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Soberania jurídica x soberania política: o caso Cesare Battisti

13/10/2009 às 00:00
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É notório o caso do italiano Cesare Battisti, atualmente em julgamento junto ao Supremo Tribunal Federal, em que se (re)discute a possibilidade de extradição de refugiado político.

Naquele caso, Battisti, reconhecido militante comunista e ex-membro do grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), fora condenado pela Justiça de Milão, em 1988, à prisão perpétua por quatro homicídios cometidos entre 1977 e 1979. [01]

Após fugir para o México, em 1990 Battisti retornou à Europa, estabelecendo-se na França e sendo beneficiado pela política do então presidente François Miterrand, que impedia a extradição de ex-militantes que houvessem abandonado a luta armada. No entanto, encerrado o governo Miterrand, a Justiça Francesa decidiu pela extradição de Battisti, que fugiu para o Brasil em 2004, onde foi preso em 2007.

Com a indigitada prisão, o Governo Italiano requereu a extradição ao Estado Brasileiro (EXT 1.085), com base em Tratado firmado entre os dois países em 17.10.1989 e promulgado pelo Decreto nº 863, de 09.07.1.993. Ocorre que, concomitantemente, Battisti requereu refúgio político ao Estado Brasileiro, alegando que os crimes a que fora condenado seriam de natureza política.

Em dezembro de 2008, o Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE indeferiu o pedido de refúgio formulado. No entanto, interposto recurso administrativo, o Ministro de Estado da Justiça deu-lhe provimento "para reconhecer a condição de Refugiado a Cesare Battisti, nos termos do art. 1º, inc. I, da Lei nº 9.474/97, o que, a priori, obstaria a extradição [02]. Referido ato deu ensejo à impetração de mandado de segurança (MS 27.875) pelo Governo da Itália.

O caso em questão, por acarretar diversos desdobramentos e repercutir em variadas questões jurídicas, transcende o interesse do Estado Italiano e do extraditando, a medida em que põe em voga, no que pertinente a este trabalho, a discussão sobre soberania, um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil.

Nesse ínterim, debruçamo-nos sobre as seguintes questões: o STF possui competência para analisar ato de soberania política do Ministro de Estado da Justiça? O STF possui soberania jurídica no que tange a refúgio político e extradição? O STF possui competência para, no curso de processo de extradição, analisar o mérito da decisão de Estado estrangeiro? Eventual decisão do STF, favorável à extradição, vinculará o Presidente da República? Essas as questões que serão debatidas nessa oportunidade.

Dito isso, impende enfatizar que a soberania é o "poder de uma entidade coletiva de realizar, em relação ao próprio grupo social, a condição efetiva de sua auto-suficiência." [03] É o poder incontrastável do Estado, que não se subordina a nenhum outro. [04]

Sobre dois pontos deve se basear a ideia de soberania: independência externa e supremacia interna, sendo precisamente esse segundo conceito que interessa para o presente estudo. Nessa linha, leciona Machado Pauperio:

Para muitos autores, a supremacia constitui praticamente a soberania, não sendo a independência outra coisa senão um meio de tornar a supremacia efetiva. Dentro desse ponto de vista, a soberania é, sobretudo, o poder de se governar internamente. [05]

Sendo assim, é certo que essa supremacia é detida pelo Estado. Cumpre analisar, no bojo do Estado, quem deverá exercê-la institucionalmente. No caso em comento, e.g., há provimentos dissonantes emanados do Executivo — Ministro de Estado da Justiça — e do Judiciário. Como resolver/evitar esse aparente paradoxo?

Certo é que o real detentor da soberania é o povo, que delega esse poder ao Estado através de seus representantes Constituintes. A Constituição do Estado formaliza essa delegação, conservando a titularidade da soberania popular. A esse respeito, esclarecedoras as lições de Jorge Capizo:

El pueblo es el amo y señor, los que gobiernan son sus servidores: «... el acto que instituye el Gobierno no es un contrato, sino una ley; los depositarios del poder ejecutivo no son los dueños del pueblo, sino sus servidores; puede nombrarlos o destituirlos cuando le plazca; no es cuestión para ellos de contratar, sino de obedecer, y encargándose de las funciones que el Estado les impone no hace sino cumplir con su deber de ciudadano, sin tener en modo alguno el derecho de discutir las condiciones». [06]

Nessa senda, a soberania será exercida pelo Estado de acordo com a Constituição, e é a própria Constituição que estabelece quem, no aparato estatal, atuará soberanamente em nome do povo.

Com essas considerações, chama-se atenção para a Lei n.º 9.474/1997, que tratou das hipóteses de reconhecimento de refugiado político e, em seu artigo 33, estabeleceu que o reconhecido enquadramento naquelas hipóteses, pelo CONARE, obstaria o prosseguimento de extradição fundada nos mesmos motivos que levaram à concessão do refúgio.

No julgamento da supracitada EXT 1.008, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, incidenter tantum a constitucionalidade do artigo 33, o que a princípio conduziria a uma contradição no caso Battisti.

Ocorre que uma coisa nada tem que ver com outra. No caso de Cesare Battisti, a discussão se cinge à caracterização política dos crimes cometidos pelo extraditando. A controvérsia que erige não deve ser essa, mas sim se seria o STF competente para realizar esse juízo de ponderação após prévia manifestação estatal por meio do Ministro da Justiça.

Nesse exame, por conveniência didática, podemos dividir as funções desempenhadas, sendo lícito atribuir o desempenho da soberania política ao Executivo, e o desempenho da soberania jurídica ao STF.

Dessa forma, o único fundamento verossímil a justificar a intervenção do STF, relativizando a supremacia interna do Executivo no exercício da soberania política e pondo eventualmente em xeque o princípio da separação dos poderes, é a guarda da Constituição através do controle jurisdicional do ato emanado do Executivo (soberania jurídica). A esse respeito, leia-se o voto do Ministro Cezar Peluso na EXT 1.085:

Conquanto reconhecido e até sublinhado, na ocasião daquele julgamento, o caráter político-administrativo da decisão concessiva de refúgio, não me parece, revendo agora os termos e o alcance da lei à luz sistêmica da ordem jurídica, que tal asserto deva ser entendido ou tomado em acepção demasiado estrita, nem tampouco que o fato de o poder ou dever de outorga ser atribuição reservada à competência própria da União, por representar o país nas relações internacionais, lhe subtraia, de modo absoluto, os respectivos atos jurídico-administrativos ao ordinário controle jurisdicional de legalidade (judicial review). Esta é, aliás, a única interpretação concebível capaz de sustentar a admissibilidade de juízo de constitucionalidade, em especial daquela norma específica, sob o prisma da regra da separação de poderes. Ademais, a presunção de inteireza da Lei nº 9.474/97 não dá, ao propósito, margem a outras considerações que não a do pressuposto da necessidade de rigorosa obediência aos requisitos positivos e negativos que ela mesma estatui. A União não age aqui, nem alhures, a legibus soluta. [07]

Do excerto se extrai que nada foge à submissão à Constituição. Assim, não se pode, a pretexto de exercício da soberania política, praticar atos contrários à Constituição, cabendo ao STF realizar o juízo de conformação que vem a lume nesse trabalho.

Noutra vertente, em não menos polêmica discussão que restou suscitada, questiona-se se, ao cabo do julgamento da EXT 1.085, numa eventual procedência do pedido de extradição, seria discricionário ao Executivo extraditar ou não Battisti. A doutrina [08], amparada em posicionamentos do STF, defende quase que unanimemente que a decisão da Corte somente vincula o Presidente quando denegatória [09]. Desse modo, julgada procedente a extradição, seria discricionária a opção, pelo Executivo, de extraditar o indivíduo.

Contudo, no curso do processo de Battisti, chamou atenção entrevista concedida pelo Ministro Presidente Gilmar Mendes afirmando, em sentido contrário ao anteriormente adotado pelo STF, que a decisão proferida pela Corte deveria vincular o Executivo, ainda que fosse favorável à extradição. Nesse mesmo norte, merece menção o magistério do eminente Francisco Rezek:

O Estado requerente, sobretudo, tende a ver nesse ato a aceitação de sua garantia de reciprocidade, passando a crer que a partir de então somente o juízo negativo da corte sobre a legalidade da demanda lhe poderá vir a frustar o intento. Nasceu, como era de se esperar que nascesse, por força de tais fatores, no Supremo Tribunal Federal, o costume de se manifestar sobre o pedido extradicional em termos definitivos. Julgando-a legal e procedente, o tribunal defere a extradição. Não se limita, assim, a declará-la viável, qual se entendesse que depois de seu pronunciamento o regime jurídico do instituto autoriza ao governo uma decisão discricionária. [10]

Não obstante a credibilidade donde provêm os argumentos que abrem a divergência, a conclusão é que a decisão do STF não deverá vincular o Executivo, seja por força da jurisprudência do STF, seja pela manifestação solitária do Ministro Gilmar Mendes, que não encontrou eco em seus pares.

Noutro giro, interessante ainda a controvérsia sobre a possibilidade da análise do mérito, pelo STF, do processo que correu na Justiça Italiana e que culminou na condenação de Cesare Battisti. Estaria o STF afrontando a soberania jurídica da Itália?

Nesse diapasão, oportuna a citação de aresto do STF que corrobora o entendimento pela inviabilidade de análise meritória no curso de processo de extradição, veja-se:

EXTRADIÇÃO EXECUTORIA. NATUREZA DO PROCESSO EXTRADICIONAL. LIMITAÇÃO AO PODER JURISDICIONAL DO STF. TRIBUNAL DE EXCEÇÃO. CRIME POLÍTICO RELATIVO. (...) CRIME COMPLEXO OU CRIME POLÍTICO RELATIVO, CRITÉRIO PARA A SUA CARACTERIZAÇÃO ASSENTADO NA PREDOMINANCIA DA INFRAÇÃO PENAL COMUM SOBRE AQUELAS DE NATUREZA POLITICA. ART. 77, PARS. 1. E 2., DA LEI 6.815/80. NÃO HAVENDO A CONSTITUIÇÃO DEFINIDO O CRIME POLÍTICO, AO SUPREMO CABE, EM FACE DA CONCEITUAÇÃO DA LEGISLAÇÃO ORDINARIA VIGENTE, DIZER SE OS DELITOS PELOS QUAIS SE PEDE A EXTRADIÇÃO, CONSTITUEM INFRAÇÃO DE NATUREZA POLITICA OU NÃO, TENDO EM VISTA O SISTEMA DA PRINCIPALIDADE OU DA PREPONDERANCIA. TRIBUNAL DE EXCEÇÃO. NÃO CARACTERIZAÇÃO QUANDO O JULGAMENTO SE DA COM FUNDAMENTO E DE CONFORMIDADE COM LEIS, DESDE HÁ MUITO VIGENTES, E POR INTEGRANTES DA SUPREMA CORTE DE JUSTIÇA DO PAIS, NA OCASIAO, REGULARMENTE INVESTIDOS EM SUAS FUNÇÕES. (...) SE A SUPREMA CORTE DO PAIS REQUERENTE DECIDIU, FORMAL E EXPRESSAMENTE, QUE, EM FACE DE SUA LEGISLAÇÃO, NÃO OCORREU A PRESCRIÇÃO, NÃO CABE AO STF REVER AQUELA DECISÃO, SOB PENA DE DESRESPEITO A SOBERANIA DO PRONUNCIAMENTO JURISDICIONAL DO ESTADO REQUERENTE. EXTRADIÇÃO DEFERIDA, CONDICIONADA AO COMPROMISSO DE NÃO SER O EXTRADITANDO PRESO OU PROCESSADO POR DELITO ANTERIOR, DE DETRAIR-SE DA PENA O TEMPO DE PRISÃO CUMPRIDO NO BRASIL E DE OBSERVAR-SE CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR E PUNIR A TORTURA". [11]

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E, ainda, voto do Ministro Celso de Mello que respalda aquele mesmo posicionamento:

São limitados, juridicamente, os poderes do Supremo Tribunal Federal na esfera da demanda extradicional, eis que esta Corte, ao efetuar o controle de legalidade do pedido não aprecia o mérito da condenação penal e nem reexamina a existência de eventuais defeitos formais que hajam inquinado de nulidade a persecução penal instaurada no âmbito do Estado requerente. A necessidade de respeitar a soberania do pronunciamento jurisdicional emanado do Estado requerente impõe ao Brasil, nas extradições passivas, a indeclinável observância desse dever jurídico. [12]

Consoante se depreende dos excertos acima, não cabe ao Judiciário brasileiro rever o mérito da condenação estrangeira. As únicas flexibilizações possíveis são aquelas oriundas do tratado firmado entre os países e aquelas previstas na Constituição brasileira e na legislação pertinente, sob pena de afronta à soberania jurídica alienígena.

Concluindo, esse trabalho não possui, em absoluto, a pretensão de resolver as diversas controvérsias que permeiam o complexo caso de Cesare Battisti, mas refletir sobre alguns pontos interessantes que emergem daquele processo.

Em sendo assim, temos como admissível a possibilidade do STF, com fundamento no resguardo à Constituição e no exercício do controle jurisdicional de ato do Executivo, de analisar, provocado mediante processo de extradição, a natureza dos crimes a que fora condenado o extraditando, se políticos ou comuns. Dessa feita, o STF não ofende a soberania política, mas a reafirma, a medida em que protege a Constituição enquanto decisão política fundamental de delegação do exercício da soberania ao Estado pelo povo.

Indo além, entende-se que essa discussão, especificamente, na prática não conduzirá a nada, posto que, segundo a jurisprudência do próprio STF, a decisão favorável à extradição não deverá vincular o Executivo, que muito provavelmente seguirá o posicionamento anteriormente adotado pelo Ministro da Justiça, optando, discricionariamente, por não extraditar Cesare Battisti.

Noutro giro, por derradeiro, a conclusão é pela impossibilidade de o STF rever o mérito das condenações em processo de extradição, sob o risco de funcionar como "terceira instância" da Justiça estrangeira, ferindo-lhe a soberania jurídica.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARPIZO, Jorge. La soberania del pueplo en el derecho interno y en el internacional. Revista de Estudios Politicos, Madri, n. 28, jul./ago. 1982.

GUELI, Vincenzo. Nuovo Digesto Italiano. Torino: Utet, 1957.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2002.

PAUPERIO, A. Machado. O conceito polêmico de soberania. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958.

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.


Notas

  1. Sempre pautados no princípio da não-culpabilidade (ou da "presunção de inocência"), nos permitimos ter como certo o cometimento daqueles crimes tendo em vista o trânsito em julgado da sentença condenatória junto à Justiça Italiana.
  2. Assim decidiu o STF no emblemático caso de Olivério Medina com base no artigo 33, da Lei n.º 9.474/1997. Cfr. EXT 1.008, Pleno, Min. Rel. Gilmar Mendes, DJ 17.08.2007. Posicionamento esse que, ao que tudo indica, será revisto no caso de Cesare Battisti.
  3. GUELI, Vincenzo. Nuovo Digesto Italiano. Torino: Utet, 1957, p. 701, verbete "Sovranitá".
  4. PAUPERIO, A. Machado. O conceito polêmico de soberania. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 15.
  5. Idem, p. 16.
  6. CARPIZO, Jorge. La soberania del pueplo en el derecho interno y en el internacional. Revista de Estudios Politicos, Madri, n. 28, jul./ago. 1982, p. 200.
  7. Voto proferido pelo Ministro Relator Cezar Peluzo nos autos da EXT 1.085. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Ext1085RelatorioVoto.pdf Acesso em 17.09.2009.
  8. Cfr., nesse sentido, Alexandre de Moraes, para quem: "Findo o procedimento extradicional, se a decisão do Supremo Tribunal Federal, após a análise das hipóteses materiais e requisitos formais, for contrária à extradição, vinculará o Presidente da República, ficando vedada a extradição. Se, no entanto, a decisão for favorável, o Chefe do Poder Executivo, discricionariamente, determinará ou não a extradição, pois não pode ser obrigado a concordar com o pedido de extradição, mesmo que, legalmente, correto e deferido pelo STF, uma vez que o deferimento ou recusa do pedido de extradição é direito inerente à soberania. (STF, RF 221/275). MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 117-118.
  9. Também nesse sentido o parecer de lavra de José Afonso da Silva no processo em tela. Disponível em http://www.conjur.com.br/2009-abr-22/condenacao-battisti-italia-viola-processo-legal-barroso Acesso em 17.09.2009.
  10. REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 192.
  11. EXT nº 615, Rel. Min. PAULO BROSSARD, DJ de 05.12.1994.
  12. EXT nº 524, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 08.03.1991.
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Sobre o autor
Guilherme Pupe da Nóbrega

Advogado em Brasília (DF). Pós-graduando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NÓBREGA, Guilherme Pupe. Soberania jurídica x soberania política: o caso Cesare Battisti. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2295, 13 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13560. Acesso em: 19 abr. 2024.

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