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A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo.

Mínima intervenção do direito penal ou concretização de sua seletividade?

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14/10/2009 às 00:00
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4 TUTELA PENAL DA ORDEM TRIBUTÁRIA

Na terceira etapa deste trabalho, revisam-se algumas noções acerca do direito estatal de punir, ou seja, das teorias ditas legitimadoras do Direito Penal.

Preambularmente, reconhece-se que a concepção do monopólio do Estado quanto ao direito de punir encontra fundamento no contratualismo social, forjado nas idéias iluministas que floresceram na Europa dos séculos XVI e XVII.

Em Beccaria, a reunião das parcelas de liberdade de cada homem constituía o fundamento estatal do direito de punir. Enunciava-se então:

O homem, diante da necessidade de proteger-se do outro, se viu obrigado a ceder parte de sua liberdade, pois a tendência do homem é tão forte para o despotismo, que ele procura, incessantemente, não só retirar da massa comum a sua parte de liberdade, como também usurpar a dos outros. [53]

Algum tempo depois, os contornos racionais e liberais do Estado de Direito marcariam inevitavelmente e para sempre o Direito Penal.

Passou-se a conjugar a primazia da lei – dogma do positivismo jurídico – com o direito de infligir penas, o que levaria ao prenúncio de um princípio muito caro ao Direito Penal: o da reserva legal, expressado no brocardo nullum crimen nulla poena sine lege.

A propósito, escreveu Beccaria na obra que o consagrou [54]: "apenas as leis podem indicar as penas de cada delito e que o direito de estabelecer leis penais não pode ser senão da pessoa do legislador, que representa toda a sociedade ligada por um contrato social".

Todo esse contexto recomenda algumas considerações acerca das teorias justificadoras do direito estatal punitivo, sob o aspecto da legitimação do Estado no controle social.

Em primeiro lugar, lembra-se que, além das teorias legitimadoras, existem aquelas chamadas de deslegitimadoras ou abolicionistas, que, diametralmente opostas às primeiras, não reconhecem o Direito Penal como meio de controle social.

Paulo Queiroz assim se reporta às teorias deslegitimadoras:

Recusam legitimação ao Estado para exercitar o poder punitivo, pondo em destaque, principalmente, a disparidade entre o discurso e a prática penais, bem como a circunstância de o direito penal criar mais problemas do que os resolver, sendo criminógeno, arbitrariamente seletivo e causador de sofrimentos estéreis e inúteis. [55]

Quanto às teorias legitimadoras, estas podem ser classificadas como absoluta, relativa ou eclética. A primeira e a segunda distingüir-se-iam pela finalidade da aplicação da pena.

Na teoria absoluta, a pena tem o fim em si mesma, ou seja, é mera conseqüência da prática de um delito. A crítica corrente que se faz à teoria absoluta está no fato de envolver conceitos absolutos de Justiça, de Moral e de Direito, o que se revela incompatível com as bases dos Estados modernos, guiados por limites e princípios constitucionais intransponíveis, especialmente o da dignidade humana.

A teoria relativa da legitimação apresenta um novo elemento: a função preventiva da pena, conformando-se aos princípios utilitaristas da cominação penal. As teorias relativas compreendem a prevenção geral – positiva ou negativa – e a prevenção especial.

Luiz Regis Prado assinala:

[...] a concepção preventiva geral da pena busca sua justificação na produção de efeitos inibitórios à realização de condutas delituosas, nos cidadãos em geral, de maneira que deixarão de praticar atos ilícitos em razão do temor de sofrer a aplicação de uma sanção penal. Em resumo, a prevenção geral tem como destinatária a totalidade dos indivíduos que integram a sociedade, e se orienta para o futuro, com o escopo de evitar a prática de delitos por qualquer integrante do corpo social. [56]

Com a função de prevenção geral positiva, a pena serviria para fortalecer valores ético-sociais emanados da norma penal, assegurando a estabilidade social - pela proteção de bens jurídicos -, ameaçada por frustrações decorrentes do não cumprimento das normas. Assim, a pena funcionaria de modo preventivo restabelecendo a confiança no sistema jurídico-penal, ou reparando os efeitos negativos de violação à norma. [57]

No que diz respeito à prevenção geral negativa, a própria denominação revela o caráter de abstenção que deve ter a conduta humana na prática de um delito. Já na teoria de prevenção especial, o papel relevante da pena consiste em inibir a prática de novos delitos. Por esta última, as penas teriam função de ressocialização ou saneamento social do delinqüente, via segregação provisória ou definitiva.

As falhas mais contundentes atribuídas à teoria relativa residem na prevenção em seu aspecto etiológico, ou seja, na origem da atividade criminosa. Ou ainda que é comum a norma penal dar resposta a casos pontuais de repercussão social, produzindo as chamadas cifras ocultas da criminalidade. [58]

E finalmente a teoria eclética ou mista que explica o direito punitivo ante sua complexidade e, de modo reflexivo, contesta as ditas teorias monistas.

Segundo Luiz Regis Prado, [59] essas teorias, "predominantes, na atualidade, buscam conciliar a exigência de retribuição jurídica da pena – mais ou menos acentuada – com os fins de prevenção geral e de prevenção especial."

À guisa de conclusão, afirma o autor:

A justificação da pena envolve a prevenção geral e especial, bem como a reafirmação da ordem jurídica, sem exclusivismos. Não importa exatamente a ordem de sucessão ou de importância. O que deve ficar patente é que a pena é uma necessidade social – ultima ratio legis, mas também indispensável para a real proteção de bens jurídicos, missão primordial do Direito Penal. De igual modo, deve ser a pena, sobretudo em um Estado constitucional e democrático, sempre justa, inarredavelmente adstrita à culpabilidade (princípio e categoria dogmática) do autor do fato punível. [60]

No tocante ao propalado fim de ressocialização da pena (teoria preventiva especial), vale a crítica de Francisco Munõz Conde. Diz o autor, aludindo ao fato de a legislação espanhola lançar a "reeducação e a reinserção" como meta principal de seu sistema penitenciário:

Precisamente, neste momento, se lançam vozes por todas as partes contra a idéia da ressocialização, da reeducação, da reinserção social do delinqüente. Fala-se do "mito da ressocialização", que é uma "utopia", ou um "eufemismo", uma miragem que nunca se poderá alcançar. [61]

Por sua vez, Alessandro Baratta também critica o fim preventivo da pena:

[...] a teoria do labelling approach se coloca criticamente em face do princípio da prevenção ou do fim, e em particular em relação à ideologia oficial do sistema penitenciário atual: a ideologia da ressocialização. De fato, ao recorrer à diferença entre desvio primário e desvio secundário, as teorias da criminalidade baseadas no labeling approach contribuíram para a crítica dos sistemas de tratamento, com um princípio teórico fundamental para esta crítica, que lança luz sobre os efeitos criminógenos do tratamento penal e sobre o problema não resolvido da reincidência. Estas teorias se relacionam, assim, a todo o vasto movimento do pensamento criminológico e penalógico que, das escolas liberais contemporâneas até as mais recentes contribuições da criminologia crítica, mostrou a grande distância entre a idéia da ressocialização e a função real do tratamento. [62]

Por derradeiro, conforme pôde ser visto, a Criminologia Crítica deixa patente o nó górdio que o Direito Penal tradicional não consegue desfazer, qual seja a seletividade do Sistema Penal e seus consectários, em especial a vulnerabilidade e a estigmatização dos indivíduos pertencentes às classes subalternas

4.2 O Direito Penal mínimo

Com freqüência, debate-se a (des) necessidade da incriminação das condutas de sonegação fiscal.

Tal questionamento se justifica. No âmbito da Dogmática Jurídica, a doutrina mais "progressista" atribui ao Direito Penal um papel subsidiário como meio de controle social. Em razão de suas limitações e do rigor de sua intervenção, o Direito Penal deveria ser avocado apenas quando infrutíferos os demais mecanismos de controle social - inclusive jurídicos -, como a família, a escola, as normas sancionatórias civis, administrativas (inclusive tributárias) etc.

Assim, para essa mesma doutrina - que entre nós teve a forte influência de Luigi Ferrajoli - os princípios constitucionais que delineiam a atuação estritamente necessária e justa do poder estatal de punir reservam ao Direito Penal o lugar de ultima ratio na solução dos conflitos e pacificação social. [63]

No entendimento de René Ariel Dotti:

A defesa do princípio da intervenção mínima, que identifica o chamado Direito Penal mínimo, constitui uma das expressões mais vigorosas do movimento crítico que se propõe a discutir e a avaliar a crise do sistema positivo, depurando-o da insegurança jurídica e da ineficácia a que conduz o fenômeno da hipercriminalização. [64]

Costuma-se associar o princípio da intervenção mínima à subsidiariedade social e sistemática do Direito Repressivo, esta última como decorrência do princípio da unidade do ordenamento jurídico. Além disso, o Direito Penal seria fragmentário, pois não deteria com exclusividade o poder sancionador das condutas socialmente reprováveis ou ofensivas a determinados bens jurídicos. Ao contrário, seria apenas uma das formas de atuação estatal no universo de condutas antijurídicas.

Na opinião de Celso Eduardo Faria Coracini:

A eficácia do direito penal na atualidade está, sem sombra de dúvida, condicionada a que seja utilizado limitadamente, nos casos mais gravosos à sociedade (v.g., "ordem econômica"), e, ainda assim, com temperança conscienciosa. Por sua vez, a falta de eficácia do direito penal moderno se deve, em parte, à não aplicação, por quaisquer motivos, das leis vigentes sobre a matéria; e em grande medida, pela inadequação de muitos tipos penais às realidades sobre as quais deveriam voltar, quando não por sua insuficiência. [65]

A intervenção mínima do Direito Penal é pauta constante nas obras doutrinárias dogmáticas e se reproduz ao lado de outras temáticas como a descriminalização. Na prática, verifica-se a tendência, ainda que tímida, da descriminalização de certas condutas que em pouco afetam a "paz social", v.g., nos casos de abolitio criminis relativamente aos crimes de sedução (art. 217), rapto consensual (art. 220) e adultério (240), todos previstos no Código Penal brasileiro até serem revogados pela Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005.

No endosso dessa argumentação pode-se acrescentar a progressiva adoção de penas alternativas, consagrada na legislação dos juizados especiais criminais que, desde 1995, prevê a aplicação de penas alternativas à restritiva de liberdade, estimulando a reparação do dano como medida pacificadora no âmbito das infrações de menor potencial ofensivo – as Leis nº 9.099/95 e 10.259/01 disciplinam, respectivamente, os juizados especiais cíveis e criminais no âmbito estadual e federal.

Por outro lado, contudo, a propalada doutrina não resiste às contradições inerentes ao funcionamento do Sistema Penal em vigor. Para Alessandro Baratta, o discurso de um Direito Penal mínimo, fragmentário – em que se privilegia a tutela de bens jurídicos fundamentais –, é também falacioso, pois em sua avaliação:

O que se refere à seleção dos bens protegidos e dos comportamentos lesivos, o "caráter fragmentário" do direito penal perde a ingênua justificação baseada sobre a natureza da das coisas ou sobre a idoneidade técnica de certas matérias, e não de outras, para ser objeto de controle penal. Estas justificações são uma ideologia que cobre o fato de que o direito penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes, e a imunizar do processo de criminalização comportamentos sociais danosos típicos dos indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para formas de desvio típicas das classes subalternas. [66]

Em um modelo jurídico constitucional que contempla um robusto elenco de direitos e garantias fundamentais do homem, a legitimação do Direito Penal mínimo passa não somente pela busca da eficiência do sistema repressivo com a redução das penas restritivas de liberdade, mas também pelo exame das reais causas da criminalidade.

Contudo, o que se verifica, em verdade, é um Direito Penal estruturalmente seletivo, autêntico instrumento de manutenção do status quo.

4.3 O bem jurídico tutelado. A tutela penal de direitos difusos

Entrementes, cumpre indagar que bem é tutelado nas condutas lesivas à ordem tributária. Adianta-se que tal identificação não é tarefa das mais simples, haja vista que as complicações se iniciam na própria definição de "bem jurídico".

No escólio de Luiz Regis Prado:

O bem jurídico, como bem do direito, conjuga o individual e o social (de natureza material ou espiritual) e possui suficiente importância para manter a livre convivência social. O conceito material de bem jurídico reside na realidade ou experiência social, sobre a qual incidem juízos de valor, primeiro do constituinte, depois do legislador ordinário. Trata-se de um conceito necessariamente valorado e relativo, isto é, válido para determinado sistema social e em um dado momento histórico-cultural. [67]

Aludindo à confusão corrente na doutrina pátria, este autor faz distinção entre bem jurídico e objeto da ação delituosa. Assim pontifica:

Objeto da ação vem a ser o elemento típico sobre o qual incide o comportamento punível do sujeito ativo da infração penal. Trata-se do objeto real (da experiência) atingindo diretamente pelo atuar do agente. É a concreta realidade empírica a que se refere a conduta típica. De outro lado, o bem jurídico vem a ser um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual reputado essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem e, por isso, jurídico-penalmente protegido. [68]

Conforme lições da Dogmática, independente do conteúdo que se pretenda relacionar ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal, certo é que seus fundamentos e o grau de proteção que se lhe reserva deverão ser sopesados à luz da Constituição.

Roberto dos Santos Ferreira comenta:

No Estado Democrático e Social de Direito, não está o legislador livre para incriminar qualquer conduta humana, mas somente aquela que, revestida de certa importância, lesione ou exponha a perigo um bem jurídico (valor ou interesse) consagrado na Constituição como digno de proteção, em razão de sua importância para o indivíduo e para a sociedade, a fim de assegurar o livre desenvolvimento da personalidade, em um ambiente de respeito à dignidade humana, sustentado na trilogia: liberdade, igualdade e fraternidade. [69]

No dizer de Paulo de Souza Queiroz,

O ilícito, latente ou manifesto, preexiste à sistematização do direito penal, pois tal já é, antes, objeto do direito civil, processual, tributário etc., mas sobretudo objeto do direito constitucional, porque toda a ilicitude nasce (e morre), originariamente, na Constituição Federal e só derivadamente na ordem infraconstitucional. [70]

Diz-se, outrossim, que a incriminação das condutas humanas encontra critério determinante na relevância do bem jurídico, nela atuando os princípios da subsidiariedade e fragmentariedade (corolários da intervenção mínima) na orientação do legislador infraconstitucional quando da definição de novos tipos penais.

Percebe-se também que a intensa dinâmica das relações sociais e econômicas vem provocando sensível alteração nos rumos da política criminal, de modo que o legislador penal cada vez mais opta pela incriminação da ofensa na categoria dos bens difusos, a exemplo do que ocorre na ordem econômica e tributária, na legislação pertinente ao meio-ambiente etc.

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Na opinião de Maurício Kalache:

Os novos tempos apontaram outras realidades, sociais, que passaram a reclamar a atenção do Estado e, em particular, do Direito Penal. É o que se deu em torno dos fenômenos econômicos, onde certas relações repercutem não só na vida dos indivíduos diretamente vinculados, mas a todo o conjunto da sociedade. [71]

Sem mencionar a própria manutenção do pacto federativo, no que pertine ao conteúdo do bem jurídico sob exame, tem-se que a ordem tributária contemplaria desde a manutenção da boa-fé e da honestidade na relação entre o contribuinte e o fisco, passando pela higidez da livre concorrência de mercado, pela efetivação do princípio da capacidade contributiva e até pela imperiosa necessidade de se garantir a arrecadação das receitas à Fazenda Pública.

Em suma, nos crimes contra a ordem tributária, o bem jurídico, direta ou imediatamente, está plasmado no interesse da Fazenda Pública, não se olvidando, contudo, que a ordem tributária, indiretamente, implica o próprio funcionamento do sistema tributário nacional, cujos princípios e normas de ordem pública, são ditados pela Constituição da República.

Outro aspecto a destacar é que, consoante classificação sugerida por alguns autores, nos crimes econômicos ou fiscais, o bem jurídico merecedor da tutela penal tem caráter difuso, transindividual.

Roberto dos Santos Ferreira assevera [72]que "os crimes contra a ordem tributária, definidos na Lei 8.137/90, materializam a hipótese de autêntica tutela penal de interesse difuso, subjacente ao Sistema Tributário Nacional, de conformação constitucional, de caráter indivisível e transindividual."

Ao contrário do que ocorre nos delitos cometidos em desfavor de bens individuais - em que se consegue mais facilmente identificar o autor e a vítima do ilícito, mensurando-se de imediato os danos resultantes –, em geral, é diminuta a percepção que se tem dos danos causados ao Estado por ações criminosas que visam à subtração de tributos devidos.

Nada obstante, a rarefeita preocupação com a lesão aos bens difusos, no caso a ordem tributária, as conseqüências dela advindas são muito mais deletárias para toda a sociedade, se comparadas às resultantes do cometimento de crimes patrimoniais comuns.

A propósito, este tema já foi preliminarmente abordado, pois serve de base ao desenvolvimento e aferição das premissas adotadas objetivando uma adequada resposta ao problema proposto na presente pesquisa.

4.4 Sanções administrativas x sanções criminais

No âmbito da Dogmática, admite-se que a profusão de normas incriminadoras de certas condutas, perfeitamente passíveis de serem excluídas do campo de incidência de sanção criminal, acaba por vulgarizar o Direito Penal, fragilizando sua atuação nos casos mais graves de ofensa a bens jurídicos fundamentais.

Assim, outra instigante questão que se coloca diz respeito aos limites para aplicação de sanções penais e administrativas. Ressalte-se que não são poucas as vozes que defendem maior atuação do poder sancionador administrativo, em detrimento da incriminação por cometimento de infrações fiscais.

Em verdade, as diferenças entre o ilícito penal e o ilícito não penal têm natureza quantitativa (e não ontológica); ou seja, o rigor das sanções guarda relação com a política criminal vigente em determinada época e lugar.

Heloisa Estellita Salomão estabelece criteriosa distinção entre merecimento e necessidade da pena. Em suas palavras:

O merecimento da pena, ou a dignidade penal, envolve a consideração de um bem ou valor constitucional como condição essencial à garantia e implementação da dignidade e dos direitos fundamentais da pessoa humana; somente um bem ou valor dessa categoria, em nosso entender, pode ser considerado bem jurídico-penal; a necessidade de pena, ou carência de tutela penal, por sua vez, implica a comprovação da insuficiência de outras espécies de sanção na tutela do bem jurídico e a avaliação da danosidade social da conduta. [73]

A discussão não se limita, porém, apenas ao merecimento da pena. Há que se falar da necessidade de cominação de sanções criminais aos infratores da legislação tributária.

Para aqueles que defendem a aplicação de sanções criminais aos sonegadores de tributos, a ordem tributária não estaria satisfatoriamente preservada por normas administrativas do Direito Tributário que prevêem, em geral, a aplicação de penalidades pecuniárias, restrições fiscais, regimes especiais de fiscalização, etc.

Tampouco, segundo a doutrina, haveria desejável consciência ética ou cívica na reprovação das práticas delituosas que importem sonegação fiscal, ao contrário dos delitos cometidos contra a vida ou contra o patrimônio individual.

Com freqüência, afirma-se que a excessiva carga tributária, a legislação complexa e a irregular aplicação dos recursos arrecadados pelo Estado, entre outros, justificariam a falta do cumprimento voluntário das obrigações tributárias por parte dos contribuintes.

Aliado a esse discurso triunfa também o debate relacionado aos sinais visíveis de esgotamento do Estado, no tocante à execução de penas privativas de liberdade.

As freqüentes rebeliões nos presídios de todas as regiões do país, as fugas ou tentativas de fuga desses estabelecimentos apontam para inúmeras causas, desde a precariedade das instalações físicas desses presídios, passando pela conduta irregular e ilegal de agentes do Estado, até a existência de falhas jurídicas no processo criminal e na execução da pena.

A superlotação [74] dos estabelecimentos prisionais, a violação de direitos humanos fundamentais, a inadequada aplicação dos benefícios previstos na legislação, entre outros, são alguns dos fatores que revelam o quadro caótico do Sistema Penal e desafiam o Poder Público e a ciência jurídica. Entretanto, não se deve desprezar a idéia de que ultimamente o cometimento de crimes tributários aumentou de forma considerável. Não raro, essas práticas estão associadas a outras igualmente delituosas, tais como formação de bando ou quadrilha; crime contra a ordem econômica; lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores de dinheiro; corrupção ativa e passiva; roubo de cargas; "tráfico de drogas", contrabando etc.

Enfim, para aqueles que defendem a incriminação, evoca-se a relevância do bem jurídico tutelado com valor consagrado na Constituição, visto que aquele representa não somente os interesses do erário, mas a própria higidez da ordem tributária, que se trata de bem difuso, cuja tutela penal vem reforçar a atuação do Estado para consecução dos objetivos delineados no art. 3º da Carta Política.

Com a edição da Lei nº. 8.137/90, resolveu o legislador penal não simplesmente prevenir e reprimir a sonegação fiscal, mas salvaguardar o sistema tributário que, em sua essência, representa o interesse público, quer na garantia dos recursos devidos ao Estado, quer na promoção da livre concorrência e da justiça fiscal, segundo normas e princípios da Constituição Federal de 1988.

De acordo com Roberto dos Santos Ferreira:

As condutas descritas na Lei 8.137/90, assim, longe de constituírem meras infrações fiscais patrimoniais, consubstanciam violação à normalidade da ordem tributária, com reflexos em toda a coletividade, dada a natureza do interesse juridicamente tutelado, porquanto a prática de qualquer ação típica e ilícita contra a ordem tributária provoca um dano ou lesão que se difunde, necessária e inexoravelmente, por toda a sociedade. [75]

Em meio a dificuldades na persecução criminal e a na imposição da pena, torna-se razoável, contudo, nos crimes contra a ordem tributária, sustentar-se a necessidade de incriminação de tais condutas.

Vale salientar que, na lista desses obstáculos estruturais figura a legislação casuística, a exemplo da norma do art. 34 da Lei nº. 9.249/95, que prevê o pagamento do tributo como causa de extinção da punibilidade nos crimes definidos pela Lei nº. 8.137/90.

Questiona-se a existência dessa modalidade de extinção punitiva, tendo em vista, entre outras razões, a possível ofensa ao princípio da igualdade - já que inexiste hipótese análoga aplicável aos delitos praticados contra o patrimônio individual - e a vulgarização do Direito Penal, pois os fins da pena estariam sendo desvirtuados. Tal modalidade de extinção, na verdade, seria usada unicamente, como instrumento de cobrança de tributo.

Tendo em mira o pensamento emanado da Criminologia Crítica, admite-se que esse dispositivo, mais que revelar medida casuística do legislador penal, constitui autêntica manifestação da seletividade do Sistema Penal, de acordo com o qual, via de regra, as agruras do cárcere são reservadas a uma "clientela habitual".

4.5 A extinção de punibilidade nos crimes fiscais

Em nosso ordenamento jurídico, várias causas justificam a extinção da punibilidade. Nesta monografia, será enfatizada a hipótese do pagamento do tributo como causa excludente da punibilidade nos crimes fiscais, à luz das considerações feitas pela Criminologia Crítica.

Para um melhor entendimento, faz-se necessário conhecer a natureza da extinção da punibilidade, sua finalidade, os reveses legislativos que envolvem a medida legal sob exame e, sobretudo, as inconsistências encontradas na opção feita pelo legislador no tratamento penal dos ilícitos fiscais.

4.5.1 Da extinção da punibilidade

Na teoria do crime, albergada pelo ordenamento jurídico-penal pátrio, a punibilidade não integra o conceito de crime.

Para expressivo segmento da doutrina, a punibilidade é pressuposto da pena, significando a possibilidade de atuação do poder punitivo do Estado em um caso concreto.

Sob o aspecto analítico ou dogmático, Luiz Regis Prado [76] expõe que o "delito vem a ser toda ação ou omissão típica, ilícita ou antijurídica e culpável."

No tocante à possibilidade de integração da punibilidade ao conceito de crime, há dissenso, pois não são poucos aqueles que defendem idéia contrária, ou seja, o delito inexiste quando não for possível a aplicação da pena. Em outras palavras, para determinado setor do pensamento dogmático, além de típico, antijurídico e culpável, o crime seria fato punível.

Corroborando com a tese de que o conceito de crime não comporta a noção de punibilidade, Sérgio Rosenthal afirma:

Em verdade, a única hipótese, dentre as causas de extinção da punibilidade previstas no Código Penal brasileiro, em que se poderia, em tese, argumentar que o fato deixa de constituir um delito, é exatamente aquela que prevê, expressamente, a retroatividade de lei que posteriormente deixe de considerar o fato como criminoso (inciso III do dispositivo citado). Porém, é evidente, nesse caso, o reflexo sobre a tipicidade, esta sim, um dos elementos do crime. [77]

Com a ocorrência da infração penal, o poder punitivo do Estado que é abstrato, potencial, torna-se concreto, nada obstante existir esse direito (e dever) de aplicar a sanção criminal, alguns atos ou fatos, por decisão de política criminal (ou não), são capazes de fulminar a pretensão punitiva estatal ou frustrar a condenação.

Tais atos ou fatos constituem as denominadas causas ou hipóteses de extinção de punibilidade.

Ainda segundo Regis Prado [78], "as causas de extinção da punibilidade implicam renúncia, pelo Estado, do exercício do direito de punir, seja pela não-imposição de uma pena, seja pela não-execução ou interrupção do cumprimento daquela já aplicada."

Entre as várias classificações das causas extintivas da punibilidade, Sérgio Rosenthal [79] aduz aquela que se refere à justificativa que respaldam e fundamentam esse benefício, a saber: a impossibilidade fática, a clemência soberana, a desídia do dominus litis e a reparação do dano.

O art. 107 do Código Penal brasileiro estabelece, em rol não taxativo, as causas de extinção da punibilidade. Apesar de não figurar expressamente entre estas, a justificativa da reparação do dano se faz presente em outras normas do Codex, assim como na legislação penal especial. Contudo, no mencionado dispositivo, entende-se que a retratação do agente, nos casos em que a lei admitir (inciso VI), é um exemplo de causa extintiva de punibilidade de efeito reparador. [80]

4.5.2 A reparação do dano: seus efeitos e formas no Direito Penal

Convém mencionar que a reparação do dano, vista como causa primeira na extinção ou na redução da resposta penal, em boa parte, vem justificada em face dos graves e crônicos problemas que afligem o sistema tradicional de persecução penal, mormente no que refere à aplicação de penas restritivas de liberdade.

Entretanto, com alguma freqüência, casos de grande repercussão na mídia tendem a direcionar as atenções para o recrudescimento na cominação dessas penas, a exemplo do que ocorre com a repressão dos chamados "crimes hediondos" (Lei n° 8.072/90).

A justificativa da extinção de punibilidade pela reparação do dano, embora não esteja expressamente arrolada no art. 107 do Código Penal, faz-se presente sob formas e efeitos variados.

Em algumas situações, por exemplo, a reparação do dano tem o condão de afastar a punibilidade, em outras, implica redução da pena, ou simplesmente influencia na aplicação da pena ou no regime de cumprimento desta.

Na legislação codificada, a única hipótese em que a reparação do dano determina a extinção de punibilidade é aquela que se refere ao peculato culposo, tipificado no art. 312, §2º.

De acordo com a norma prevista no parágrafo terceiro do art. 312, "a reparação do dano, se precede à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta."

Coexistem, portanto, dois efeitos da reparação do dano, separados apenas pela fixação de um marco temporal, isto é, se aquela ocorre antes ou depois da sentença irrecorrível. No primeiro caso, o efeito é a extinção da punibilidade; no segundo, concede-se ao agente apenas a possibilidade de redução da reprimenda.

Em outros dispositivos insertos na Lei Penal Substantiva, a reparação do dano enseja somente a redução da pena, quando configurado o arrependimento posterior.

A norma prevista no art. 16 do Código Repressivo estabelece que "nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços)."

Comentando o instituto do arrependimento posterior, Zaffaroni acrescenta:

Para o reconhecimento do privilégio, que constitui uma "ponte de prata" outorgada pela lei, a reparação deve ser completa, pessoa e voluntária. A reparação completa deve abranger, além daquilo que a vítima perdeu, também o que deixou de lucrar, incluindo-se, pois, os prejuízos efetivos e os lucros cessantes [...] [81]

Anota-se que o regime de cumprimento da pena é também influenciado pela reparação do dano, quando esta, no art. 33, §4º, também da legislação codificada, representa condição para a progressão do regime, nos crimes contra a administração pública.

Além desses, frise-se, outros dispositivos legais incorporam o instituto da reparação do dano, atribuindo-lhe diversos efeitos, tanto na lei codificada, quanto em leis esparsas.

Em monografia dedicada ao tema, Sergio Rosenthal assevera que:

[...] um modelo de justiça criminal que seja resolutivo, vale dizer, que resolva o conflito oferecendo ao infrator, à vítima e à coletividade uma alternativa social construtiva. Com efeito, embora detenha o poder de punir, o Estado não deve intervir nos conflitos gerados pela prática de uma infração penal exclusivamente com essa finalidade, mas primordialmente, visando promover a paz social, pelo que, nos casos em que a não-punição decorrente da reparação se mostre a "solução" mais adequada para o conflito, não resta dúvida de que este deverá ser o caminho adotado pelo legislador penal.

No caso dos crimes contra a ordem tributária, a lei confere à reparação do dano o poder de afastar a punibilidade do agente, o que se dá com o pagamento do tributo.

Dispõe o art. 34 da Lei nº. 9.249, de 26 de dezembro de 1995:

Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.

Essa disposição legal alcança inclusive os inquéritos e processos em curso desde que não recebida a denúncia pelo juiz (art. 34 da Lei nº. 9.249/95 c/c art. 83, par. único da Lei nº. 9.430/96).

Cabe registro o fato de que a disciplina mais benéfica trazida pelo instituto da reparação do dano aos crimes de natureza fiscal não se faz presente na seara de delitos contra o patrimônio individual.

Aliás, no que diz respeito à causa extintiva da punibilidade, à exceção dos casos que comportam o arrependimento posterior (art. 16 do Código Penal), há apenas uma menção à disciplina diferenciada a esses delitos, no que diz respeito à causa extintiva da punibilidade de efeito reparador. Trata-se de interpretação contrario sensu do enunciado da Súmula 554 do Supremo Tribunal Federal, relativamente ao crime de estelionato (art. 171,§2º,V do Código Penal).

Segundo o entendimento sumulado "o pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta o prosseguimento da ação penal."

Assim, a doutrina tem defendido que o pagamento do cheque emitido sem provisão de fundos, antes do recebimento da denúncia, obsta a pretensão punitiva do Estado.

4.5.3 Lei n° 9.249/95: ofensa à isonomia e anulação dos efeitos da pena

Ainda que se queira guardar distância dos fundamentos críticos da Criminologia, que muito nos iluminam na compreensão das decisões adotadas pelo legislador penal, as inconsistências da legislação atinente aos crimes fiscais podem ser identificadas à luz de investigação eminentemente dogmática.

As críticas envolvem desde a ofensa ao princípio da igualdade - já que inexiste hipótese legal análoga aplicável aos delitos praticados contra o patrimônio individual - até a vulgarização do Direito Penal, pois este estaria servindo ao Estado unicamente na "cobrança de tributos", anulando os fins da sanção penal.

Esta última, precisamente, diz respeito aos motivos que levam o legislador penal a incorrer em grave ofensa aos postulados da teoria da pena, haja vista que o tratamento atual dispensado aos crimes tributários vem anular a finalidade de prevenção geral da pena e até mesmo a finalidade preventiva especial.

De acordo com Rodrigo Sanchez Ríos:

Da forma como está regulamentada a extinção da punibilidade no nosso sistema normativo, prevalece o fundamento político-fiscal sobre os critérios jurídico-penais vinculados aos fins da pena. Na prática, torna-se mais vantajoso esperar ser denunciado pelo Ministério Público para então realizar o pagamento, pois basta efetuá-lo para obter este privilégio. In casu, o fim da prevenção geral é desrespeitado e, perante a sociedade, torna-se uma "vantagem" direcionada para determinado estamento social, questionando a própria reafirmação social da norma penal. Idêntica situação ocorre com a prevenção especial, uma vez que não se comprove, em nenhum momento, o retorno à legalidade quando o comportamento reparador é feito coativamente e longe dos moldes exigidos para uma conduta voluntária positiva posterior ao delito. [82]

Ademais, ante a previsão legal diferenciada outorgada aos crimes fiscais, cabe a seguinte indagação: se o objetivo da Política Criminal tem sido o de estimular a reparação do dano como meio de pacificação social, satisfazendo tanto aos interesses da vítima quanto aos do agressor de um bem jurídico penal, na medida em que impõe a este punição menos severa, aliviando assim a intervenção estatal, por que não se estendem as benesses legais, com essa mesma amplitude, àqueles que venham a incidir nos delitos patrimoniais comuns?

Ao revés, o que se verifica é a tradicional e implacável repressão (seletiva) do Direito Penal direcionada aos delitos contra o patrimônio individual, fato para o qual chama atenção Alessandro Baratta quando afirma:

A seleção criminalizadora ocorre já mediante a diversa formulação técnica dos tipos penais e a espécie de conexão que eles determinam com o mecanismo das agravantes e atenuantes (é difícil, como se sabe, que se realize um furto não "agravado"). [83] (grifo no original).

Ora, sabe-se que conferir tratamento legal diferente a pessoas que estejam em igual situação constitui ofensa ao princípio constitucional da isonomia.

Acresce-se a isso o fato de que, quando o assunto se refere à definição de critérios que justificam a discriminação legal, é recomendável consultar as lições de Celso Antônio Bandeira de Melo.

Em acurada análise sobre o conteúdo jurídico do princípio da igualdade, aquele autor indica certos parâmetros que tornam a discriminação admissível pela Constituição. Para ele é necessário:

1) que a discriminação não atinja de modo atual e absoluto um só indivíduo; 2) que o fator de desigualdade consista num traço diferencial residente nas pessoas ou situações, vale dizer que não lhes seja alheio; 3) que exista um nexo lógico entre o fator de discrímen e a discriminação legal estabelecida em razão dele; e 4) que, no caso em concreto, tal vínculo de correlação seja pertinente em função dos interesses constitucionais protegidos, visando ao bem público, à luz do texto constitucional. [84]

Considerando-se seja louvável e até desejável que o legislador penal conceda, em nome de um Direito Penal mínimo, maior alcance ao instituto da reparação do dano no ordenamento penal pátrio, que o faça, porém, tanto no âmbito dos crimes de natureza fiscal quanto no dos crimes ofensivos ao patrimônio individual.

4.5.4 Reveses legislativos

Conforme visto na seção anterior, na legislação codificada nacional, a reparação do dano por ocasião do cometimento do delito, assume efeitos diversos.

Adiantou-se que, no tocante aos crimes fiscais definidos na Lei nº. 8.137/90, existe previsão legal de extinção da punibilidade pela reparação do dano; no caso, pelo pagamento do tributo, previsão que destoa da regra geral prevista no ordenamento penal em vigor, no que concerne às ofensas perpetradas contra o patrimônio individual.

Ocorre que, nos delitos contra bens individuais – furto, por exemplo –, a depender das circunstâncias, ter-se-á, no máximo, a diminuição da pena (configurado o arrependimento posterior), ou a substituição desta.

Na exposição de motivos nº. 088, de 28 de março de 1990, do então Projeto de Lei nº. 4.788, de 1990, constava a seguinte justificação atinente à previsão da medida sob comento, que se confronta com a disciplina da legislação então vigente, qual seja a Lei nº. 4.729/65:

8. Dispondo sobre a extinção da punibilidade, estabelece que a mesma somente terá lugar quando o agente promover espontaneamente o pagamento do tributo ou contribuição, inclusive adicional, antes do início da ação fiscal. Essa disposição põe fim à situação até agora vigente, que consistia em verdadeiro estímulo à prática de atos danosos ao Erário Público, eis que ocorria extinção da punibilidade quando o agente, já tendo sido iniciada a ação fiscal, recolhia o crédito tributário, antes da decisão administrativa de primeira instância. Em alguns casos, ao delinqüente era permitido realizar o pagamento até antes do início da ação penal, para beneficiar-se com a extinção da punibilidade. [85]

Percebe-se que na justificativa do então projeto da Lei nº 8.137/90, havia certa preocupação do legislador com a eficácia da lei, tanto é que resolvera premiar o contribuinte apenas quando este, "espontaneamente", resolvesse quitar sua dívida tributária com o Estado.

Por isso mesmo é que são dignos de nota os reveses legislativos relacionados à incriminação das infrações fiscais, que poderiam ser justificados tanto pelo lobby, sobretudo, o das classes empresariais, quanto pela necessidade de maior arrecadação por parte do Estado.

Originalmente, a Lei nº. 8.137/90 previa, em seu art. 14, a mencionada hipótese de extinção de punibilidade, nos seguintes termos, verbis: "Art. 14. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1º a 3º, quando o agente promover espontaneamente o pagamento do tributo ou contribuição, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia."

Logo em seguida, porém, este dispositivo foi fustigado com a edição da Lei nº. 8.383, de 30 de dezembro de 1991, que expressamente o revogou.

Assinala-se que o texto normativo hoje vigente, acabou restabelecido com a previsão do art. 34 da Lei nº. 9.249/95.

Cotejando-o com aquele constante do projeto de lei original, o texto atual traz logo uma sutil diferença, qual seja, exatamente a supressão do termo "espontaneamente", entendendo-se a partir de então que o legislador contemplou a "voluntariedade" do contribuinte faltoso.

Isto significa dizer que, com a medida legal em vigor, não se exige mais a espontaneidade do contribuinte no sentido de saldar sua dívida tributária, podendo o mesmo tranqüilamente fazê-lo, ainda que já esteja, por exemplo, sob procedimento de fiscalização, uma ocorrência muito comum.

Ademais, verifica-se dos textos legais aqui transcritos que é latente a imprecisão e vagueza do legislador ao disciplinar essa matéria, pois em várias passagens parece confundir ação penal com ação fiscal, apegando-se tão-somente a marcos temporais para determinar a aplicação do benefício penal.

4.5.5 A Jurisprudência

No início deste trabalho, quando se escreveu acerca das idéias trazidas pela Criminologia Crítica, afirmou-se que o Sistema Penal era essencialmente seletivo. Agora, deve-se acrescentar que os juízes exercem função vital na legitimação desse mesmo Sistema.

De acordo com o escólio de Vera Andrade:

[...] tem-se demonstrado que, para além de uma eficácia seletiva conformadora do conteúdo normativo da lei (cabendo-lhe suprir suas vaguezas e ambigüidades), o second code judicial tem uma eficácia seletiva conformadora, reelaboradora e recriadora dos próprios fatos a processar e a sancionar como crimes. Isto significa que a eficácia dos mecanismos de seleção se manifesta na atividade jurisdicional ao longo da multiplicidade de decisões que incumbem aos juízes e tribunais. [86]

Para Márcia Dometila Lima de Carvalho, há um casuístico "desinteresse" na repressão da criminalidade econômica, aí incluídos os delitos fiscais. São suas palavras:

[...] o Judiciário, com uma formação apropriada para o combate à criminalidade clássica, não vem revelando uma sensibilidade adequada para a captação das sutilezas inerentes à criminalidade econômica. Mostra, ao contrário, um apego exagerado a uma certa interpretação liberal, não condizente com a nova realidade do Direito, emergente de um Estado de Justiça Social, concepção atual do Estado de Direito. [87]

Nada obstante, a interpretação pretoriana acerca dos delitos fiscais merecer um acurado estudo, não se poderia deixar de comentá-la, cabendo inclusive a reprodução de alguns julgados emanados dos tribunais superiores, em particular da Suprema Corte, assim como do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão.

Encontram-se à sociedade, julgados que anulam por completo a finalidade penal das normas sancionatórias contidas na Lei n° 8. 137/90.

Com fulcro, sobretudo, nas disposições das Leis nº. 9.964/00 e 10.684/03 (instituem programas de recuperação fiscal relacionados a débitos tributários de pessoas jurídicas no âmbito da União), registre-se que o Supremo Tribunal Federal vem se posicionando pela extinção da punibilidade nos crimes fiscais mesmo que a quitação do tributo devido ocorra "após" o recebimento da denúncia.

Foi exatamente esse o entendimento firmado no acórdão paradigma referente ao julgamento do HC n 81929 RJ, que recebeu a seguinte ementa:

AÇÃO PENAL. Crime tributário. Tributo. Pagamento após o recebimento da denúncia. Extinção da punibilidade. Decretação. HC concedido de ofício para tal efeito. Aplicação retroativa do art. 9º da Lei federal nº 10.684/03, cc. art. 5º, XL, da CF, e art. 61 do CPP. O pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário. (Relator Min. Sepúlveda Pertence, Relator p/ acórdão Min. Cezar Peluso. Data julgamento: 16/12/2003. Primeira Turma. Publicação: DJ 27-02-2004 PP-00027).

Como se sabe, a lei estabelece que o pagamento do tributo, desde que realizado antes do recebimento da denúncia, enseja a extinção da punibilidade.

De técnica legislativa duvidosa, esses diplomas legais, reunindo normas tributárias e penais, inovam também ao prever a suspensão da ação penal enquanto o contribuinte faltoso se mantiver adimplente no parcelamento dos débitos fiscais. Neste sentido, transcreve-se a ementa do acórdão relativo ao julgamento do HC n 86465 / ES, verbis:

HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PARCELAMENTO DO DÉBITO. SUSPENSÃO DA AÇÃO PENAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. Nos termos do art. 9º da Lei n° 10.684/2003, o parcelamento do crédito tributário implica, automaticamente, a suspensão da sua inexigibilidade. Assim, se o crédito não é exigível, não há de se falar em sonegação ou redução de tributo, o que impede, por via de conseqüência, a persecução penal. Precedentes. 2. Existência, nos autos, de cópia de ofício da Receita Federal que informa estarem os débitos do paciente incluídos no Programa de Parcelamento Especial (PAES), bem como de documentos que comprovam estar o paciente em dia com suas obrigações. 3. Embora tramite, na Corte, ação direta de inconstitucionalidade contra o art. 9º da Lei n° 10.684/03, pesa a favor deste dispositivo presunção de constitucionalidade, razão pela qual ele deve ser aplicado até que sobrevenha a eventual declaração de inconstitucionalidade. 4. Ordem concedida para que a ação penal de origem seja suspensa, até que ocorra a quitação integral do débito, quando, então, deverá ser declarada extinta a punibilidade do paciente. (Relator Min. Joaquim Barbosa. Julgamento 06/02/2007 Segunda Turma Publicação DJ 29-06-2007 pp-00143 Ement vol.-02282-06 pp-01072).

No âmbito do Estado do Maranhão, alguns julgados expressam muito bem essa tendência da jurisprudência dos tribunais superiores do país, no sentido de obstar o processamento dos crimes fiscais, evocando-se a propalada "intervenção mínima" do Direito Penal e demais cláusulas garantistas. Vejam-se os seguintes arestos cujas ementas assim foram lavradas:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. CRIME DE QUADRILHA OU BANDO. DENÚNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA. I. O Estado democrático de direito reserva a intervenção da sanção jurídico-penal, somente quando não existam outros remédios jurídicos, ou seja, quando não bastarem as sanções jurídicas do direito privado. II. O objetivo do legislador, ao acenar com a possibilidade de suspensão da pretensão punitiva referente aos crimes previstos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/90 com o Programa de Recuperação Fiscal Maranhense - REFIM, instituído pela Lei Estadual nº 7.938/2003, é além o de garantir receitas ao erário, o de não privar o contribuinte da possibilidade de continuar produzindo novos recolhimentos. III. Com a adesão da empresa ao REFIM, desaparece a justa causa para o oferecimento da denúncia. IV. A finalidade lícita da empresa da qual os pacientes são sócios, em nada se coaduna com o tipo previsto no artigo 288 do Código Penal. V. Ordem concedida. (TJ-MA HC n° 287212003 Relator Mario Lima Reis Primeira Câmara Criminal Data Julgamento 19/12/03 DJE 19/4/2005).

Relativamente ao julgado acima transcrito, observa-se que houve a mera adesão do contribuinte ao então regime especial de parcelamento de débitos fiscais do ICMS, o que já foi suficiente para erigir o posicionamento no sentido de frustrar a ação penal, no nascedouro, ou seja, afastando-se uma de suas condições.

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME TRIBUTÁRIO. DENÚNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. CONFIGURAÇÃO. TRANCAMENTO. POSSIBILIDADE. I - Ainda que em se tratando de crime de natureza tributária, em se vislumbrando, cristalinamente, por parte do agente, a boa-fé e vontade de cumprir com a obrigação, consubstanciada em propostas de compensação de débitos devidamente analisada e aprovada pelo Órgão de Representação Jurídica do Estado, a revelar, assim, nítida iniciativa de, a situação de devedor, regularizar, coercitivo por demais e de descabida vexatória faz-se o instauro da instância penal. II - Ainda que de origem cogentes, o Direito Penal e o Direito Tributário, nítida distinção, em suas aplicações há que ser considerada, haja vista o primeiro, visar a proteção do bem jurídico voltado para à vida, o patrimônio e à integridade física e, este o tão-só assegurar a punibilidade por transgressão a normas típicas, quando por outro meio, que não via instauração penal, exerça o poder de reparo. III - Ordem concedida. (TJ-MA HC 195922003 Relator Antonio Fernando Bayma Araújo Paciente EMANUEL CARACAS DOS SANTOS Primeira Câmara Criminal Data julgamento 04/11/2003 DJE 13/11/2003.)

Assinala-se, neste último julgado, que a interpretação "minimalista" foi levada ao extremo, haja vista que a ação penal foi fustigada pela simples apresentação de propostas feitas pelo contribuinte, objetivando compensar os débitos fiscais que contraíra perante a Fazenda Pública do Estado, o que foi "aceito" pelo órgão colegiado daquela Corte como suficiente para afastar a justa causa para instauração da persecutio criminis.

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Sobre o autor
Nagib Abrahão Duailibe Neto

Mestrando no Programa de Mestrado e Doutorado em Ciência Jurídica da UNIVALI (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUAILIBE NETO, Nagib Abrahão. A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo.: Mínima intervenção do direito penal ou concretização de sua seletividade?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2296, 14 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13648. Acesso em: 24 nov. 2024.

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