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Os contornos do direito de liberdade de expressão sob a ótica da teoria jurídica liberal de Dworkin

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23/08/2009 às 00:00
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RESUMO

Este trabalho busca estabelecer os contornos do direito de liberdade de expressão em uma sociedade democrática. Para tanto, utilizará a perspectiva liberal de Dworkin acerca dos direitos individuais para propor um modelo ideal a ser assegurado. Desse modo, tendo como ponto de partida o conceito de Direito como integridade, defenderá que a liberdade de expressão deve ser entendida como um princípio moral, baseado na equidade, na justiça e no devido processo, essencial para que a democracia seja garantida de forma plena. Este artigo, portanto, tem por fundamentos os ensinamentos de Dworkin sobre o seu modelo ideal de interpretação jurídica. Assim sendo, parte de uma análise da literatura do jurista norte-americano para, a partir dela, sopesar os contornos do direito à liberdade de expressão tendo como referência um caso concreto, qual seja, o caso da censura ao Correio Braziliense.

PALAVRAS-CHAVE

Liberdade de expressão; Direito como integridade; Democracia.


INTRODUÇÃO

O tema da interpretação jurídica, atualmente, se encontra em evidência, como se pode perceber pelo grande número de publicações sobre o assunto. Mas, se, por um lado, há um consenso geral sobre a sua necessidade e importância, por outro, existem muitas divergências doutrinárias sobre o que é essa atividade e sobre como ela deveria ser. O importante, entretanto, é destacar que toda visão sobre a atividade interpretativa relacionada ao Direito pressupõe uma perspectiva acerca do Direito.

Nesse sentido, a obra de Ronald Dworkin ganha proeminência, na medida em que busca defender uma perspectiva liberal sobre o que vem a ser o Direito e sobre como os juristas devem interpretá-lo preocupada com a garantia dos direitos individuais.

Entre os direitos individuais mais controvertidos atualmente se encontra o direito à liberdade de expressão. Isso porque a informação está, cada vez mais, ao alcance de todos. A imprensa está amplamente desenvolvida em todos os países e, além do mais, a Internet permite acesso rápido, instantâneo e global a qualquer notícia de qualquer lugar do mundo.

Nesse contexto, mostra-se de grande importância que os contornos da liberdade de expressão sejam estabelecidos. Para tanto, utilizar-se-á a base teórica de Ronald Dworkin para propor um modelo ideal pelo qual a questão da liberdade de expressão deve ser abordada. Buscar-se-á, dessa maneira, o alcance mínimo que esse direito deve ter para que as condições essenciais de uma democracia sejam preservadas.

Assim, este artigo pretende apresentar o modelo liberal de interpretação de Dworkin para, a partir dele, defender uma concepção ideal de Direito, qual seja, o Direito como integridade. Este conceito, então, será utilizado para a análise dos contornos do direito à liberdade de expressão no Ordenamento Jurídico brasileiro. Fica claro, portanto, que este artigo possui por base a produção doutrinária de Dworkin, em especial os livros "Levando os direitos a sério", "O império do Direito" e "O direito da liberdade".

Assim sendo, em primeiro lugar, expor-se-á a tese dos direitos de Dworkin e a construção do conceito de Direito como integridade (seção 1). Em segundo lugar, passar-se-á a aplicar os seus conceitos à questão do direito à liberdade de expressão, tendo como referência um caso concreto, o caso de censura ao Correio Braziliense (seção 2). Para tanto, abordar-se-á, sucintamente, aspectos relevantes do direito à liberdade (2.1), apresentar-se-á o caso do Correio Braziliense (2.2) e, tendo-o como base, utilizar-se-á a doutrina de Dworkin como "óculos interpretativo" na busca da melhor solução possível para o caso. Nesse ponto, introduzir-se-á ao leitor o conceito de leitura moral da Constituição defendida por Dworkin (2.3). Por fim, procurar-se-á estabelecer a importância da liberdade de expressão em uma ordem democrática (seção 3).


1 A TESE DOS DIREITOS DE DWORKIN

O jusfilósofo norte-americano Ronald Dworkin propõe à comunidade jurídica uma nova teoria sobre o que é o Direito e sobre como deve ser realizada a atividade interpretativa. Nessa tarefa, ele toma por ponto de partida a doutrina positivista, em especial a versão de Hart, considerada pelo autor como a mais complexa e sofisticada (2002, p. 35), para, então, criticá-la e traçar a sua teoria, definida por ele mesmo como a melhor.

Inicialmente, a argumentação de Dworkin (2002, p. 36) tem por fundamento o seguinte pressuposto:

[...] quando os juristas raciocinam ou debatem a respeito de direitos e obrigações jurídicos, particularmente naqueles casos difíceis nos quais nossos problemas com esses conceitos parecem mais agudos, eles recorrem a padrões que não funcionam como regras, mas operam diferentemente, como princípios, políticas e outros tipos de padrões.

Essa idéia se contrapõe, fundamentalmente, à tese positivista, defendida por Hart e outros autores, segundo a qual, em casos problemáticos, "os juízes têm e exercitam seu poder discricionário para decidir esses casos por meio de nova legislação" (2002, p. 35). De acordo com tal doutrina, o juiz, diante de um caso difícil, não regulado expressamente por uma regra estabelecida, possuiria o poder discricionário de criar o direito e de aplicá-lo retroativamente, na medida em que não existiria obrigação jurídica alguma a que estivesse obrigado a reconhecer.

Dworkin, no entanto, defende que os princípios devem ser tratados como Direito e, uma vez que a decisão tenha por fundamento esses padrões, não se estaria criando nova legislação, novos direitos, mas sim aplicando uma obrigação jurídica preestabelecida (2002, p. 71). Ele aduz, portanto, que os princípios possuem papel fundamental no campo jurídico, sendo utilizados como argumentos que sustentam as decisões a respeito de direitos e de obrigações jurídicas particulares (2002, p. 46).

Nesse ponto, então, para a completa compreensão do tema exposto, torna-se necessário esclarecer a distinção entre princípios e regras realizada por Dworkin (2002, p. 39-46).

Em primeiro lugar, as regras são aplicáveis à maneira tudo ou nada, ou seja, ou uma regra é válida e, nesse caso, ela deve ser aplicada, ou ela é inválida, devendo ser rejeitada. Os princípios, porém, não estabelecem conseqüências jurídicas automáticas como as regras. Eles, na verdade, enunciam uma razão que funciona como norte para uma argumentação em determinado sentido, mas, em qualquer caso, precisam de uma decisão no caso concreto, uma decisão particular.

Em segundo lugar, os princípios, ao contrário das regras, admitem uma dimensão de peso ou importância. Nesse sentido, os princípios não entram em conflito no plano abstrato, na medida em que, diante de um caso concreto, um pode ser considerado mais importante ou mais justo que o outro, sem, contudo, ser considerado inválido, pois em outras situações esse outro princípio pode ser o mais indicado. As regras, diversamente, não admitem essa dimensão. Assim, duas regras conflituosas não podem subsistir em um Ordenamento Jurídico, devendo uma delas ser considerada inválida.

Outra importante distinção a ser feita é aquela entre princípios e políticas. Estas, segundo Dworkin (2002, p. 129), "justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo". Aqueles, por sua vez, mostram "que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo".

Nesse sentido, o autor defende "a tese de que as decisões judiciais nos casos civis [...] são e devem ser, de maneira característica, gerados por princípios, e não por políticas" (DWORKIN, 2002, p. 132). Isso porque o que se busca efetivamente proteger com a aplicação dos princípios na interpretação jurídica são os direitos individuais, na medida em que "toda decisão jurídica cujo argumento seja baseado em princípios atenderá a um direito individual" (CHUEIRI, 1993, p. 52). O princípio da dignidade humana, por exemplo, estabelecido como princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, III) determina a tutela de vários direitos individuais, como, por exemplo, os direitos personalíssimos à honra e à imagem.

Nessa direção é que o autor concebe a sua teoria como a melhor, em oposição às teorias jurídicas precedentes, em especial a do Positivismo Jurídico, não só para explicar o Direito como um conjunto de normas composto por regras e princípios, mas também para asseverar, a partir de uma perspectiva liberal de defesa irrenunciável dos direitos individuais, como ele deveria ser. Por isso, ele sustenta que os juízes devem decidir os conflitos concretos baseados em princípios, e não em políticas, pois esses são argumentos voltados para a garantia dos direitos individuais, que não podem ser limitados, mesmo que de forma legítima, para que questões sociais ou de justiça distributiva sejam concretizadas.

Os princípios, então, seriam concebidos como nortes para a interpretação jurídica, pois eles expressam considerações de justiça, equidade e outras questões de moralidade (DWORKIN, 2006, p. 2). Percebe-se, assim, que Dworkin defende que a separação entre Direito e moral, sustentada pelo Positivismo Jurídico, é meramente artificial, pois, na verdade, eles estão muito próximos, dada a consideração normativa e a relevância prática dos princípios.

Chega-se, então, à tese dos direitos de Dworkin (2002, p. 127), formulada no sentido de que "mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma das partes pode, ainda assim, ter o direito de ganhar a causa". Para chegar a esse direito, o jurista deveria recorrer aos princípios. Dessa maneira, o juiz continuaria "tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente".

Para sustentar seu raciocínio, Dworkin cria, então, a figura do juiz Hércules, com poderes supra-humanos, como estratégia argumentativa na busca de respostas tidas como as melhores possíveis. Refere-se aqui à tese da resposta certa, concebida por Dworkin como aquela que possui a melhor justificação política possível. Essa resposta não estaria pronta, mas seria construída argumentativamente e, para tanto, o juiz Hércules deveria formular teorias interpretativas e testá-las diante do caso concreto até que encontrasse a melhor possível, aquela que atendesse as exigências de ajuste e de justificação, ou melhor, à moralidade política (CHUEIRI, 1993, 87). Esta resposta, na verdade, seria preexistente à atividade interpretativa, devendo o juiz apenas colocá-la em evidência, descobri-la.

Aflora-se, assim, a noção de direitos jurídicos, concebidos como "direitos à decisão de um tribunal na sua função judicativa" (CHUEIRI, 1993, p. 56). Este conceito pressupõe outros dois. O primeiro é o de propósito ou intenção de uma lei, o qual faz uma ligação entre a justificação política da idéia geral de que as leis criam os direitos e os casos difíceis que indagam quais direitos foram criados por uma lei específica. Já o segundo é o de princípios que ligam a justificação política da idéia de que casos semelhantes devem ter soluções iguais e os casos difíceis que não explicitam o que essa idéia requer (DWORKIN, 2002, p. 164-165). Segundo Dworkin (2002, p. 165), juntos estes conceitos "definem os direitos jurídicos como uma função, ainda que muito especial, dos direitos políticos".

Na busca dessa resposta certa, Dworkin concebe o Direito como uma prática social interpretativa. Para isso, o autor faz uma analogia entre a atividade interpretativa e um romance em cadeia. Essa idéia é formulada no seguinte sentido: "um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante" (DWORKIN, 2003, p. 276).

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Assim deve ser a atividade do juiz a fim de que o Direito seja concebido como integridade. Segundo essa concepção, "as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, eqüidade, e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade" (2003, p. 272). Decorre daí a necessidade de ajuste (ou adequação) e justificação. Esta no sentido de estar a interpretação de acordo com os princípios mencionados e aquela no sentido de a interpretação estar em harmonia com os materiais jurídicos existentes, tais quais legislação e precedentes. Para Hércules (DWORKIN, 2003, p. 477), o direito "consiste nos princípios que proporcionam a melhor justificativa disponível para as doutrinas e dispositivos do direito como um todo".

Assim, retoma-se a idéia da resposta certa, ou seja, da melhor interpretação, pois agora é possível dizer qual resposta está melhor fundada à luz da integridade. Esta concepção exige que os atores da aplicação do direito ajam de modo congruente com os princípios e com a moralidade política que se encontram na base da comunidade política.

Torna-se clara, portanto, a importância dos princípios para a doutrina de Dworkin, pois o conceito de Direito defendido pelo autor não se restringe apenas às regras. Os princípios são de suma importância quando o Direito é concebido como integridade, ou seja, como um conceito construído argumentativamente baseado nos princípios morais de equidade, justiça e devido processo. Por isso a necessidade de que as decisões judiciais estejam de acordo com eles e, assim, a sociedade seja uma unidade constitutiva.


2 INTERPRETAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO SOB A ÓTICA DA TESE DOS DIREITOS

Tendo como referência a tese de Dworkin exposta na seção anterior, passa-se a analisar o princípio da liberdade de expressão. Buscar-se-á estabelecer os contornos deste princípio constitucional a partir da tese dos direitos de Dworkin, levando-se em consideração, entre outros aspectos, que o Brasil vive hoje um momento de normalidade institucional, visto que é um Estado Democrático de Direito.

Para se atingir tal objetivo, analisar-se-á a decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal que proibiu a veiculação de reportagens no Correio Braziliense, impondo censura prévia a este jornal. Essa decisão se mostrou bastante polêmica e ensejou sérias discussões no meio jurídico e jornalístico.

Inicialmente, no entanto, alguns aspectos relacionados ao direito à liberdade de expressão e à validade ou não da Lei de Imprensa serão abordados.

2.1 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO

O direito à liberdade de expressão e de informação possui ampla proteção na Constituição Federal de 1988, sendo tutelado em vários dispositivos, tais quais os incisos IV, V, IX, XII e XIV do artigo 5º, bem como os artigos 220 a 224. Fica claro, assim, a importância desse direito individual para o Ordenamento Jurídico pátrio, eis que, segundo André Ramos Tavares (2002, p. 409), este direito "decorre do (próprio) princípio democrático, que consagra e tutela a coexistência da pluralidade de idéias e opiniões".

A liberdade de expressão, ademais, era regulada pela Lei 5250, de 9 de fevereiro de 1967. Alvo de frequentes questionamentos pela doutrina e pela jurisprudência, pois editada no auge da Ditadura Militar, sob a égide do governo Castello Branco, a Lei de Imprensa regulava a liberdade de manifestação do pensamento e de informação, em consonância com a ideologia autoritária do regime militar, impondo, assim, vários limites à imprensa e à liberdade de manifestação do pensamento.

No entanto, com as mudanças institucionais e ideológicas pelas quais o Brasil passou, vive-se hoje um momento de normalidade institucional, na medida em que a democracia brasileira, embora considerada recente se comparada a outras há muito consolidadas, já possui institutos bastante sólidos e eficazes. Com o processo de redemocratização do país, a própria Constituição Federal de 1988, diante das graves violações perpetradas pelo Governo Militar, concedeu especial proteção à liberdade de expressão e de informação. Pretendeu demonstrar, assim, quão importante é a liberdade de imprensa em uma ordem democrática.

A referida lei, portanto, necessitava de uma análise sob a ótica do método interpretativo denominado histórico-evolutivo. De acordo com esse método, segundo a doutrina de Gabriel Saleilles (apud REALE, 2002, p. 283), "uma norma legal, uma vez emanada, desprende-se da pessoa do legislador [...]. Passa a ter vida própria, recebendo e mutuando influências do meio ambiente, o que importa na transformação de seu significado". Desse modo, faz-se mister compreender as condições do surgimento da lei – época da ditadura militar – para, a partir da análise das condições atuais, verificar-se a possibilidade de aplicá-la hoje – sociedade democrática – buscando-se acolher os "novos fatos emergentes".

Assim, em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 130), ajuizada pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista), o Supremo Tribunal Federal, em congruência com o pensamento suscitado, julgou procedente o pedido formulado para o efeito de declarar como não-recepcionada pela Constituição Federal de 1988 a Lei de Imprensa (Lei 5.250/67). Na decisão que concedeu liminar para suspendera aplicação de tal lei, o Ministro Ayres Brito foi enfático ao dizer que a Lei de Imprensa

[...] não parece mesmo serviente do padrão de democracia e de imprensa que ressaiu das pranchetas da nossa Assembléia Constituinte de 1987/1988. Bem ao contrário, cuida-se de modelo prescritivo que o próprio Supremo Tribunal Federal tem visto como tracejado por uma ordem constitucional (a de 1967/1969) que praticamente nada tem a ver com a atual [...]

Ademais, ressaltou o eminente Ministro em seu voto que, imprensa e Democracia, na vigente ordem constitucional brasileira, são irmãs siamesas.

Fica claro, portanto, que, tendo em vista os aspectos levantados anteriormente, qualquer decisão sobre a liberdade de expressão deve ser tomada com bastante cautela, na medida em que este direito é de extrema importância para que um Estado Democrático de Direito se concretize.

Após essas considerações, então, passa-se à análise do caso do Correio Braziliense.

2.2 O CASO DO CORREIO BRAZILIENSE

Em 23 de outubro de 2002, o jornal Correio Braziliense, por decisão do desembargador Jirair Meguerian, do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, foi submetido à censura prévia e proibido de veicular matérias que contivessem conteúdo de determinadas gravações telefônicas interceptadas por ordem judicial. Estas gravações referiam-se a conversas entre o então governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, e os irmãos Passos, acusados de grilagem de terras públicas, ou seja, apropriação de terras alheias mediante falsas escrituras públicas.

O desembargador acolheu o pedido de Joaquim Roriz, candidato à reeleição naquele ano, e determinou a "busca e apreensão, com arrombamento ou entrada compulsória, na sede, se houver necessidade, de todos os exemplares do jornal ''Correio Braziliense’" (LIMA, 2002), caso a edição daquele dia contivesse trechos das fitas. Segundo notícias divulgadas na Internet (LIMA, 2002), "Um oficial de Justiça acompanhou a impressão do jornal para apreender todos os exemplares da edição caso algum trecho das fitas fosse publicado".

Essa decisão foi extremamente criticada no meio jurídico e de imprensa. O jurista paulista Luís Flávio Gomes, por exemplo, deu declarações à imprensa (RUTKOWSKI, 2002) no sentido de que "A decisão que submeteu o jornal à censura prévia é inconstitucional e resultado do excesso de cautela do juiz. Não se pode amordaçar um jornal por simples suspeita de ocorrência de um delito". Já o Ministro Marco Aurélio Mello, então presidente do Supremo, foi mais enfático: "Em matéria de liberdade de expressão, é proibido proibir". Ainda segundo a reportagem (RUTKOWSKI, 2002),

Em julgamentos anteriores sobre casos semelhantes, Marco Aurélio deixou clara sua posição: a liberdade de imprensa é pilar inabalável da Constituição, inatacável por mecanismos de censura (mecanismos, aliás, proibidos de forma expressa pela própria Constituição). Na opinião do ministro, os meios de comunicação podem publicar o que quiserem, sujeitando-se, obviamente, a ações de natureza penal (no caso de calúnia, injúria e difamação, por exemplo) e civil (indenização por ofensas à imagem, por exemplo).

Após essas breves considerações sobre o caso, utilizar-se-á da doutrina de Dworkin como verdadeiro "óculos interpretativo", a fim de que seus conceitos sejam aplicados ao caso concreto para se verificar se a decisão, nesses moldes, foi válida ou não. Por tratar-se de um princípio constitucional, abordar-se-á nessa seção o conceito de leitura moral da Constituição defendido por Dworkin.

2.3 A LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO

Segundo a doutrina da leitura moral (DWORKIN, 2006, p. 4), "a Constituição expressa exigências morais abstratas que só podem ser aplicadas aos casos concretos através de juízos morais específicos". Assim, mais uma vez, Dworkin recorre à idéia de moralidade judicial ao dizer que cabe ao juiz concretizar os direitos ínsitos nos princípios presentes na Lei Magna de um país, chamados de princípios morais pelo autor.

Nesse sentido, de acordo com a leitura moral, os dispositivos constitucionais que garantem direitos "referem-se a princípios morais abstratos e, por referência, incorporam-nos como limites aos poderes do Estado" (DWORKIN, 2006, p. 10).

Desse modo, o direito à liberdade de expressão, assim como os demais dispositivos constitucionais sobre direitos, é um princípio moral abstrato. Isso porque faz referência a princípios morais de decência, eqüidade, justiça, sendo necessária, assim, a adoção da idéia de Direito como integridade na análise desta questão.

Partindo-se dessa óptica, não seria correto que o Estado, por meio dos juízes e dos tribunais, censurasse ou controlasse o que os cidadão dizem, publicam ou lêem.

Para ilustrar tal posição, a abordagem do caso New York Times vs. Sullivan, analisado por Dworkin tendo como ponto de partida a leitura moral, mostra-se válida. Desse caso, emanou a regra de que nenhuma pessoa pública (DWORKIN, 2006, p. 311) "pode ganhar uma ação contra a imprensa, a menos que prove não só que a acusação feita contra ele era falsa e nociva, mas também que o órgão de imprensa fez essa acusação com ‘malícia efetiva’". Em outras palavras, seria necessário provar que o órgão de imprensa sabia que a notícia era falsa ou que agiu com "temerária desconsideração" sobre a veracidade ou não do conteúdo.

Para fundamentar essa posição, Dworkin (2006, p. 318) destaca que existem dois tipos de justificação. O primeiro, a justificação instrumental, diz que a liberdade de expressão "não é importante porque as pessoas têm o direito moral intrínseco de dizer o que bem entenderem, mas porque a permissão de que elas o digam produzirá efeitos benéficos para o conjunto da sociedade" (2006, p. 318-9). Nesse sentido foi o voto do juiz Brennan, seguido pela Suprema Corte Norte Americana, na decisão do caso Sullivan. Em seu voto, o jurista citou o argumento instrumental de que "a liberdade de expressão é necessária para que o povo governe o governo e não vice-versa" (DWORKIN, 2006, p. 322).

Este, porém, não é o tipo de justificação tido como ideal por Dworkin. Ele, na verdade, defendeu que melhor seria que a decisão no caso Sullivan tivesse como base a justificação constitutiva da liberdade de expressão. Segundo esta concepção, nas palavras do autor (2006, p. 319), a liberdade de expressão

[...] é importante não só pelas conseqüências que tem, mas porque o Estado deve tratar todos os cidadãos adultos (com exceção dos incapazes) como agentes morais responsáveis, sendo esse um traço essencial ou ‘constitutivo’ de uma sociedade política justa.

Sendo assim, deve ser levado em consideração que "a liberdade de expressão é em si mesma um elemento da justiça democrática" (DWORKIN, 2006, p. 264). Em outras palavras, a liberdade de expressão constitui-se em um fim em si mesma, na medida em que "é, em si, um direito humano fundamental" (DWORKIN, 2005, p. 497).

Portanto, tendo com ponto de partida que o Direito deve ser entendido como integridade, ou seja, deve ser construído argumentativamente tendo por base os princípios morais de justiça, equidade e devido processo, e que, de acordo com a justificação constitutiva proposta por Dworkin, a liberdade de expressão é essencial para a democracia, não se mostrando justa uma decisão que restrinja tal direito, a decisão proferida no caso do Correio Braziliense deve ser considerada inconstitucional.

Retoma-se aqui a idéia de Dworkin de que os princípios possuem papel fundamental no campo jurídico, sendo utilizados como argumentos que sustentam as decisões a respeito de direitos e obrigações jurídicas particulares (2002, p. 46). Assim, o direito a liberdade de expressão deve ser entendido como princípio moral e, desse modo, deve ser tratado como padrão para a realização da atividade interpretativa, surgindo para os particulares e para o Estado o dever de garantir este direito constitucional, partindo da premissa de que é errado que órgãos estatais restrinjam a livre expressão de pensamento materializada no que os cidadãos falam, publicam ou lêem.

Nessa mesma linha de raciocínio, no entanto, qualquer abuso na utilização desse direito enseja responsabilização, como bem assegura o inciso V do artigo 5º da Constituição Federal.

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Sobre o autor
Douglas Admiral Louzada

Estudante de Direito pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOUZADA, Douglas Admiral. Os contornos do direito de liberdade de expressão sob a ótica da teoria jurídica liberal de Dworkin. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2244, 23 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13385. Acesso em: 18 abr. 2024.

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