CAPÍTULO V – PROCESSO LEGISLATIVO BRASILEIRO
Sumário. 5.1. Considerações iniciais; 5.2. Competências, atos normativos e iniciativa; 5.3. Formas de elaboração dos atos normativos; 5.4. O processo de revisão no processo legislativo.
5.1. Considerações iniciais
Neste capítulo adentraremos ao objeto central desse estudo que é o processo legislativo brasileiro, com especial ênfase na revisão dos projetos de lei entre as Casas legislativas. Analisaremos a forma estabelecida na Constituição Federal do procedimento a ser observado na tramitação dos projetos de lei e as atribuições da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Revisaremos os tipos de processo legislativos catalogados, bem como discutiremos as razões políticas e técnicas à adoção do nosso tipo de processo legislativo e, mormente a sua funcionalidade.
2. Competências, atos normativos e iniciativa
A Constituição Federal dispôs em seu Título IV, Capítulo I, as normas fundamentais referentes ao Poder Legislativo. Em seu art. 44 está expresso que o Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, composto por suas duas Casas: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
O art. 48 enumerou as atribuições do Congresso Nacional cujas matérias contarão para ingressar na ordem jurídica com a sanção presidencial. As matérias ali previstas versam sobre várias assuntos, por exemplo: sistema tributário, fixação do efetivo das forças armadas, telecomunicações, emissão de moedas, entre outras.
No art. 49 foram dispostas as matérias que são exclusivas do Congresso Nacional. Nesse elenco não é necessário a participação presidencial para o aperfeiçoamento da norma jurídica. As matérias ali previstas dispõem sobre autorização do Presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz; a sustar atos do Poder Executivo, quando exorbite do poder regulamentar; julgar as contas do Presidente da República, etc.
À Câmara dos Deputados, no art. 51, foram relacionadas as seguintes matérias de sua alçada privativa: autorizar o processamento do Presidente da República, o Vice-Presidente e seus Ministros; tomar as contas do Presidente da República quando este não o fez no prazo constitucional; elaboração de seu regimento interno e sobre sua organização, funcionamento, serviços e assuntos correlatos e eleger membros ao Conselho da República.
Ao Senado Federal, art. 52, foram dispostas matérias em quatorze incisos, cujos conteúdos referem-se às questões ligadas à federação; questões ligadas à função jurisdicional, no caso de processo e julgamento do Presidente da República, Vice-Presidente e Ministros de Estado nos crimes de responsabilidade; questões ligadas às funções executivas, especialmente na aprovação de chefes de missão diplomática e outros temas.
Para materialização dessas competências, a Constituição Federal, em seu art. 59, previu as seguintes espécies normativas: i) emenda à Constituição; ii) leis complementares; iii) leis ordinárias; iv) leis delegadas; v) medidas provisórias; vi) decretos legislativos e; vii) resoluções.
Dependendo da natureza da matéria há o enquadramento do tipo normativo previsto no Texto constitucional. Assim, caso haja urgência e relevância em determinada matéria, o Poder Executivo, valendo-se desses requisitos, poderá editar medida provisória, nos termos do art. 62 da Constituição Federal.
Por outro lado, os atos que disponham sobre competência privativa da Câmara dos Deputados, cujos efeitos irradiam-se internamente, o ato normativo correspondente será o projeto de resolução.
Matérias de competência exclusiva da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional com efeitos externos, o ato normativo será o projeto de decreto legislativo.
À Lei delegada destinam-se às matérias reservadas do Poder Legislativo, as quais este Poder poderá delegar a regulação ao Poder Executivo. Contudo há restrições quanto às matérias objeto de delegação, não sendo permitido esse procedimento quando: versar sobre atos de competência exclusiva do Congresso Nacional; de competência privativa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal; de matérias de lei complementar, nem sobre organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e garantia de seus membros; nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais e planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos. Projeto de Lei Complementar ocorrerá quando a norma constitucional expressamente o preveja e os demais tramitarão como projeto de lei ordinária. A delegação dar-se-á por decreto legislativo.
Das espécies normativas, há regras explícitas quanto à iniciativa de sua apresentação ao Congresso Nacional
Pelo art. 60 as emendas constitucionais só poderão ser apresentadas por:
I – um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;
II – pelo Presidente da República;
III – de mais da metade das Assembléias Legislativas, manifestando, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
As leis complementares e ordinárias poderão ser apresentadas por qualquer membro, Comissão Permanente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional; pelo Presidente da República, pelo Supremo Tribunal Federal, Tribunais Superiores, Procurador-Geral da República e aos cidadão.
No campo da iniciativa, determinadas matérias só poderão ser iniciadas por determinado órgão ou autoridade pública. O art. 61 fixa as matérias que são reservadas, exclusivamente, ao Presidente da República, padecendo de inconstitucionalidade, por vício formal, qualquer iniciativa legislativa nas matérias reservadas a essa autoridade.
As matérias que digam respeito à organização, estruturação, funcionamento do Supremo Tribunal Federal, Tribunais Superiores, Procuradoria Geral da República são de competência privativa desses órgãos.
Aos cidadãos cabe a apresentação de qualquer projeto de lei ordinária ou complementar, dispondo sobre qualquer matéria que não esteja no campo privativo dos órgãos e autoridades aqui mencionados, obedecida a exigência de ser subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos dos eleitores de cada um deles, consoante exarado no art. 61, parágrafo 2º, da Constituição Federal.
Por fim, o art. 65 preceitua que o projeto de lei aprovado por uma das Casas será revisto pela outra, em um turno só de discussão e votação. Caso haja emenda ao projeto deverá retornar à Casa iniciadora. Havendo a rejeição pela Casa revisora, o projeto é arquivado. Em havendo a aprovação o projeto vai à sanção ou promulgação.
5.3. O processo de revisão no processo legislativo
Na história de nosso constitucionalismo, vimos que a técnica legislativa adotada foi a do sistema bicameral. Nessa técnica, o processo de revisão legislativa entre as Casas foi uma constante, sob dois argumentos fundamentais: i) que o trabalho revisado pelas Casas legislativas dão maior segurança jurídica à sociedade, significando um trabalho bem mais elaborado nos aspectos jurídicos, constitucionais e políticos; ii) o outro argumento, diz respeito ao papel desempenhado pelo Senado, por nessa Casa reunir membros mais experientes, contendo possíveis radicalismos da Câmara dos Deputados.
Primeiro, cabe assinalar, que as duas Casas não estão em igualdade do ponto de vista constitucional. Não obstante a afirmação da doutrina que praticamos o bicameralismo de equilíbrio, discordamos do entendimento de FERREIRA FILHO o qual afirma o papel secundário do Senado Federal:
"Destarte as Câmaras no processo legislativo brasileiro não estão em pé de igualdade. A vontade da primeira que apreciou o projeto prevalece, na medida em que se impõe até contra as emendas feitas pela outra, a revisora. Ora, isso na prática, repercute uma certa inferiorização do Senado, que é necessariamente a Câmara revisora em todos os projetos de iniciativa presidencial, hoje a maioria e as mais importantes".(81)
Criticamente a esse ponto de vista, nos alinhamos com a compreensão de BACKES, que assim expressou-se sobre o tema: "No entanto, não é verdade que o Senado seja "necessariamente a Câmara revisora em todos os projetos de iniciativa presidencial".(82) Nas Medidas Provisórias o Senado tem exatamente o mesmo poder que a Câmara.
Na mesma compreensão advertiu BASTOS que pode "ocorrer, todavia, que a Casa revisora não aprove o projeto de lei. Neste caso será ele arquivado".(83)
Sustentando suas razões, continuou:
"Tem-se discutido se por este sistema não estaria a Casa revisora tendo papel mais relevante que aquela que estudou e aprovou o projeto, visto que, entre a aprovação da primeira Casa Legislativa e a rejeição da segunda, prevalece a vontade desta em rejeitá-lo não daquela em aprová-lo".(84)
Com plena razão, advoga o ilustre constitucionalista, o papel relevante da Câmara revisora. Verificamos, em nosso processo legislativo, que os projetos de lei, sobretudo quando suscitados pelo Executivo iniciam-se pela Câmara dos Deputados, ficando ao Senado Federal com a prerrogativa de poder de arquivar todas os projetos ali iniciados.
Declinamos dados da produção legislativa mais recente, para melhor subsidiar a discussão. O Congresso, entre 1988 e 1994, aprovou-se 1259 leis - 514 tramitaram seqüencialmente, 745 em sessão conjunta. Das 514, 121 foram de deputados; 55 de senadores; 86 do Judiciário e 252 do Executivo. Das 459 que iniciaram na Câmara, o Senado modificou 18%.(85)
Fica evidenciado o papel preponderante do Senado Federal no processo de elaboração legislativa, colocando em posição de inferioridade a Câmara dos Deputados, máxime quando constatamos a origem dos projetos de lei de 1988 a 1994.
Não se sustenta também o argumento do aperfeiçoamento legislativo com a sistemática de revisão, pois tal procedimento tem rendido delongas à tramitação dos projetos de lei. É comum os projetos tramitarem anos e anos, renovando-se as legislaturas, sem que os projetos se convertam em lei, pela pletora dessa espécie de proposição estarem tramitando em ambas as Casas do Congresso Nacional.
Na prática, fica o trabalho do Poder Legislativo limitado a apreciar projetos de iniciativa do Poder Executivo, que detém primazia quanto a prazos em suas tramitações, ao passo que os projetos apresentados pelos membros do Congresso Nacional caminham lentamente.
Essa realidade não é só brasileira, mas problema comum a vários Poderes Legislativos do mundo afora, cuja maior conseqüência é o de provocar o avanço do Poder Executivo na interferência no processo legislativo, fazendo letra morta o princípio da separação dos Poderes.
Sintoma maior dessa disfunção é a urgência conferida aos projetos oriundos do Poder Executivo, os quais sob o regime de urgência têm prazo de quarenta e cinco dias para tramitar em cada uma das Casas. Havendo emendas pelo Senado Federal, a Câmara tem mais dez dias para apreciá-las, que se não for atendido esse prazo, faz sobrestar todas as matérias em tramitação, conforme disciplina o art. 64 da Constituição Federal. A outra disfunção, talvez a maior que ameaça ruir o Estado democrático e de direito, diz respeito à edição, sem peias, de medidas provisórias.
Essas prerrogativas, conferidas ao Poder Executivo, são reforçadas sob o argumento da lentidão dos trabalhos legislativos. Com certeza, tais argumentos são em parte falaciosos, pois, na verdade, é mais um problema da nossa história institucional, mal estruturada e consolidada. A par disso, é inegável que, com as transformações da sociedade contemporânea, a sociedade exige respostas rápidas das instituições que manejam o poder político.
É claro que o Poder Legislativo deve ter um tempo mais longo para discutir determinados temas, ouvir a sociedade, aperfeiçoar os aspectos técnicos de um projeto de lei que inove a Ordem Jurídica. Todavia, deve-se buscar simplificar ao máximo a tramitação dos projetos de lei, assegurando a inovação do sistema jurídico com qualidade técnica e atendendo às aspirações políticas da coletividade.
Em atendimento a essas preocupações, na última Assembléia Nacional Constituinte foi prevista a simplificação da tramitação dos projetos de lei, dando poder conclusivo a determinadas matérias nas Comissões Permanentes, dispensando a apreciação em Plenário, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, nos termos do art. 58, § 2º, inciso I, da Carta Magna.
Mas a alteração foi insuficiente, demonstrando a necessidade de, fundamentalmente, eliminar-se a exigência de revisão dos projetos de lei, como disposto no art. 65, do Texto Maior.
Não há como continuar admitindo projetos que versem sobre qualquer tema, independente de ser de interesse do povo ou da federação, continuem sob o procedimento revisional das Casas do Congresso Nacional.
O aperfeiçoamento do projeto de lei, observando-se a boa técnica legislativa, a juridicidade, a legalidade, a regimentalidade e a constitucionalidade, será satisfeito pelo aparelhamento técnico das Consultorias Legislativas de ambas as Casas do Congresso Nacional, dotando-as de pessoal tecnicamente preparado e em quantidade suficiente para atender às demandas dos membros que as compõem.
Isso permitirá maior segurança técnica aos parlamentares, pois estarão assessorados por uma consultoria preparada, atualizada, com todos os recursos disponíveis a uma melhor elaboração e análise dos projetos de lei.
Já os argumentos políticos são os mais sensíveis, envolvendo interesses diversos. Primeiramente, cumpre salientar que os membros das duas Casas são eleitos por princípios eleitorais diferentes. Os senadores pelo princípio do voto majoritário, e os deputados, pelo princípio do voto proporcional.
Isso é assim porque a natureza de cada Casa é diversa. Enquanto a Câmara dos Deputados abriga representantes da povo, tendo ali as mais diferentes correntes do pensamento da sociedade, no Senado Federal os representante eleitos irão representar, essencialmente, os Estados-membros.
É aí que reside, a nosso juízo, um disfunção do nosso sistema constitucional. Com o sistema adotado, admitindo-se a revisão, permite-se ao cidadão eleger um representante para defender interesses bastante segmentados, ao passo que no Senado, sobretudo pelo princípio do voto majoritário e pela quantidade de senadores eleitos, na maior parte das vezes esses interesses não serão contemplados pelo representante senatorial eleito.
Teoricamente é possível ocorrer no processo de revisão legislativa, a anulação política da sociedade pela manifestação de determinado projeto de lei no Senado Federal, cuja representação é de outra natureza, comparada à da Câmara dos Deputados.
A fórmula por nós adotada, nos parece, apropriando-nos da expressão de SARTORI, tratar-se de um constitucionalismo mal concebido.
Outro argumento recorrente refere-se ao papel da experiência dos membros do Senado Federal. Ora, tal argumento de origem histórica conservadora, não pode mais prosperar numa sociedade dinâmica como a atual. Não que se deva desprezar a experiência dos mais velhos. Pelo contrário. Na verdade, a Câmara dos Deputados pela sua diversidade reúne velhos, jovens, cidadãos que já ocuparam os mais diversos cargos em todas as esferas de Poder, havendo ali uma riqueza de conhecimento se justificando o vetusto argumento da experiência do Senado, a qual deve ser largamente utilizada para solucionar os diários e tormentosos problemas que afetam a federação brasileira.
Portanto, mais crível, a nosso entender, que o Senado Federal se ocupe, exclusivamente, das funções relativas às questões federativas, demandando maior tempo e energia a solidificar, cada vez mais, o pacto federativo, que, por vezes, se mostra frágil nos momentos de crises.
Com isso, a Câmara dos Deputados se reservaria a melhor se dedicar às matérias que digam respeito aos interesses do povo brasileiro, agilizando o processo legislativo, sem perda da qualidade técnica e política, para, nesse caminho, ir recuperando de fato as prerrogativas constitucionais que lhe são asseguradas.