Após leitura do Projeto de Lei nº. 156/09, que objetiva promover mudanças no Código de Processo Penal, fui tomada por um misto de alegria e preocupação.
O sentimento de satisfação deveu-se ao fato de, no exercício da magistratura, ter plena convicção da necessidade de reformulação do mencionado código, posto que as transformações sociais a muito já a exigiam.
Contudo, essa primeira impressão foi totalmente anulada, já que, com tristeza, constatei que a proposta "revoga" a Lei nº. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), considerada por todos que conhecem a questão como um avanço no trato da violência de gênero, e em cujo grupo me incluo.
Ingressei na magistratura no dia 29 de dezembro de 1989, após submeter-me a concorrido concurso público. Logo depois, entrei em exercício no interior do Maranhão. Vários eram os desafios a me espreitar, dentre os quais destaco: as condições de trabalho precárias, a pobreza endêmica da população e o alto índice de violência doméstica.
De todos, por óbvio, pretendo trazer à reflexão o problema da violência doméstica.
Na próxima (em termos de espaço físico, em relação à capital São Luis) comarca de Vitória do Mearim, todas as semanas, no atendimento informal da população, me deparava com pedidos de socorro de mulheres espancadas que, não conseguindo qualquer apoio da autoridade policial, temiam por suas vidas.
Os relatos indicavam a postura omissa dessas autoridades, composta exclusivamente de homens, que minimizavam o problema mandando que essas mulheres retornassem ao lar, posto que aquilo era coisa a ser resolvida entre o casal, ou, no máximo, chamando o agressor para uma conversa de aconselhamento, que invariavelmente nada resolvia.
Por parte da Justiça, da mesma forma, pouca coisa podia ser feita. A legislação "frouxa" para coibir esses abusos, quando muito, permitia que esse homem respondesse a um processo, na maioria das vezes por lesões corporais leves e ameaça. Porém, ao final de um longo processo, por serem considerados jurisprudencialmente como crimes de "bagatela", nenhum resultado prático se obtinha.
Ou melhor, em face desse cenário, algumas vezes um "resultado" se obtinha: a morte da mulher pelo agressor; ou, quando menos, essa se tornava "foragida", como se criminosa fosse; ou, ainda, "consentia" com a continuidade das agressões e ameaças, pois a sua ação poderia lhe impingir problema maior.
Lembro-me de um caso, já como titular na comarca de Bacabal, em que essa "inoperância" legislativa proporcionou o homicídio do homem agressor, pela mulher agredida, como forma de livrar-se das surras diárias.
Em face da diminuta força e compleição física daquela mulher em relação ao companheiro – ele contava com vinte e poucos anos e ela com mais de cinqüenta –, depois de mais uma surra, esta o deixou dormir, tomado pela usual embriaguez, e matou-o a pauladas.
No ano de 1995, com a promulgação da Lei nº. 9.099/95, pareceu-me que, de alguma forma, as coisas iriam melhorar, pois esta possibilitava uma punição, pequena que fosse.
Ledo engano.
O que a prática demonstrou foi o seguinte: majoritariamente, a transação penal entre agressor e Ministério Público versava sobre pagamento de multa, convertida em cesta básica.
Esse acordo, não raramente, violentava a mulher duplamente: a uma, porque a agressão sofrida, que causava estragos no corpo e na alma, tinha como contraponto o pagamento de simples cestas básicas; e, a duas, porque tirava dela e dos filhos a possibilidade de uma alimentação minimamente adequada, já que, quando oriundos da classe social menos favorecida (quase que todos), o pagamento das cestas representava a diminuição dos escassos produtos existentes na dispensa.
Como essa abordagem não correspondia a uma resposta efetiva ao problema, o status de impunidade continuou e, diante da possibilidade de se ver agredida, desta feita, não só pelo companheiro, mas também pelo Poder Público representado pelo Judiciário, nos termos acima descritos, houve o afastamento da mulher agredida e sua "aceitação" da condição imposta.
Com a Lei Maria da Penha, a brisa da esperança, tanto para as mulheres agredidas, quanto para aqueles que trabalham diretamente na questão, foi sentida.
Esta foi decantada em verso e prosa; apresentada às mulheres a partir de palestras nas comunidades e meios midíaticos; criaram-se juizados especializados; e grupos de magistrados e promotores começaram a ser capacitados sobre a questão de gênero e a nova técnica legislativa.
Como conseqüência, as mulheres, se sentido mais protegidas, voltaram a confiar no poder público e passaram a denunciar, a não aceitar a condição vexatória e sofrida de "saco de pancada" de seus companheiros.
Já soube até de relatos em que homens agressores recuaram tão-somente pela ameaça de ser julgado com base na Lei Maria da Penha, tal é a certeza de que não impera mais a "impunidade" legislativa.
Apesar dos avanços que a lei representa, tanto que foi objeto de fartos elogios alhures, as mulheres agredidas deparam-se agora com a possibilidade de "revogação" da Lei Maria da Penha.
Aos que defendem a tese de mudança legislativa da Lei Maria da Penha, a partir da proposta do Projeto de Lei nº. 156/09, os argumentos são da seguinte ordem: primeiro, no mundo todo resta comprovado que o melhor, no trato das condutas criminosas, é o mínimo de direito penal, com base nas penas restritivas de direitos; segundo, a lei violaria a Constituição Federal ao tratar as mulheres, vítimas de violência doméstica, de forma diferenciada; e, terceiro, a lei não funcionaria, pois a mulher deixou de registrar ocorrências de agressão, já que seus "amados companheiros e agressores" são tratados com muito rigor e sem lhes permitir, como usual, a sua retratação na audiência perante o juiz.
Aos defensores do primeiro argumento, meus respeitos. Tratam-se de juristas renomados, defensores dos direitos humanos e que advogam essa bandeira baseados em dados científicos, por conhecerem as condições carcerárias desumanizantes e na esperança da bondade humana, quando a esses é dado uma segunda chance.
Contudo, apesar da boa intenção, penso que o argumento perde razão de ser quando analisado na ótica adequada à espécie.
A violência doméstica não pode ser comparada à delinqüência comum, pois as suas motivações são diferentes, razão pela qual a primeira exige uma abordagem diferenciada e especial.
Enquanto na violência social, em grande parte, as causas gravitam em torno das exclusões social e econômica, na violência doméstica a questão é cultural, pois envolve a formação patriarcal da sociedade.
Não se trata, como na violência social ordinária, de tentar minimizar o uso da pena de prisão, para atenuar as mazelas de uma sociedade excludente. Trata-se de fornecer mecanismos mais duros, para proteger a vítima de um destino drástico e deixar claro aos agressores que a sociedade evoluiu e o poder público não tolerará essa visão arcaica, posto que homens e mulheres têm iguais direitos.
Aqui, a máxima é que a mulher, enquanto detentora de direitos humanos, deve ter sua integridade preservada.
As duas outras teses utilizadas por alguns, da mesma forma, devem ser afastadas e, permitam-me a sinceridade, é fruto dessa noção equivocada dos papéis forjados culturalmente entre homens e mulheres, pois que, mal disfarçadamente, querem retornar ao tempo de antanho, quando não havia a Lei Maria da Penha.
Na aplicação justa e racional do artigo 5º, da Constituição Federal, não é possível a literalidade indicada, pois a igualdade de todos perante a lei, exige tratamento diferenciado para alcançá-la.
Na lição de Ruy Barbosa, em sua "Oração aos Moços":
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.
O que estabelece a Carta Cidadã é que se busquem formas de tratar desiguais, tendo como objetivo a igualdade. Ou seja, o fim é a igualdade, mas o meio, já que temos diferenças, é o tratamento diferenciado.
Eis porquê os deficientes, as crianças e os idosos devem ter tratamento legal diferenciado. Nesse contexto, a mulher em situação de violência doméstica deve poder contar com lei especial, já que os crimes cometidos têm natureza diversa da delinqüência comum, conforme já explicado.
Quanto à diminuição do número de reclamações das mulheres em face da Lei Maria da Penha, apesar de não ter os dados estatísticos em mãos, penso que a sua leitura pode estar equivocada.
Primeiro, a experiência me mostrou – e por certo todos os que lidam com a questão reafirmarão – que a mulher vítima de violência doméstica somente procura a Justiça quando a vida se torna insuportável. Isso decorre da formação sociocultural, que estabelece ser a mulher a responsável pela manutenção da entidade familiar.
Afora isso, a relação envolve dependência afetiva de difícil rompimento e, muitas vezes, dependência econômica que inviabiliza a vida da mulher e dos filhos sem a ajuda pecuniária do agressor.
Por tudo isso, de fato, muitas das mulheres que batem às portas da Justiça não querem terminar a relação, mas tão-somente que as agressões cessem. Porém, estas não percebem que a simples conversa com o juiz, como historicamente resta provado, não funcionará se o julgador não for enfático e tiver meios efetivos de proteção da agredida e punição do agressor.
A não possibilidade de retratação por parte da mulher agredida, sem consentimento do magistrado, não é uma ferramenta contra o homem e nem um limitador ao livre arbítrio da mulher.
Sabiamente, a Lei Maria da Penha possibilita ao juiz aferir, caso a caso, a viabilidade de retratação, já que a mulher, fragilizada na relação de força, não percebe todos os conceitos por trás da conduta do agressor e o padrão de continuidade em certos casos. Assim, nesse momento difícil de sua vida, por não conseguir analisar o todo, a lei especial delegou ao juiz uma avaliação mais acurada e imparcial do que lhe é melhor.
Se for verdade – e não tenho dados concretos para dizer que sim ou não – que isso tem levado a mulher a deixar de promover a reclamação nos casos de violência doméstica, mesmo assim a opção legislativa, em consideração ao acima exposto, é acertada – a meu juízo – e, portanto, a solução não é acabar com a lei e sim melhorar a comunicação e as políticas públicas de geração de renda.
É preciso, pois, promover diversas formas de diálogo e conscientizar essa mulher de que, antes de ter a obrigação de manter a unidade familiar, ela é detentora de direitos humanos como todo e qualquer cidadão, assim como é preciso que o Estado promova políticas de valorização da mulher agredida, que lhe possibilite inserção no mercado de trabalho, gerando sua independência financeira.
Não bastasse tudo isso, há que se perguntar ainda: Quem pode afirmar que os números de denúncias regrediram pelo motivo apontado? Quem me garante que a retratação não se deu justamente por conta do medo das conseqüências ora impingidas ao agressor, pela Lei Maria da Penha? O que de fato nos dizem esses números ?
Finalizando, quero por fim destacar que em ocasiões que tive e tenho de discutir a questão da violência doméstica em fóruns internacionais, notadamente no continente africano – a convite do Banco Mundial – tenho noticiado a existência da Lei Maria da Penha e a recepção tem sido positiva, gerando uma boa impressão de outros países em relação ao Brasil.
Por tudo isso e muito mais, não tenho dúvidas que acabar com a Lei Maria da Penha se constitui um verdadeiro retrocesso civilizatório.