetivas condenações a guardadores irregulares de veículos no Brasil. Apesar de o assunto causar revolta na população e serem notórios os abusos por eles praticados, a escassa jurisprudência em relação ao tema torna clara a apatia do poder público em combater a tão intolerável conduta.


5. DESMISTIFICAÇÃO DA JUSTIFICATIVA USUAL

Há quem pretenda justificar a atividade dos flanelinhas na questão do desemprego. Seriam eles os frutos de uma sociedade desigual, as verdadeiras vítimas em um sistema capitalista opressor. Porém esse argumento ignora as peculiaridades da conduta frente às demais formas de ocupação informal.

Um "camelô" não coage seus clientes a adquirir os produtos falsificados que estão a venda, apenas compra a mercadoria aquele que quiser. Da mesma forma, o "perueiro" não intimida as pessoas para que entrem em sua lotação, ela é uma opção, um serviço somente utilizado por quem realmente deseja.

Já em relação ao flanelinha a situação é distinta: colocam os destinatários de seus serviços em uma incômoda situação de constrangimento, de forma que o motorista deve optar entre pagar ao guardador ou ter seu veículo ou até mesmo sua integridade física atingidos. Conforme já explicitado, quem remunera ao flanelinha não o faz por ato volitivo incólume mas sim tem sua vontade viciada pelo medo, pelo temor que um mal maior lhe sobrevenha.

Ainda que o "camelô", o "perueiro" e outros trabalhadores da economia informal igualmente venham a praticar atos contrários ao ordenamento jurídico, a diferença está na natureza do bem lesionado, pois suas atividades atingem a economia popular, enquanto a conduta dos guardadores clandestinos atenta contra a liberdade individual das pessoas, seu patrimônio, sua livre capacidade autodeterminação, contra a paz pública, o que denota a sua maior reprovabilidade.

Neste sentido, cabe relembrar as já citadas palavras do Juiz Daniel Ribeiro Lagos: "se for justificar essa atividade no desemprego, estaria justificado a pistolagem, o tráfico de entorpecentes, entre outros, com reflexos econômicos, o que é inadmissível".

Da mesma forma, a Juíza Liana Bardini Alves, da 2ª Vara Criminal da Comarca de Balneário Camboriú (SC), na sentença em que condenou um flanelinha por tentativa de extorsão contra uma moradora da cidade, afirmou:

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Não há dúvidas de que vivemos em um país de grandes desigualdades sociais e onde o emprego é escasso. Todavia, tal fato não implica em flanelinhas lotearem grande parte das vias públicas, exigindo preços altíssimos para que os veículos permaneçam incólumes. [53]

Assim sendo, não se pode admitir que a falta de ocupação seja usada como pretexto para práticas criminosas, como por exemplo, a coação de motoristas a pagarem pela utilização de um bem público. Não se pretende negar o fato de que muitos recorrem a "flanelagem" por falta de oportunidades no mercado de trabalho. Entretanto, o argumento de que a geração de empregos deve ser encarada como solução categórica para o problema é equivocado e demagógico.

Isto porque é sabido que muitos guardadores auferem uma renda significativa em sua atividade e que a conduta tem se mostrado cada vez mais lucrativa. Dessa forma, mesmo que tenham variadas alternativas no mercado regular, de maneira alguma os flanelinhas estarão dispostos a abrir mão de sua ocupação para receber o "salário de fome" com o qual são usualmente remunerados os trabalhadores desqualificados no mercado formal e ainda sofrer a incidência agressiva de impostos em seu ordenado. Trata-se de um exemplo da famosa "Lei de Gerson"(levar vantagem em tudo), no sentido de que o guardador optará pelo caminho que lhe garanta maior benefício próprio, sem se importar com questões éticas ou morais.


CONCLUSÃO

Verificou-se que ação dos guardadores clandestinos de veículos representa um problema para o país e que todos os métodos empregados até o momento não obtiveram êxito na busca por uma solução. Conforme foi evidenciado, a legislação pátria contempla uma regulação para a atividade através de uma lei federal, porém após mais de trinta anos de vigência, essa normatização está longe de alcançar o seu objetivo de conter o loteamento das ruas e os abusos costumeiramente praticados. Estes problemas apenas aumentaram desde sua edição.

Além de ignorada e de ser ineficaz na repressão dos delitos decorrentes da atividade, a referida regulamentação apresenta série de irregularidades, sendo patentemente contrária ao ordenamento jurídico como um todo, pois não pode uma lei legitimar a apropriação de um espaço público e a cobrança imposta por particular pela prestação de um serviço que legal e constitucionalmente é atribuído aos órgãos estatais.

Recentes manifestações do judiciário tem evidenciado que a conduta está muito mais afeta a área penal que outros ramos do direito como o trabalhista ou o administrativo. A ação dos guardadores irregulares por si só não representa crime algum, pois atualmente não há na legislação penal pátria um dispositivo específico para sua tipificação. Entretanto, a partir da análise de cada caso concreto pode-se enquadrar a conduta em alguns dos delitos previstos no ordenamento vigente, principalmente como crime de extorsão e como contravenção de exercício ilegal de profissão ou atividade.

Apesar disso, em razão da magnitude do problema e da necessidade indeclinável de certeza das leis, é imperioso que o legislador penal elabore uma tipificação mais específica, a fim de que esta atuação tão lesiva a sociedade seja coibida de forma eficaz pelas autoridades competentes e que a força policial venha a atuar com o rigor necessário em sua repressão.

Neste contexto, possui especial relevância o Projeto de Lei n° 4501/08, de autoria do Deputado Federal Antônio Carlos Biscaia (PT/RJ), atualmente em tramitação no Congresso Nacional, cuja pretensão é tornar crime a "cobrança de taxa pelo serviço de vigilância de carros em locais públicos". Esta proposta representa uma luz no fim do túnel para aqueles interessados em uma real solução para o problema. Trata-se de uma iniciativa louvável, uma esperança para cada motorista que diariamente recebe um duro golpe em sua dignidade.

Notadamente, trata-se de uma atividade que representa a impotência do poder público perante a marginalidade, sua ineficiência em manter a ordem e coibir práticas que atentam contra a paz social. Esta conduta gera no espírito do indivíduo insegurança quanto à proteção dispensada pelo Direito. O cidadão que cotidianamente vê seu patrimônio, liberdade individual e integridade física ameaçados pelos guardadores irregulares de veículos, muitas vezes tem a sensação de não ter a quem recorrer, de não ter meios legais para proteger-se de seu algoz. Isso lhe dá a impressão de se viver em uma terra sem lei, ou melhor, em uma terra de muitas leis, porém sem respeito a elas. Deve o Estado tutelar penalmente os importantes bens jurídicos atingidos pela ação dos flanelinhas, sob pena de um irremediável descrédito.

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Sobre o autor
Oneir Vitor Oliveira Guedes

Advogado inscrito na OAB/RJ, formado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUEDES, Oneir Vitor Oliveira. Guardadores clandestinos de veículos (flanelinhas).: O impacto deletério na sociedade e o fracasso de sua regulamentação legal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2197, 7 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13110. Acesso em: 26 abr. 2024.

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Primeira parte de uma série de três artigos.

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