1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA
A Lei n. 12.015/2009 decorre da triste constatação de que há grande prostituição no país envolvendo crianças e adolescentes, a qual altera o Título VI da Parte Especial do Código Penal, visando a empreender o rigor aos crimes relativos à exploração sexual.
A grande inflação legislativa nacional é preocupante. As leis são feitas açodadamente, o que tem sido objeto de críticas. O pior é que temos o hábito de tentar resolver o problema da criminalidade por meio da criação de leis mais rigorosas como se essa fosse uma solução efetiva para os graves problemas que enfrentamos.
Em 2003, foi instaurada Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), mediante requerimento da Deputada Federal Maria do Rosário (PT-RS), a qual foi designada relatora da CPMI, que teve como Presidente a Senadora Patrícia Saboya Gomes (PPS-CE), cujas atividades perduraram por um ano e, após a visita feita a 21 estados, foi elaborado relatório final, apresentado ao Congresso Nacional no dia 7.7.2004, às 17h30. [01]
O relatório resultou em um livro de 63 páginas [02] e a presidência da CPMI ofertou notoriedade em favor da parlamentar. Esta foi denominada "heroina do Ceará" pela Revista Isto É. [03] Sem dúvida, a Senadora Patrícia Saboya Gomes soube utilizar bem a CPMI para alcançar algum destaque na mídia. Seu trabalho resultou em vários indiciamentos, inclusive, o do atleta Zequinha Barbosa. [04] Em função de tal CPMI, foi elaborado o Projeto de Lei n. 253, de 13.9.2004.
Flávio Dino é um parlamentar que tem conhecimento jurídico razoável, tendo sido Juiz Federal. Ele foi atuante durante a implantação dos Juizados Especiais Federais e a Presidência da AJUFE (Associação dos Juizes Federais do Brasil) lhe deu notoriedade. Também, suas decisões (em processos judiciais) amparadas pela Lei n. 8.742, de 7.12.1993, e legislação previdenciária (em interpretação que leva ao Estado-Assistencialista) foram importantes para sua projeção pública. Isso deu a Flávio Dino notoriedade suficiente para ocupar o cargo eletivo de Deputado Federal. Em face desse histórico, ele tem atuado intensamente na produção legislativa, inclusive, criminal. Todavia, deve-se destacar, com base em seu currículo lattes, atualizado até dezembro de 2.005, que a matéria criminal não é sua área de especialização. [05]
O Projeto de Lei n. 253/2004, na Câmara dos Deputados, em face de projeto de lei substitutivo, ganhou o n. 4.850/2005, sendo que, ao final, foi proposta uma consolidação das emendas de vários Deputados Federais, sendo relator da mencionada consolidação o Deputado Federal Flávio Dino, de onde resultou o texto transformado na Lei n. 12.015, de 7.8.2009, publicada no Diário Oficial da União, Seção 1, de 10.8.2009. Esta merece críticas positivas e negativas.
2. SÍNTESE DA TUMULTUADA EVOLUÇÃO NORMATIVA SOBRE A MATÉRIA
Na fase em que o Brasil era colônia de Portugal, vigoraram leis portuguesas entre nós (as denominadas Ordenações do Reino), sendo que a declaração da independência levou à publicação do Código Criminal do Império, em 1.830. Depois sobreveio a Proclamação da República, surgindo uma nova lei criminal, agora denominada Código Penal. Porém, emergiram várias leis criminais esparsas que deram ensejo a uma consolidação, em 1.932. Esta cedeu lugar ao Código Penal de 1.940, o qual previa pena de 3 a 8 anos para o estupro e de 2 a 8 anos para o atentado violento ao pudor.
A conclusão de uma CPI presidida pela então Deputada Rita Camata gerou a Lei n. 8.069, de 13.7.1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Esta criou parágrafo único para cada um dos artigos que se referem aos crimes mencionados (arts. 213 e 214 do CP). Tal inovação legislativa aumentou o rigor a ser imposto aos condenados por referidos crimes, os quais passaram a estarem sujeitos às penas de 4 a 10 anos.
O ECA ainda estava em vacatio legis quando foi publicada a Lei n. 8.072, de 25.7.1990. [06] Esta não revogou os mencionados parágrafos únicos e estabeleceu penas de 6 a 10 anos para os caput’s do art. 213 e 214 do CP, o que criou grande embate doutrinário. Surgiu grande controvérsia, em face da incongruência gerada entre o caput e o parágrafo único de cada artigo. Daí o advento da Lei n. 9.281, de 4.6.1996, que revogou tais parágrafos.
Observe-se que a Lei n. 8.930, de 6.9.1994, alterou a Lei dos Crimes Hediondos e, mesmo existindo a discussão em torno da incoerência contida no Código Penal acerca dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor praticados contra pessoas menores de 14 anos, deixou-se de adotar qualquer medida para solução do problema, isso porque a nova lei também decorreu de clamor social momentâneo, em face de crimes de homicídio que tiveram grande repercussão na mídia. [07]
Prova de que leis criminais mais severas não resolvem o problema da criminalidade é o incremento dos crimes violentos a partir do ano de 1.990, quando foi editada a lei hedionda (Lei n. 8.072/1990). Nesse contexto, desde 8.8.2009 o Jornal Correio Brasiliense vem apresentando o aumento de risco pela fabricação de medicamentos falsificados, relatando a incidência de graves problemas no ano de 2.003 decorrentes da falsificação de medicamentos, [08] quando o aumento de rigor legislativo se deu no ano de 1.998 (a Lei n. 9.677, de 2.7.1998 alterou as penas e modificou os tipos dos crimes contra a saúde pública, mas pecou por ter a pretensão de transformar alguns em crimes hediondos sem o fazer, o que exigiu a Lei n. 9.695, de 20.8.1998, para corrigir o defeito legislativo).
Em palestra que proferi em seminário organizado pela Universidade Católica do Tocantins, em 10.10.2008, afirmei o seguinte:
...mexemos nos crimes contra os costumes (Lei n. 11.106, de 28.3.2005). Esta última lei andou mais rápido porque um ex-Prefeito da cidade de Goiás, o nosso conhecido município de Goiás Velho, estando condenado, em fase de recurso, ter pagado para que as vítimas de estupro com violência presumida se casassem e assim provocar a extinção da punibilidade. Corolário lógico foi a revogação dos incs. VII e VIII do art. 107 do Código Penal. [09]
A CPMI indiciou Boadyr Veloso, o ex-Prefeito mencionado no transcrito trecho da palestra, o qual foi morto a tiros no dia 28.5.2008. É certo que ele morreu em referida data e, pouco mais de um ano depois da sua morte, surgiu uma nova lei criminal baseada, dentre outros fatos, no mesmo que motivou a Lei n. 11.106/2005. Essa nova lei é a de n. 12.015/2008.
3. REDAÇÃO DO CP E BREVES COMENTÁRIOS AOS CAPÍTULOS I-IV DO TÍTULO VI
3.1 MODIFICAÇÃO DO TÍTULO
O Título VI versava sobre os costumes, mas a lei preferiu não mais falar em "crimes contras os costumes", passando a dispor: "TÍTULO VI: DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL".
O conceito de dignidade é amplo, não afastando valores decorrentes dos costumes. Ademais, a lei será apenas um indício da ocorrência de crime, tendo em vista que a ela deve ser acrescentado um elemento normativo, [10] que é a adequação social. Destarte, não se pode olvidar dos costumes.
É necessário entender que aquilo que é socialmente adequado merece análise séria e, às vezes, poderá excluir a tipicidade criminal dos fatos, uma vez que esta, para corrente doutrinária sólida, se caracteriza pela soma da tipicidade legal à tipicidade conglobante. [11] Ainda que não tratemos da mencionada corrente doutrinária, mister é reconhecer que as novas perspectivas criminais levam ao tipo de injusto total, à teoria social e ao funcionalismo, todas com forte valorização da adequação social. [12] Nesse sentido, Paulo Queiroz sustenta que, a partir de 1.970, surgiu "um novo sistema chamado funcional ou teleológico, que parece assumir aos poucos o status de dominante". [13]
3.2 CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL
3.2.1 Estupro
O novo art. 213 do CP uniu os arts. 213, 214 e 225, constantes da redação original do Código Penal, passando a dispor:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos..
§ 2º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
O tipo permite classificar o estupro como crime comum porque pode ser praticado por qualquer pessoa. É delito unissubjetivo porque não exige o concurso de pessoas. É, também, comissivo, visto que exige ação do sujeito ativo, nada impedindo que o crime seja perpetrado mediante conduta omissiva do garante, quando será comissiva por omissão.
O estupro é crime material, haja vista que exige a ofensa ao objeto jurídico para se consumar, por isso, também denominado delito de dano. Pretender dizer que o crime de estupro será formal, ou seja, de consumação precipitada (antecipada), bastando a realização de conduta potencialmente capaz de ofender a liberdade sexual para que ocorra consumação, será equivocado, visto que o dissenso deverá ser demonstrado. A conduta de perigo poderá até caracterizar a contravenção de importunação ofensiva ao pudor (LCP, art. 61), mas não será suficiente verificar para o estupro.
O estupro é crime instantâneo porque se consuma no momento em que o agente reúne em sua conduta todos elementos do tipo. Manter a vítima sob o poder do agente por tempo significativo a ponto de caracterizar sequestro para fins libidinosos, permitirá a aplicação das penas dos dois crimes sob a regra do art. 69 do CP. No entanto, manter a vítima em seu poder, apenas pelo tempo necessário à pratica do ato libidinoso (poucos minutos ou até algumas horas) possibilitará a pena apenas por um crime, tão-somente pelo estupro.
Só haverá estupro doloso, visto o CP não prevê a modalidade negligente. [14] Com efeito, conforme prevê o art. 18, parágrafo único, do CP, a negligência só será punível se estiver expressamente prevista em lei. Desse modo, ao ser omissa quanto a esse aspecto, a lei estará enunciando a adoção da regra geral pela qual o crime será doloso.
O estupro exige o dolo específico [15] violação da liberdade sexual, visto que se o dolo for a simples violação da liberdade para que a pessoa pratique ou deixe com ela praticar outra conduta, haverá constrangimento ilegal (CP, art. 146). Caso a liberdade afetada seja a de ir e vir, será sequestro ou cárcere privado (art. 148) e se for para obtenção de trabalho com redução da vítima à condição análoga à de escravo, aplicar-se-á o crime do art. 149. Finalmente, se a liberdade for atingida para alcançar vantagem patrimonial, haverá extorsão mediante sequestro (art. 159).
A conduta típica é praticar mediante violência, grave ameaça ou fraude, conjunção carnal (ato sexual entre homem e mulher que leve à cópula vaginal) ou qualquer outro ato libidinoso. Destarte, a vítima poderá ser homem ou mulher, tendo ocorrido o deslocamento do tipo do art. 214 de outrora para o art. 213 do CP, daí a revogação expressa daquele.
Havia discussão doutrinária sobre a possibilidade de a mulher ser autora do crime de estupro, visto que a conjunção carnal exige a presença de homem e mulher e o tipo do art. 213 exigia que a vítima fosse mulher. Mesmo, em relação ao crime perpetrado mediante conjunção carnal contra mulher, nada obsta que outra mulher seja autora do estupro mediante concurso de pessoas.
O estupro qualificado classifica-se, ao meu sentir, dentre os crimes qualificados pelo resultado, mas a doutrina, orientada por Nelson Hungria, tem entendido que se trata de crime preterdoloso. [16] Essa posição levava às conclusões mais absurdas no caso de vítima que não tinha condições de ser vítima de estupro, visto que não estaria apta à conjunção carnal e havendo resultado morte preterdoloso, dever-se-ia, então entender apenas como crime de homicídio negligente, já que o estupro seria crime impossível. Dizer que o agente teria praticado ato libidinoso diverso da conjunção carnal e, portanto, deveria ser punido pelos crimes do art. 214 c/c com 223, inc. II, não era razoável porque o dolo era para o estupro e não atentado violento ao pudor.
Ante o novo texto legal, em que a pena do estupro com resultado morte foi equiparada à do homicídio qualificado, entendo que não mais existe razão para entender que o crime do art. 213, § 2º, do CP é preterdoloso. Aliás, um dos fundamentos para a interpretação anterior é que o estupro com resultado morte, na redação original do CP, tinha pena de 8 a 20 anos [17]. Assim, havendo dolo para matar a vítima do estupro, haverá crime complexo, merecendo a mesma interpretação do art. 157, § 3º, in fine, do CP (latrocínio).
O estupro qualificado pelo resultado em que o agente tenha dolo para a morte da vítima e ela resulte viva, caberá a tentativa, sendo que o crime-meio (estupro) se equivalerá à tortura, devendo a gravidade da conduta ser considerada na aplicação da pena, assim como no art. 121, § 2º, inc. III. Caso a doutrina e a jurisprudência continuem, equivocadamente, tratando o estupro qualificado como crime preterdoloso, a tentativa será impossível, uma vez que o resultado mais grave será negligente.
Caso o resultado mais grave advenha sem dolo ou negligência do agente, não se poderá vislumbrar a qualificadora, visto que o resultado que aumentará a pena deverá decorrer, no mínimo, de negligência (CP, art. 19).
O § 1º tem erro de redação que precisa ser corrigido. Ele informa que a qualificará o crime "Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos". A parte final do parágrafo deve ser lida como "...menor de 18 anos e maior de 14 anos", isso porque o estupro de vulnerável na forma simples (art. 217-A, caput) é mais grave que a forma qualificada do art. 213, § 1º.
As qualificadoras relativas aos crimes praticados contra maiores de 18 anos só se justificarão se presentes os resultados dos §§ 1º e 2º do art. 213. Obviamente, o inconstitucional art. 9º da Lei n. 8.072/1990 não se aplica ao crime de estupro, haja vista que entendimento contrário levará ao bis in idem, uma vez que o art. 224 do CP foi dissolvido nos arts. 213 e 217-A, gerando pena mais grave no caso de vítima menor de 14 anos.
Os diferentes tipos de estupro são crimes hediondos, isso porque o rol do art. 1º da Lei n. 8.072/1990 faz referência aos crimes do Código Penal e legislação especial, mencionando aqueles considerados hediondos. O art. 4º da nova lei considera hediondos os crimes dos arts. 213 e 217-A perpetrados na forma simples e qualificada.
A jurisprudência entende que nas hipóteses em que a aplicação do art. 9º da Lei n. 8.072/1990 gerar pena única, serão inconstitucionais. Esse é o caso dos arts. 157, § 3º, in fine (latrocínio), art. 158, § 2º (extorsão com resultado morte) e art. 157, § 3º do CP (extorsão mediante sequestro com resultado morte), cuja pena mínima somada de metade, conforme previsão do art. 9º da Lei n. 8.072/1990, totalizará o máximo permitido pelo mesmo artigo (30 anos).
A inconstitucionalidade do artigo, além das razões que expus alhures, [18] relativas à individualização da pena, envolve a racionalidade (razoabilidade ou proporcionalidade), visto que o genocídio (crime que ofende mais profundamente os valores fundamentais) não está sujeito ao rigor do art. 9º da Lei n. 8.072/1990. Este não teve sua redação alterada pela nova lei.
Como o art. 224 do CP foi expressamente revogado, a impossibilidade de defesa da vítima, no caso de surpresa, caracterizará o tipo do art. 215. De outro modo, o menor de 14 anos e a vítima doente mental são classificados como vulneráveis, com pena maior em razão da vulnerabilidade, o que impede a incidência do art. 9º da Lei n. 8.072/1990. Destarte, com a incidência da nova lei, referido artigo foi esvaziado ocorrendo, ainda que tardiamente, revogação tácita da sua parte outrora aplicável.
3.2.2 Violação sexual mediante fraude
Com o deslocamento do tipo do atentado violento ao pudor para o art. 213, transformando a conduta em estupro, não houve abolitio criminis. Entretanto, o art. 214 se transformou em inútil, razão da sua revogação expressa. Desse modo, passa-se imediatamente para o art. 215, o qual, por sua vez, absorveu o atentado ao pudor mediante fraude, in verbis:
Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.
Observe-se que o art. 215 absorveu a conduta do art. 216, revogado expressamente pela Lei n. 12.015/2009. Antes era crime de vítima qualificada, exigindo que fosse mulher e honesta. Com o advento da Lei n. 11.106/2005, o sujeito passivo passou a ser unicamente a mulher, não se exigindo a qualidade de ser honesta.
É crime comum de tipo de núcleo composto alternativo, assim como o art. 213 do CP. Composto porque há mais de um núcleo no tipo, mas basta a realização de qualquer deles para que o crime se realize e o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. É, também, delito unissubjetivo, ou seja, pode ser praticado por uma única pessoa.
O crime exige a violação ao objeto jurídico para sua consumação, o que o transforma em material (de dano). Outrossim, é doloso, inexistindo a modalidade negligente.
Há remessa do intérprete à analogia intra lege (dentro da lei), a qual, ao contrário de ampliar significativamente a conduta típica, a limita aos meios equiparados à fraude. A surpresa se equivale à fraude, reduzindo a capacidade de resistência, razão de ser imperiosa a mudança de postura. Com efeito, a impossibilidade de resistência da vítima era causa de presunção de violência (CP, art. 224, alínea "c"). A revogação do art. 224 e a alteração do tipo do art. 215 desautoriza interpretar a surpresa como causa de violência presumida, devendo adequar à especialidade e esta recomenda fazer a interpretação analógica prevista no art. 215 do CP.
No caso de atentado violento ao pudor decorrente de toque em parte pudenda da vítima, mediante surpresa, a pena era a mesma do estupro, o que era desproporcional, violando a regra da proibição de excesso (racionalidade ou razoabilidade).
Entender que a surpresa levará ao crime do art. 215 evitará a manutenção daquela velha cultura de que é possível aplicar a lei friamente, independentemente da sua incoerência e irracionalidade. Destarte, toda perfídia ou outro meio que impossibilite a defesa da vítima que puder ser equiparado à fraude, deve levar ao art. 215 do CP não ao 213.
3.2.3 Assédio sexual
O assédio sexual foi instituido no Código Penal pela Lei n. 10.224, de 15.5.2001, dispondo:
Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.
Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
Parágrafo único.
§ 2º A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos.
É um constrangimento ilegal especial, visto que o crime do art. 246 é comum e seu dolo é genérico, enquanto o assédio sexual é crime próprio (o sujeito ativo deve ser superior hierárquico ou ter ascendência em emprego, cargo ou função) e exige o dolo específico "intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual".
É crime formal, visto que o núcleo do tipo é "constranger", não exigindo a vantagem ou favorecimento sexual para consumação. Com isso, o simples constranger com a finalidade de obter vantagem ou favorecimento sexual é suficiente para consumar o delito.
A Lei n. 12.015/2009 acresceu o § 2º ao art. 216-A, que é uma causa de aumento de pena em razão da idade da vítima. A lei menciona o menor de 18 anos, mas deve-se entender que o crime deverá ser entendido existente somente no caso de vítima maior de 14 anos. Sendo a vítima empregada menor de 14 anos, como ocorre no mundo artístico em que crianças trabalham, ela será vulnerável, afastando a incidência do art. 216-A, devendo ser considerado crime contra vulnerável tentado ou consumado conforme o caso.
Devo esclarecer que concordo com Cezar Roberto Bitencourt, no sentido que o assédio sexual de professor a(o) aluno(a) não constituirá conduta atípica, sendo que "pensar diferente, seria dar interpretação extensiva à norma penal incriminadora, inadmissível na seara penal". [19]
3.3 CRIMES SEXUAIS CONTRA VULNERÁVEL
3.3.1 Título
A lei considera vulnerável a pessoa menor de 14 anos, enferma ou por qualquer situação análoga não possa oferecer resistência. O problema é que eleva a pena quando há forte corrente doutrinária e jurisprudencial que vem considerando inadmissível estabelecer um critério puramente biológico para a presunção de inocência. De qualquer modo, é mister uma análise razoável do preceito que simplesmente eleva a pena, sem observar os avanços sociais que permeiam o assunto.
3.3.2 Estupro de vulnerável
O estupro mediante violência presumida ganhou novo nomen iuris, ou seja,"estupro de vulnerável". É o crime perpetrado contra vítima que não possa oferecer resistência, em face do estado físico ou mental da vítima. Em decorrência da idade tenra, a presunção da insuficiência de discernimento ou inaptidão física é absoluta, cujo critério é puramente biológico. Assim, a pessoa menor de 14 anos de idade é presumidamente incapaz de dispor da liberdade sexual. Nesse sentido, dispõe o CP:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2º Vetado,
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
O tipo remete a "qualquer outra causa" que impeça à vítima a resistência. Esta causa, decorrente da analogia dentro da lei, deve ser concebida como aquela análoga à "enfermidade ou doença mental" que retire o discernimento da vítima para o ato libidinoso.
A fraude, a surpresa ou qualquer outro meio que não retire a capacidade de discernimento da vítima, via de regra, remeterá o interprete à análise do crime do art. 215 do CP. Todavia, caso a fraude venha a causar embriaguez ou qualquer outro meio de debilidade física ou mental que retire da vítima a capacidade de defesa haverá estupro de vulnerável, uma vez que será suficiente para verificar a tipicidade do art. 217-A do CP.
É crime comissivo, material, instantâneo, doloso, cujas modalidades qualificadas não se classificam como preterdolosas, mas como qualificadas pelo resultado (vide meus comentários ao art. 213). É crime comum, mas de vítima qualificada (enferma, incapaz etc.). A redução da vítima a tal qualidade por meio da embriaguez, ou qualquer outro meio, a tornará vulnerável, podendo caracterizar o delito.
O crime de estupro contra vulnerável é hediondo porque o art. 4º da nova lei alterou o art. 1º da Lei n. 8.072/1990, inserindo o estudo de vulnerável no inc. VI. Porém o art. 9º da lei hedionda não foi alterado. Consequentemente, não se aplica ao estupro contra vulnerável o art. 9º da Lei n. 8.072/1990.
A Mensagem n. 640, de 7.8.2009, informa as razões do veto ao § 2º do art. 217-A, in verbis:
§ 2º do art. 217-A e incisos I e II do art. 234-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, acrescidos pelo art. 3º do projeto de lei
§ 2 A pena é aumentada da metade se há concurso de quem tenha o dever de cuidado, proteção ou vigilância.
I - da quarta parte se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas;
II - de metade, se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, tio, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador da vítima ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
Razões dos vetos
As hipóteses de aumento de pena previstas nos dispositivos que se busca acrescer ao diploma penal já figuram nas disposições gerais do Título VI. Dessa forma, o acréscimo dos novos dispositivos pouco contribuirá para a regulamentação da matéria e dará ensejo ao surgimento de controvérsias em torno da aplicabilidade do texto atualmente em vigor.
Incluiram-se no mesmo tópico as razões do veto ao § 2º do art. 217-A e incs. I e II do art. 234-A, inserido no CP por força da nova lei. Com isso, fica evidente a vontade do legislador de que as causas de aumento só incidam aos crimes dos Cap. I e II, conforme previsto no art. 226. Aos crimes dos Cap. V e VI, as causas de aumento serão específicas de cada artigo, salvo no caso que resultar gravidez da vítima, cujo aumento é aplicável a todos delitos.
O art. 226 é aplicável somente aos crimes dos Cap. I-IV do Tit. VI do CP. Essa é a vontade legislativa, tanto é que foi instituido o art. 232, a fim de declarar a incidência do art. 224 aos demais crimes do Tit. VI. Agora, como houve o deslocamento de alguns tipos, o art. 232 foi expressamente revogado. Todavia, ad fortiori, os arts. 225 e 226 devem ficar adstridos exclusivamente aos Cap. I e II do Título VI da Parte Especial do CP.
O que se constata é que a lei pretende inverter a evolução social, sendo que o STJ, recentemente, emitiu seu informativo n. 400, de 22 a 26.6.2009, do qual se extrai:
ESTUPRO. VIOLÊNCIA PRESUMIDA.
O ora paciente foi condenado, em primeiro grau, à pena de 8 anos e 7 meses de reclusão pela prática de estupro contra menor de 14 anos de idade. O TJ deu provimento à apelação da defesa, reduzindo a pena a 6 anos e 9 meses de reclusão a ser cumprida integralmente no regime fechado, considerado o caráter de hediondez desse delito, ainda que na forma de violência presumida. No HC, alega-se não existirem elementos de convicção para condenação do paciente e ainda se sustenta, subsidiariamente, falta de fundamentação à exasperação da pena acima do mínimo legal; assim, pede-se sua absolvição. Para o Min. Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), um aspecto que merece destaque prende-se a que, para boa interpretação da lei, é necessário levar em consideração todo o arcabouço normativo, todo o ordenamento jurídico do País. A interpretação da lei não prescinde do conhecimento de todos os ramos do Direito. Mas uma visão abrangente desse arcabouço facilita, e muito, o entendimento, bem como sua interpretação. Em tal linha de raciocínio, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) precisa ser analisado para enfrentar essa questão, qual seja, a de se saber se o estupro e o atentado violento ao pudor por violência presumida se qualificam como crimes e, mais, como crimes hediondos. Conforme o art. 2º daquele Estatuto, o menor é considerado adolescente dos 12 aos 18 anos de idade, podendo até sofrer medidas socioeducativas. Assim, se o menor, a partir de 12 anos, pode sofrer tais medidas por ser considerado pelo legislador capaz de discernir a ilicitude de um ato infracional, tido como delituoso, não se concebe, nos dias atuais, quando os meios de comunicação em massa adentram todos os locais, em especial os lares, com matérias alusivas ao sexo, que o menor de 12 a 14 anos não tenha capacidade de consentir validamente um ato sexual. Desse modo, nesse caso, o CP, ao presumir a violência por não dispor a vítima menor de 14 anos de vontade válida, está equiparando-a a uma pessoa portadora de alienação mental, o que não é razoável, isso em pleno século XXI. Efetivamente, não se pode admitir, no ordenamento jurídico, uma contradição tão manifesta, qual seja, a de punir o adolescente de 12 anos de idade por ato infracional, e aí válida sua vontade, e considerá-lo incapaz tal como um alienado mental, quando pratique ato libidinoso ou conjunção carnal. Ademais, não se entende hediondas essas modalidades de crime em que milita contra o sujeito ativo presunção de violência. Isso porque a Lei de Crimes Hediondos não contempla tais modalidades, ali se encontra, como crimes sexuais hediondos, tão-só o estupro e o atentado violento ao pudor, nas formas qualificadas. A presunção de violência está prevista apenas no art. 224, a, do CP, e a ela a referida lei não faz a mínima referência. E, sem previsão legal, obviamente não existe fato típico, proibida a analogia contra o réu. Com esses argumentos, entre outros, a Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, concedeu a ordem para desconstituir a decisão que condenou o paciente como incurso nas penas do art. 213 do CP, absolvendo-o sob o fundamento de que os fatos a ele imputados não configuram, na espécie, crime de estupro com violência presumida. O Min. Og Fernandes, o relator originário, ficou vencido em parte por entender, de acordo com julgado da Terceira Seção do STJ, o reconhecimento da violência presumida no caso, presunção essa tida por absoluta, só concedendo a ordem para efeito de progressão de regime.
HC 88.664-GO , Rel. originário Min. Og Fernandes, Rel. para o acórdão Min. Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), julgado em 23/6/2009. [20]
O TJSP está repleto de precedentes em que a prostituta infantil é considerada inapta para ser vítima do crime de estupro com violência presumida (em razão da idade), visto que não tem liberdade sexual a tutelar. Outrossim, o argumento do decisum noticiado é sólido. É estranho dizer que adolescente, a partir de 12 anos é capaz de praticar ato infracional, ou seja, detém vontade válida para cometer ilícitos jurídicos e, ao mesmo tempo, estabelecer que adolescente menor de 14 anos é incapaz de ter vontade válida para praticar atos sexuais.
Imagine-se que um adolescente, mediante violência, constranja criança de 10 anos a ato libidinoso diverso de conjunção carnal (coito anal). Ninguém duvidará que o agente terá incorrido em ato infracional porque sua vontade é válida. Todavia, caso o mesmo adolescente, logo após os fatos, durante a internação provisória decorrente do ato infracional, admita que com ele se pratique coito anal, será vítima de crime com violência presumida porque sua vontade será inválida.
Menor de 18 anos pode dispor de sua vontade sexual. A adolescente pode casar, mas a violência sexual praticada contra ela qualifica o crime em razão da idade da vítima (CP, art. 213, § 1º). Quanto a isso até pode ser razoável porque a violência sexual pode deixar seqüelas psíquicas sérias, as quais serão potencialmente mais graves se a vítima não tiver maturidade para enfrentá-las.
Ocorre que, ao lado do Código Penal, o qual vem andando na contra-mão da evolução dos costumes sexuais dos brasileiros, há a péssima Lei n. 11.829, de 25.11.2008 (pedofilia). As pesquisas variam, mas é certo que a maioria das brasileiras deixa de ser virgem com menos de 18 anos de idade. Então, na maioria dos casos, não será crime o ato livre da adolescente, mas se o rapaz mantiver arquivada em seu computador fotografia da parceira nua, haverá grave crime de pedofilia.
3.3.3 Induzimento à satisfação da lascívia de outrem
Houve deslocamento do tipo da redação originária do art. 227, § 1º do CP, transferindo-o para o art. 218, o qual passou a dispor:
Art. 218. Induzir alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.
Parágrafo único. Vetado.
O tipo não se confunde com o induzimento à prostituição. Ele esvazia a participação na pedofilia, que tem pena mais elevada (Lei n. 11.829/2008). O novo art. 218 corresponde ao art. 227, § 1º, do CP, levando à revogação tácita deste.
O interessante é notar que a instigação de prostituta menor de 14 anos tem pena maior que o induzimento ao sexo de pessoa da mesma idade. Sobre o rigor à pedofilia, escrevi alhures:
Tenho proferido palestras e os meus livros e artigos retratam os problemas decorrentes do exagero de causuísmos, freqüentes em matéria criminal. Eles levam aos imbróglios quase insuperáveis, enfrentados por aqueles que buscam criar mecanismos para aplicação do direito. Com efeito, as modificações pontuais da legislação criminal dão ensejo às incoerências que geram, por elas mesmas, reação à aplicação da lei. [21]
Violou-se a teoria do crime ao estabelecer o tipo do art. 218 do CP, até porque foi esquecida a possibilidade de casamento da menor de 14 anos que esteja grávida (Código Civil, art. 1.520).
Sobre a Lei n. 11.829/2008, afirmei:
O dever de manter vida em comum, imposto aos casados, envolve a atividade sexual. Assim, para o adolescente casado, a atividade sexual é mais que um ato juridicamente possível. Ele é um ato jurídico obrigatório. Não obstante isso, a Lei n. 11.829/2008 alterou a ECA (ou melhor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, mais "eca", em função de novas alterações), Lei n. 8.069, de 13.7.1990, dispõe:
"Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage, ou de qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena.
§ 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o agente comete o crime:
I – no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la;
II – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou
III – prevalecendo-se de relações de parentesco consangüíneo ou afim até o terceiro grau, ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou de quem, a qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela, ou com seu consentimento." (NR)
Um marido de uma adolescente, tendo ele 18 anos, será imputável. Ele poderá praticar qualquer tipo de coito como ela, mas se fotografar a pena se assemelhará à do estupro. Também, nenhum estudo de política criminal poderá justificar a pena máxima cominada para uma simples fotografia do nu infantil, fixada em oito anos, quando o coito com a vítima, mediante violência presumida, teria pena máxima de dez anos. [22]
Induzir ao sexo se transformou em conduta menos grave que filmar o ato sexual, ainda que a vítima da filmagem seja maior de 14 anos. Assim, há evidente contra-senso ao tratar a conduta de perigo de forma mais grave que a de dano.
Observe-se que o crime do art. 218 admite tentativa, visto que a consumação, para a posição doutrinária que se pacificou (embora eu a entenda equivocada), dependerá da ocorrência do ato sexual, não bastando induzir (criar o animus) à satisfação da lascívia para que o delito se complete.
O núcleo do tipo é induzir, ocorrendo a precipitação (antecipação) do momento consumativo. Porém, prevalece posição em sentido contrário, manifestada por Nelson Hungria:
O crime consuma-se desde que a vítima efetivamente se preste ou seja submetida à lascívia do tertius. Não basta o emprego de meios para induzir, coagir ou fraudar a vítima a vítima: se, por um motivo qualquer, independente da vontade do agente, não vem a realizar-se a satisfação da lascívia alheia, o que pode ocorrer é a simples tentativa. [23]
Trata-se de crime material (entendo que é formal), comissivo, unissubjetivo e instantâneo. Embora comum, exige vítima qualificada. Com efeito, o crime do art. 218 deverá ser perpetrado contra menor de 14 anos, sendo mais brando que o decorrente da Lei n. 11.829/2008. Por inexistir coerência, violando a proibição de excesso, a nova lei merece análise série e aplicação comedida.
Sobre o parágrafo único vetado, é oportuno transcrever o que consta da Mensagem n. 640, de 7.8.2009:
Parágrafo único do art. 218 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, alterado pelo art. 2º do projeto de lei
Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.
Razão do veto
A conduta de induzir menor de catorze anos a satisfazer a lascívia de outrem, com o fim de obter vantagem econômica já está abrangida pelo tipo penal previsto no art. 218-B, § 1º, acrescido ao Código Penal pelo projeto de lei em comento.
A falta de especialização do legislador levou a prever duas penas, repetindo o tipo com sanções diversas no projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional. Não se pode confundir o proxeneta, que não tem fim de lucro, com o rufião. Destarte o parágrafo único do art. 218 cedeu lugar ao art. 218-B, § 1º do CP, embora os dois dispositivos constassem do mesmo projeto de lei.
3.3.4 Outros crimes
A nova lei passou a prever novos tipos e deslocou alguns de outrora, passando a dispor:
Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente
Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.
O art. 218-A surgiu para dar resposta a uma velha crítica doutrinária, visto que a corrupção de menor de 14 anos pelo ato de levá-lo a assistir ato libidinoso não era crime, eis que havia lacuna no art. 218 do CP. Agora, em face do referido artigo, a conduta constitui crime formal, comissivo, instantâneo, comum e doloso. Caso o menor pratique ato libidinoso com o agente, haverá estupro contra vulnerável (art. 217-A).
Os crimes de mediação para servir à lascívia de outrem e de favorecimento à prostituição contra menor de 18 anos não mais caracterizará a forma qualificada do § 1º do art. 227 do CP.
O favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável está previsto no art. 218-B, in verbis:
Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.
§ 1º Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.
§ 2º Incorre nas mesmas penas:
I - quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste artigo;
II - o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas referidas no caput deste artigo.
§ 3º Na hipótese do inciso II do § 2º, constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.
É crime que se consuma no momento em que a vítima é exposta à prostituição, ainda que não tenha praticado qualquer ato libidinoso. Outrossim, admite a tentativa porque a vítima pode não aceitar o convite, desistir do convite aceito etc.
Quem concorre para o crime, favorecendo-se da prostituição de pessoa maior de 14 e menor de 18 anos, bem como o responsável pelo local em que ocorrer o crime do art. 218-B respondem pelo referido crime, em face do concurso de pessoas e, para que não haja dúvida, há previsão expressa no § 2º.
3.4 DISPOSIÇÕES COMUNS AOS CAPÍTULOS I E II DO TÍTULO VI
3.4.1 Iniciativa da ação
A ação, enquanto direito autônomo e abstrato ao exercício da jurisdição ou poder de invocar a tutela jurisdicional, será iniciada pelo Estado, o qual se valerá de um representante, Membro do Ministério Público. Todavia, a iniciativa poderá ser transferida ao ofendido ou ao seu representante legal.
Toda ação que é exercida perante o Estado-Juiz é pública, visto que a jurisdição (poder, função e atividade de dizer o direito aplicável ao caso concreto) é do Poder Judiciário, órgão do Estado. Porém, a propositura da ação poderá ser deferida aos particulares, o que transformará a iniciativa em privada.
A classificação subjetiva da ação permite alcançar a legitimidade ativa (quem pode promover a ação), sendo que podemos classificar a ação em: de iniciativa pública e de iniciativa privada. A iniciativa pública admite as subespécies incondicionada, condicionada à requisição ou representação, subsidiária da privada e subsidiária da pública. De outro modo, a iniciativa privada se divide em exclusiva (genérica ou personalíssima) e subsidiária da pública.
Com o advento da Lei n. 12.015/2009, o CP passou a dispor:
Ação penal
Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação.
Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.
A regra geral é que os crimes sejam de iniciativa pública incondicionada, mas o CP condicionou a iniciativa dos crimes do Cap. I à representação. Esta é uma condição de procedibilidade (condição para que se proceda), uma manifestação de vontade que deve atender às formalidades mínimas do art. 39 do Código de Processo Penal. Todavia, no tocante ao crime contra vulnerável ou menor de 18 anos, a iniciativa será pública incondicionada.
Como a representação é condição de procedibilidade, uma vez oferecida a denúncia não será possível a retratação, prosseguindo a ação independentemente de manifestação da vontade da vítima. Essa é uma posição que merece profundas críticas porque a cessação da hipossuficiência da vítima deve obrigar o retorno a ela da iniciativa da ação, mas há forte discurso em prol do rigor e da intervenção inoportuna do Estado, afetando, inclusive, a dignidade da vítima.
3.4.2 Causas de aumento da pena
A redação do art. 226 do CP decorre da alteração inserida pela Lei n. 11.106/2005, a qual inseriu o aumento de metade. Dispõe o CP:
Aumento de pena
Art. 226. A pena é aumentada:
I - de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas;
II - de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela;
Devo dizer que a causa de aumento incide na terceira fase da dosimetria da pena (CP, art. 68, caput), enquanto a qualificadora, por criar novos limites (mínimo e máximo), estará presente no primeiro momento da dosimetria da pena, ou seja, na fase de fixação da pena base. Tal perspectiva é fundamental, visto que gera efeitos práticos.
O crime do art. 217-A na forma simples terá pena base de 8 a 15 anos, enquanto a forma qualificada do § 3º terá pena de 10 a 20 anos. Fixadas as penas bases dos crimes e analisadas as circunstâncias legais (agravantes e atenuantes genéricas), na terceira fase, sobre a pena de cada um deles poderá incidir a causa de aumento de pena decorrente do concurso de pessoas, isso na terceira fase.