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Para além do arco-íris: a família constitucional e a união homossexual

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17/09/2009 às 00:00
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4. HOMOSSEXUALISMO: A NOMENCLATURA

O nome é aquilo que designa uma pessoa. As palavras servem para nomear as coisas. Mas os conceitos, de forma diferente, servem para dar-lhe uma pré-noção, um aspecto genérico que se faça distinguir entre os diferentes indivíduos pertencentes a uma universalidade. Nesse sentido, construir conceitos é tarefa de caracterização, apresentação, reconstrução.

O mundo das palavras há muito se distanciou do mundo da vida. Segundo Foucault, a partir do século XVI, rompe-se o elo das similitudes a unir as palavras e as coisas. Estes entes, antes unos, não mais se identificam. A complexa cadeia de analogias, emulações, simpatias e conveniências que faziam do vocábulo a própria criatura, se vê substituída pela relação dualística de significado e significante (FOUCAULT, 1999, p. 20-69).

Porquanto objeto e palavra não mais são um só ser, estas agora apenas apresentam aqueles. E o fazem através de caracterizações expressas através de conceitos analisados semanticamente, não mais na relação hermenêutica e semiológica da Idade Média. Assim, aquela perfeita capacidade perceptiva entre o verbete e o objeto se perdeu.

Hoje, as palavras jamais esgotarão o sentido das coisas, da realidade mundana. Porém, é na tarefa incansável de construção e reconstrução conceitual que reside a purificação de nosso modelo lingüístico, que não busca mais identificar a palavra e a coisa, mas caracterizar a coisa, o ser com o vocábulo.

Com vistas a isso, fica clara a necessidade de uma reformulação conceitual no que diz respeito ao nosso tema. Tal empreitada, apesar de recheada por uma enorme parafernália conceitual, nos leva ao conhecimento daquilo que Maria Berenice Dias tão bem chamou homoafetividade [04].

A diferenciação é notória: homossexual liga-nos diretamente ao aspecto físico de uma relação. Isso significa que sua fundamentação se dá estritamente pelo vínculo libidinoso e, mais ainda, em nossos tempos de "amor líquido" [05], implica considerar efêmero tal relacionamento. Homoafetiva, ao contrário, se diz do enlace afetuoso a unir indivíduos do mesmo sexo em comunhão de vida. Seu alicerce não é a pulsão sexual, mas o vínculo emocional estabelecido entre os partícipes. Isso nos faz constatar a intencionalidade diversa que se estabelece entre ambas, afinal, o sexo e a construção de uma vida em comum nem sempre se coadunam.


5. DA UNIÃO HOMOAFETIVA: BREVE HISTÓRICO

O enlace físico entre indivíduos do mesmo sexo é tão antigo quanto aquele que denominamos heterossexual. Ambos remontam à tempos remotos, anteriores ao Estado, à sociedade como a conhecemos e ao próprio indivíduo, que apenas há dois séculos se inventou.

Se nem sempre foi permitida, a prática da pederastia sempre foi aceita. Na Grécia e em Roma, as práticas sexuais entre homens eram consideradas atividades prestigiadas e desde cedo se faziam presentes. Os preceptores é que se incumbiam dessa tarefa, que visava retirar a feminilidade que o trato materno inveterava nos jovens. Assim, aos 14 anos, em média, os rapazes passavam dos braços das mães ao leito dos preceptores, continuando ao longo da vida, mesmo após suas uniões heterossexuais, a manter tais atos nas guerras, com escravos e entre os nobres (DIAS, 2006, P. 25-27).

Na idade média, com o advento do catolicismo e seus mandamentos, os relacionamentos entre homens visando satisfação sexual passam a ser condenados e ocultados. Curiosamente, nos mosteiros e nos chamados banhos [06], comparados às atuais saunas, é que tais atos se davam com mais freqüência.

Inobstante a secularização do Estado e a laicização das ciências e do Direito, nos séculos XVIII e XIX a moral católica ainda se mantinha pujante na sociedade. Daí que muitas das codificações liberais mantiveram-se impávidas frente a "caça aos pervertidos e excomungados", que tem seu marco fundamental o III Concílio de Latrão, que criminalizou as práticas homossexuais. Estas, muitas vezes eram recebidas com pena de morte. Assim, a homoafetividade fora recebida como uma prática anti-jurídica, imoral, enfim, condenável.

Durante os séculos que se seguiram às Revoluções Francesas, iniciadas em 1789, que romperam com o Direito Divino, promovendo a secularização das entidades estatais, o controle social foi, paulatinamente, passado para a autoridade humana. Os olhos de Deus cederam espaço à atuação do Estado-Juiz e novas concepções de Direito alargaram o fosso entre Estado e Igreja; teologia moral e Direito positivo passam a se ocupar de diferentes objetos: a este a conduta humana em sua liberdade vivente e àquela os pensamentos e emoções.

Embora o Estado se distanciasse cada vez mais de instituições religiosas, a família, o casamento e suas conseqüências jurídico-sociais se mantiveram sob a ideologia do Direito Canônico. Este processo descortinou-se até fins do século XX, período histórico mais recente, chamado por alguns de idade moderna ou pós-moderna.

Com o advento da chamada "pós-modernidade", muita coisa mudou. O surgimento das liberdades individuais e as lutas pela igualdade e por direitos, iniciada com os movimentos gay na década de 60 do século passado, escancararam as "portas do armário". Paulatinamente, um grande espectro de possibilidades se abriu; o preconceito diminuiu e a exclusão e a "peste gay" [07] não se fazem mais tão presentes.

Para isso, mudanças econômicas, políticas e morais ocorridas na modernidade foram fundamentais. Foi com a liberdade de expressão e de associação que a "liquidez moderna" [08] afastou a sociedade do porto sombrio do preconceito e da exclusão do medievo, levando-a rumo a novos paradigmas, à formação de uma nova consciência.


6. DO ARMÁRIO PARA O PODER JUDICIÁRIO.

Até a Constituição de 1988, no Brasil era inaceitável falar em famílias concubinárias, menos ainda sobre uniões homoafetivas. Nesse contexto, essas uniões se consideravam sociedades de fato, sendo julgadas nas varas cíveis, onde partilhavam-se os quinhões de cada um dos societários durante a vigência da sociedade.

Com a Lex Fundamentallis isso se modifica. E para a "proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar", bem como "a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Mas o que significa essa citação explícita da família monoparental e do companheirismo? Seria a exclusão das demais formas de entidade familiar? Obviamente que não. Ora, era na mulher, companheira ou concubina, que se depositavam as maiores discriminações. Muitas vezes, somente acompanhada de sua prole, ela ficava relegada dos cuidados do Direito Familial apenas por não possuir um marido. Isso tornava imperativa a intervenção constitucional e a expressa equiparação entre os gêneros.

Veja-se, porém, que muito embora não se tenha expressa norma constitucional que venha a regulamentar as uniões homoafetivas especificamente ou aquelas de qualquer outra natureza, sua possibilidade jurídica pode ser constatada quando nos deparamos com uma análise do tema à luz dos princípios constitucionais. Afinal, um Estado que tem como seus principais objetivos "a cidadania; a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a promoção do bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo", "e quaisquer outras formas de discriminação" bem como a prevalência dos direitos humanos, jamais poderia determinar em suas normas alguma medida que viesse a promover os mesmos preconceitos aos quais se propõe a erradicar sob pena de inconstitucionalidade da norma que o faça. Assim, é impossível acreditar que neste sistema jurídico o art. 226 tenha em seu elenco de entidades familiares uma restrição às demais espécies, pois estaria a violentar a dignidade da pessoa humana, cláusula pétrea constitucional, bem como o direito à família e à liberdade, previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Ora, num Estado que se funda em tais orientações, que aliás, não só fundam mas devem permear todas as suas atividades, é verdadeira aberração a alegação de que a simples necessidade de alguns em legitimar seus preconceitos estejam a impedir a realização do fim maior ao qual se propõe o Estado brasileiro.

Dizer que o Artigo 226 §§ 2° e 3° é norma de eficácia limitada, portanto negando a sua efetividade, até mesmo no que diz respeito ao companheirismo, é, simultaneamente, negar a força normativa da Constituição Federal; é, mais ainda, se posicionar de maneira retrógrada, retirando a eficácia imediata dos princípios constitucionais.

Cabe ao judiciário o reconhecimento dessa realidade, não sua subversão por meros preconceitos pessoais. A dignidade humana, os direitos e garantias fundamentais, bem como os tratados internacionais dos quais o Brasil é partícipe não podem ser obstados por simples preconceitos de ordem pessoal; o Judiciário deve reconhecer esta realidade fática e seu respaldo constitucional, promovendo o bem de todos numa sociedade pluralista e democrática, fim ao qual se propõe o Estado Democrático de Direito brasileiro.

Quando desconsidera as uniões homoafetivas como sociedades de fato o aplicador do direito incorre em incostitucionalidade material, pois sua decisão contraria princípios constitucionais, subvertendo a própria concepção de entidade familiar apregoada na Constituição de 1988.


7. DA INCOSTITUCIONALIDA MATERIAL.

Uma lei, ato administrativo ou sentença que venha a ferir princípios constitucionais é materialmente inconstitucional. Assim, ao negar a possibilidade do vínculo familial ao casal de mesmo gênero, o julgador impede o direito à constituição de uma família, daquela família que se quer ter, não daquela que se impõe por uma folha de papel, distante do mundo da vida, da realidade social, família essa, essencial condição da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, preconceituando e coisificando as pessoas, retirando-as da própria condição humana.

Negar a existência de um núcleo familial ao casal homossexual é o mesmo que lhe retirar de sua condição de sujeito de direito é afastá-los da sua qualidade de pessoa humana; é coisificar as singulares relações de afeto que só se conhece no seio familiar; é validar a marginalização e a perversão desses relacionamentos em meros Just in time sexuais.

A interpretação constitucional fornece um significado mínimo que não pode ser subvertido pelo intérprete. Quando este o faz, rompe com a própria norma da qual advém sua autoridade e, como corolário, pratica atos inválidos por inconstitucionalidade material. Por isso, antes de se debruçar contra uma alínea que seja, do mais simples ato, há de ter em mente os princípios sobre os quais se funda o Estado brasileiro.

A neutralidade, sabemos, é inalcançável, por conta que a conduta humana é, desde sua execução, uma ordem valorativa, planejada por base em pré-compreensões e preconceitos, mas isso não significa que o intérprete deva realizar seu papel por conta simplesmente de preconceitos pessoais inveterados. É preciso distinguir entre juízos de valor pessoais, da realização de uma justiça que se faz clamar pela sociedade.

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8. A INTERPRETAÇÃO EXCLUDENTE E O NÚMERO CLAUSUS.

Não é pacífico na doutrina sobre o §3º do artigo 226 da Carta Política constituir número clausus ou apertus. Para alguns, como o ilustre mestre baiano Orlando Gomes (2001, p. 3-30), há ali uma cláusula excludente, referindo apenas à união estável entre o homem e a mulher, bem como a família monoparental como entidades familiares. Para outros, principalmente entre os membros da doutrina atual como Paulo Lobo e Maria Berenice Dias (2006, p. 40-45) há ali repertório apenas ilustrativo de tais entidades, sendo então um dispositivo de inclusão.

Ora, como já dissemos acima, o texto constitucional se faz em sua interpretação por um todo, devendo serem encarados e ponderados os princípios existentes, quando conflitantes, visando a busca da máxima realização de cada um deles, como bem mostra Humberto Ávila [09] analisando o sistema de princípios constitucionais. Daí que ignorar a existência e a eficácia que se expande dos princípios, negligenciando sua influência para uma compreensão de cada um dos dispositivos da Carta Magna, é mesmo voltar a uma exegese primitiva, como fora a do positivismo primitivo francês.

A interpretação do texto constitucional não se faz por um dispositivo isolado, mas levando em conta todos os vetores de racionalidade que emanam deste mesmo. Para, com isso, chegar-se à realização de um direito legítimo, que se faz clamar pela sociedade e se expressa no texto constitucional. Interpretar não é construir verdades universais, estáticas e incontestáveis como parecem entender os defensores da cláusula de excludência. A atividade do intérprete é a de perceber o sentido que hora se apresenta, como diz Gadamer:

"Quem quiser compreender um texto, realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido". (Gadamer, 2003. p. 356)

Como bem mostra Paulo Luiz Netto Lôbo, "a exclusão não está na constituição, mas na interpretação"(LÔBO, 2002, p. 50). Sendo a família que goza de especial proteção do Estado e, mais ainda, sendo a affectio sua força propulsora, percebemos que esta é o gênero do qual advém várias espécies, que não fazem desmerecer-lhe a tutela da juridicidade. Há de se ver que no texto constitucional não há mais a cláusula "constituída pelo casamento", que não foi por nenhuma outra substituída.

Outrossim, quando se invoca o §4º do mesmo artigo para, como fez Orlando Gomes, doutrinar que "embora a Constituição tenha colocado sob proteção especial do Estado tanto a família legitima como a natural, não teve a intenção de igualar por inteiro as duas figuras"(GOMES, 2001, p. 25), está-se mesmo reincluindo a cláusula de exlucudência quando na interpretação.

Sabemos que o casamento é o ato solene que regula a união entre duas pessoas. Mas não significa que seja ele a única e preferencial forma de constituição do vínculo afetivo. De fato, sua solenidade isenta aos consortes da necessidade de comprovação da relação e tem seus aspectos normativos patrimoniais mais amplamente regulados. Daí que se deva facilitar, ou seja, não criar óbices à conversão da união estável em casamento.

Novamente é de Paulo Lôbo a lição:

"A regra do §4º do art. 226 integra-se à cláusula geral de inclusão, sendo este o sentido do termo "também" nela contido. "também" tem o significado de igualmente, da mesma forma, outrossim, de inclusão de fato sem exclusão de outros. Se dois forem os sentidos possíveis (inclusão ou exclusão), deve ser prestigiado o que melhor responda à realização da dignidade da pessoa humana, sem desconsideração das entidades familiares não explicitadas no texto" (LÔBO, 2002, p. 53)

Assim, concluímos que, de fato, não há nota de exclusão no parágrafo terceiro do artigo 226 e que as prescrições do §4º visam somente dar maior formalidade, preenchendo de forma mais precisa o critério de ostensibilidade na constituição da família, que é o seu reconhecimento público como tal.

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Sobre o autor
Paulo Ramon da Silva Solla

Assessor Técnico do Governo do Estado da Bahia, na área de Licitações, Contratos Administrativos, Convênios e Contratos de repasse destinados a execução de obras e serviços de engenharia.<br>Pós Graduando em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça pela Universidade Federal da Bahia.<br>Avaliador de diversos periídicos, tais como: Revista Jurídica da UERJ, Revista Jurídica da UNISINOS, Revista Jurídica da PUC-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOLLA, Paulo Ramon Silva. Para além do arco-íris: a família constitucional e a união homossexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2269, 17 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13519. Acesso em: 26 abr. 2024.

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